25 Novembro 2013
Em meio a um ostracismo artístico internacional de significado e simbolismo, Marc Chagall agarrou-se ao que ele amava: a aldeias e a Cristo.
A análise é de Morgan Meis, membro fundador da Flux Factory, uma associação de arte de Nova York. Colaborou com as publicações The Believer, Harper’s e The Virginia Quarterly Review. Também é editor do 3 Quarks Daily e um ganhador de uma bolsa do Creative Capital | Warhol Foundation Arts Writers.
O artigo foi publicado no sítio The Smart Set, 30-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Você normalmente não espera encontrar Jesus Cristo no Museu Judaico de Nova York. Mas lá está ele. Jesus está pendurado na cruz, ou flutuando no céu por todo o segundo andar do museu. Tudo isso é por causa de Marc Chagall.
Muitos críticos têm chamado Chagall de o artista judeu mais destacado do século XX. No entanto, Chagall por cerca de um período de cinco anos, durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se totalmente obcecado pela pintura de Jesus Cristo. Chagall pintou, principalmente, cenas da crucificação. Algumas dessas pinturas, juntamente com a obra de Chagall de pouco antes e depois da guerra, podem ser vistas como parte da mostra Chagall: Amor, Guerra e Exílio, do The Jewish Museum, que vai até 2 de fevereiro de 2014.
Olhando para as pinturas, uma coisa fica clara imediatamente. As pinturas têm pouco a ver com Jesus como costumamos vê-lo – a figura central na narrativa da paixão cristã. O Jesus de Chagall é um Jesus judeu por completo. Em muitas das cenas da crucificação (como The Artist with Yellow Christ, de 1938, e Persecution, de 1941), as partes baixas de Jesus são cobertas com um talit, um xale de oração judaico. Em Study for The Yellow Crucifixion (1942), Jesus está usando os tefilins, pequenas caixas negras, contendo versos da Torá que são enrolados em torno da cabeça e no braço, com tiras pretas indo até a mão.
O significado das pinturas da crucificação de Chagall, em seu contexto histórico, é, assim, bem claro. Desde o momento da ascensão dos nazistas ao poder em 1930, até o final da Segunda Guerra Mundial, Chagall esteve preocupado com o destino dos judeus europeus. Ele viu Jesus na cruz como um símbolo universalmente reconhecido do sofrimento humano. Chagall esperava que os judeus e não judeus fossem capazes de se identificar com este símbolo. Ao fazer Jesus inconfundivelmente judaico, ele estava destacando o fato de que os romanos crucificaram Jesus como um judeu. No meio do holocausto, Chagall queria fazer a universalidade da crucificação de Jesus específica mais uma vez, ele queria que o mundo olhasse para o sofrimento dos judeus.
As pinturas de Chagall sobre a crucificação, assim como grande parte da arte que ele produziu na década de 1940, são muitas vezes consideradas anômalas em relação ao seu trabalho anterior. Costumamos associar Chagall com faixas de vermelho e azul que atravessam a tela, e cenas alegres e fantásticas em pitorescas aldeias do Leste Europeu. Chagall é uma vaca vermelha tocando violino, ou um violinista com um traje colorido sobre os telhados de uma acolhedora shtetl [denominação iídiche para "cidadezinha" ou pequena comunidade judaica do Leste Europeu]. Essas pinturas são vibrantes, com cores e folclore no conteúdo. Chagall, mesmo depois de se mudar para Paris, nunca perdeu a conexão psicológica e espiritual com a sua cidade natal, Vitebsk, na Bielorrússia, nem com as cidades e vilas vizinhas.
De fato, as pinturas de Chagall das décadas de 1910 e 1920 são extraordinariamente notáveis pois ele funde conteúdo folclórico com as técnicas mais inovadoras do Modernismo. Uma das mais famosas pinturas de Chagall, I and The Village (1911), apresenta um plano de imagem que é desconstruído em formas geométricas, claramente influenciado pelo cubismo e as primeiras experiências com a abstração. (Os primeiros importantes pintores abstratos, Sofia e Robert Delaunay, se tornaram amigos íntimos de Chagall e influenciaram fortemente a sua obra na época.) Mas a aldeia em I and The Village ainda é uma aldeia. Um homem sobe um morro no campo carregando uma foice. À esquerda, uma mulher está sentada em um banquinho ordenhando uma vaca. As pequenas casas de aldeia que aparecem em tantas pinturas de Chagall estão aqui também, situadas ao longo da colina, na parte superior do quadro.
Por que Chagall se manteve fiel às suas cenas de aldeia, enquanto muitos de seus amigos avançaram para pinturas de telas de forma pura e cor é um mistério. A ideia de que as pinturas deveriam criar representações visuais precisas e realistas do que vemos no mundo tinha sido há muito tempo abandonada. Mas as perguntas sobre o que os pintores deveriam pintar ainda eram muito vivas. Por volta de 1920, o impulso para a abstração era forte. Muitos pintores e críticos se convenceram de que a pintura tinha que desenvolver sua própria linguagem interna, que não precisava – ou até mesmo não deveria – ter qualquer relação direta com o mundo visual como ele é encontrado na vida cotidiana. Kazimir Malevich, por exemplo, nasceu em uma pequena cidade na Europa Oriental no final do século 19, assim como Marc Chagall. Mas em 1915 ele estava criando pinturas que consistiam simplesmente em quadrados pretos contra fundos brancos. Suas pinturas exploraram as regras e as possibilidades de composição. A aldeia não tinha lugar nelas.
Eu acho que Chagall nunca produziu um trabalho verdadeiramente de arte abstrata. O mais próximo que Chagall chegou ao cubismo absoluto foi, provavelmente, o seu Adam and Eve de 1912. Adão e Eva são ambos processados como combinações de formas geométricas, como você pode ver em um Braque ou em um Picasso do mesmo período. Mas o coração de Chagall não estava realmente nisso. Em poucos anos, ele estava de volta às suas fantásticas cenas de aldeia e ao seu conteúdo folclórico com renovado fervor. Ele produziu Birthday em 1915, um quadro em que um casal flutua no ar num quarto enquanto se beijam. A aldeia pode ser vista do lado de fora através da janela.
Chagall era simplesmente imune aos conflitos internos sobre a forma e conteúdo que consumiram tantos outros artistas de seu tempo. Muitos dos pintores que rejeitaram o cubismo e evitaram a abstração recuaram para alguma forma de tradicionalismo. Chagall não fez isso. Ele assumiu as inovações formais do cubismo e da arte abstrata. Ele foi surpreendido pelas cores ousadas do fauvismo. Então, ele usou isso também. Surrealismo? Por que não? Chagall amava uma imagem incongruente, tanto quanto qualquer outro artista. Onde ele colocava tudo o que ele tinha aprendido a partir do modernismo do início do século XX? Ele colocava de volta na aldeia, é claro. Com o tempo, começou a ficar claro que Chagall nunca iria desistir de seus temas favoritos, as suas imagens mais queridas – algo que ele tinha experimentado em Vitebsk, talvez quando criança.
É por isso que alguns críticos têm dificuldade com Chagall. Eles gostam do início de Chagall, mas, à medida que o tempo passa, mais eles se contorcem. A arte de Chagall até o início de 1930 é celebrada em parte porque Chagall manteve um diálogo ativo com todos os movimentos de vanguarda da época. Claro, Chagall parecia ter uma necessidade teimosa em pintar violinistas em cima de telhados, mas ele estava fazendo isso com um arrojado uso de cores que fez o seu trabalho tão relevante quanto Matisse. Até a década de 1930, Chagall é considerado com alegria como um membro do grupo, como um grande modernista.
Então, alguma coisa mudou. Depois de 1930, Chagall continuou pintando cenas fantásticas de pessoas e animais flutuando sobre aldeias. Mas ele não estava tão interessado em manter o diálogo com os movimentos de ponta. Em 1940, Chagall estava em movimento novamente, fugindo de Paris com as convulsões da Segunda Guerra Mundial. Nunca mais Chagall confraternizaria tão intimamente com a vanguarda contemporânea. A partir de 1940, seu trabalho tornou-se mais insular. Ele trabalhou a partir dos pensamentos e memórias que tinha dentro de sua própria cabeça.
Chagall não foi para a América para descobrir novas possibilidades na arte. Ele foi lá para meditar sobre a destruição do mundo que ele tinha crescido. Sem querer, no entanto, quando Chagall emigrou de Paris para Nova York, em 1940, ele estava seguindo a trilha da vanguarda europeia. Os nazistas tinham, inadvertidamente, estabelecido a cidade de Nova York como o local ideal para os artistas. Foi o artista do velho mundo e exilado europeu Marcel Duchamp que convenceu Peggy Guggenheim que ela deveria apoiar um jovem artista norte-americano chamado Jackson Pollock. Enquanto Chagall estava meditando em High Falls, Nova York, pensando no terrível destino dos judeus da Europa, o expressionismo abstrato foi nascendo a poucos quilômetros do sistema de rodovias do estado de Nova York.
Chagall provavelmente estava certo em ignorar o expressionismo abstrato. Não há lugar para a aldeia de Chagall no expressionismo abstrato. Não há lugar para qualquer aldeia lá. As pessoas que se chamavam expressionistas abstratas sempre discordaram sobre o que ele significava. Mas o próprio termo fornece pistas. Pinturas expressionistas abstratas são formas abstratas puras e cores na tela. A parte "expressionismo" é mais complicada. As pinturas do expressionismo abstrato expressam as emoções do pintor, como alguns têm sugerido? Ou é algo sobre a própria pintura sendo expressada, a verdade interior da forma, formato, cor, linha? Seja qual for o caso, as pinturas expressionistas abstratas não são "sobre" o mundo da mesma forma que uma pintura de um acontecimento histórico, por exemplo, o saque de Roma, é "sobre" o mundo. Pinturas expressionistas abstratas não são símbolos a serem interpretados, nem códigos a serem decifrados. O significado de uma pintura expressionista abstrata, sobre aquelas em que se pode dizer que tem um significado, é interno. As pinturas expressionistas abstratas são, mais do que qualquer outra coisa, sobre a pintura. Conteúdos que não se relacionavam com os problemas de composição interna da pintura ou com o estado interior do artista não eram bem-vindos em telas expressionistas abstratas.
É um pouco intrigante, então, considerar o fato de que Chagall estava trabalhando em pinturas de Jesus Cristo, no momento exato em que os expressionistas abstratos estavam trabalhando para expulsar cada pedaço de conteúdo externo de seus trabalhos. Os expressionistas abstratos estavam chutando o mundo para fora de suas pinturas. E Chagall estava sentado lá em High Falls colocando tudo dentro. É como se ele dissesse: "Se você não quer conteúdo, eu quero". Existe alguma imagem com mais conteúdo na história da arte ocidental do que a de Jesus na cruz? Acho que não. A crucificação é quase que puro significado, puro conteúdo, puro símbolo. Séculos de prática artística a fizeram assim.
Alguém só precisa rabiscar uma cruz sobre uma superfície e uma história salta aos olhos, uma história que tem implicações éticas, espirituais e civilizacionais . Não importa quais sejam as crenças religiosas específicas. O crucifixo é um símbolo compartilhado cheio de significado.
O símbolo de Jesus na cruz é tão potente que era irresistível para Chagall. Nenhuma das cenas da crucificação que Chagall pintou na década de 1940 mostra Jesus em seu tempo histórico. Mais uma vez, elas não são sobre o Jesus histórico e religioso. Em algumas dessas pinturas, Jesus está pendurado na cruz e a cruz está localizada em um lugar que podemos reconhecer. Jesus está na aldeia de Chagall, aquela versão mitificada de Vitebsk que Chagall trabalhou em suas pinturas centenas, milhares de vezes. Colocar Jesus na aldeia deve ter sido como um talismã para Chagall. Ele estava colocando dois grandes símbolos jutos para aumentar seu poder. O primeiro símbolo, a aldeia, era o seu próprio. O segundo símbolo, Jesus na cruz, foi entregue a ele através da história da arte. Pintar, Chagall estava dizendo. Ainda posso fazer isso.
Aderindo a seus símbolos, mantendo todas as imagens significativas, Chagall estava indo contra a tendência dominante do modernismo de sua época. A tendência dominante estava dizendo: "Nós não podemos mais pintar aldeias, muito menos crucifixos". Chagall discordou. Ele discordou, fazendo exatamente isso, pintando aldeias e crucifixos, até o dia em que morreu.
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Crucifixos e seus contextos. A arte de Marc Chagall - Instituto Humanitas Unisinos - IHU