15 Outubro 2013
Sem dúvida, há uma grande dose de novidade no papado de Jorge Mario Bergoglio. Mas quem vê apenas esse aspecto se equivoca com relação a ele e a Igreja. E aplica apenas categorias de tipo político ou cômodas, filhas de uma cultura acostumada a distinguir entre católicos "bons", aberto à modernidade, e católicos apegados à tradição, ritos, poder.
A reportagem é de Marco Garzonio, publicada no jornal Corriere della Sera, 11-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto
As declarações de Francisco relatadas por Scalfari devem ser lidas na chave de um homem de Deus que se colocou uma tarefa que ele sabe que é ousada: transformar em fogo crepitante as brasas que estavam escondidas sob uma pesada camada de cinzas, que corriam o risco, mesmo em tempos recentes, de sufocar todo sopro de vida, antes ainda que os impulsos reformadores. Brasas vivas, porém.
Alguns exemplos foram dados pelo próprio papa. Ele citou duas vezes Carlo Maria Martini. E já é um belo atestado para o cardeal falecido há pouco mais de um ano se encontrar em uma galeria que vai de Francisco de Assis a Santo Agostinho, de São Paulo a Santo Inácio. Para aquele que foi arcebispo de Milão em mais de duas décadas dificilíssimas, Francisco expressou publicamente uma dívida de reconhecimento extraordinária: o fato de ter indicado durante anos aos pontífices então reinantes, Wojtyla e Ratzinger, o modelo de uma Igreja "sinodal", isto é, uma instituição em que o papa governa não como monarca absoluto, mas por "serviço", ajudado por bispos e cardeais.
Ouvindo a estes e podendo contar com a sua contribuição, de fato, ele se tornou chefe de toda a Igreja, porque leva em conta as vozes de outros continentes, de outras necessidades, de outras solicitações com relação àquele Vaticano curvado sobre si mesmo e sobre a sua gestão. E, como bispo de Roma, ou seja, sem pretensões hegemônicas e de proselitismo ("uma solene bobagem", diz Bergoglio), ele abre o caminho para o ecumenismo e para o diálogo inter-religioso, no qual Martini centrou o seu episcopado, recebendo mais de uma reprimenda oficial por ser pouco atento, justamente, ao proselitismo.
Em 1981, quando Martini, como balanço do primeiro ano de episcopado e, portanto, dos contatos com a Conferência Episcopal e a Santa Sé, começou a falar de "Igreja sinodal", ele teve que colocar a sua intuição pessoal e o caminho de desenvolvimento da Igreja sob a categoria do "sonho". Como homem de fé e pessoa realista, além de prudente jesuíta, ele entendera que as suas argumentações não constituíam matéria aceitável à cúpula. Colocou as suas ideias como meta talvez distante, mas não se calou. E pagou pessoalmente.
Ainda sobre um "sonho" ele teve que falar quase 20 anos depois, com amargura e desilusão diante da iminência do novo milênio, quando crescia a decadência de forças de Wojtyla e aumentava de poder a "corte", como hoje Bergoglio chama aqueles que rodeiam o pontífice. Ele de novo não foi entendido por alguns, contestado pela maioria, dos seus próprios coirmãos bispos e cardeais reunidos em Sínodo. Martini acreditava nele e nunca desistiu do "sonho" que agora Bergoglio tenta fazer caminhar para que se torne realidade.
Na entrevista do dia 8 de agosto de 2012, publicada no dia 1º de setembro, dia posterior à morte, no Corriere della Sera, com tom grave de legado testamentário e de advertência profética, ele também indicou a via prática: o papa deve se cercar de 12 bispos e cardeais se quiser que o barco de Pedro não seja submerso pelas ondas internas e por uma sociedade que não acredita mais nela, que está 200 anos atrás com relação a temas como a família, os jovens, o papel da mulher (argumento este sobre o qual Francisco prometeu falar ainda). Martini segurou o leme firme até o fim. E, para dar ainda mais incisividade e sublimidade às suas afirmações, ele havia especificado que não sonhava mais "sobre" a Igreja, mas sim rezava "pela" Igreja.
As orações devem ter batido muito alto, pois o conclave, seis meses atrás, escolheu Bergoglio, e ele aceitou depois de crise quase mística. Mas é certo que, se Francisco retoma esses temas e expressa reconhecimento público a quem os inspirou, é porque Martini não estava tão sozinho e isolado como grande parte do jornalismo católico tentou fazer acreditar durante anos.
Como negação da opinião pública oficial, que vazou da cúpula da Santa Sé e da Conferência Episcopal Italiana, e de um certo maniqueísmo laico que sempre gostou de indicar um Martini "contra" papa, doutrina, magistério, eis que um grande rio subterrâneo corria por debaixo das praças das igrejas, dos altares, dos sacros palácios. Eram aqueles bispos e aqueles padres, aqueles leigos e aqueles dirigentes ou voluntários de movimentos para os quais não havia nada a temer que a Igreja perdesse poder temporal.
A partir do Congresso Eclesial de Loreto de 1985, presidido por Martini (e daquele de Palermo dos anos 1970, com Martini, Lazzati e jesuítas como o padre Sorge), muitos se reconheceram na imagem de uma Igreja que, além de sinodal, fosse pobre entre os pobres, inspirada no Evangelho das Bem-aventuranças, fermento e grão de mostarda.
Por parte de alguns membros da hierarquia, tentou-se contrariar esse curso, ou, melhor, recuperar a gestão direta ("clerical" é como Bergoglio a chama agora) do poder e das relações com a política no momento do fim da Democracia Cristã e da diáspora dos católicos, em aberta dissidência com Martini que, ao invés, pensava que o afastamento dos católicos do poder serviria como uma "purificação".
Francisco novamente parte daí, certamente com as declarações aos jornais, mas também com atos de governo internos (Secretaria de Estado, IOR, Grupo dos oito cardeais) e voltados à Conferência Episcopal Italiana. Dirigimo-nos, de fato, à eleição do chefe dos bispos italianos por parte dos próprios bispos, com maiorias e minorias, legitimação do debate e de posições diferentes, não mais com designações oficiais e gestão autocrática.
Certamente prepara-se para ser uma Igreja diferente aquela que Francisco delineia e que já se entrevê. Mas, se realmente for assim, também caberá à cultura laica fazer um pouco de autocrítica.
Demos um exemplo. Bergoglio declarou a Scalfari: "Eu acredito em Deus. Não em um Deus católico, não existe um Deus católico. Existe Deus". Em 2007, Martini disse em Diálogos noturnos em Jerusalém: "Você não pode tornar Deus católico. Deus está além dos limites e das definições que nós estabelecemos". Muitos rasgaram as vestes. No mundo católico, pareceu quase uma blasfêmia para alguns. Mas mesmo entre as pessoas laicas alguns engasgaram. Por causa daquele livro, Martini foi atacado até dentro do grupo do jornal L'Espresso, o grupo de Scalfari. E não foi nem a primeira nem a última vez.
Portanto, o trabalho a ser feito é muito se realmente se aponta para uma sociedade e para uma política em que cada um possa dar a sua própria contribuição, com aquilo que pode e sabe. Com honestidade e coerência, disposto a se pôr em discussão. Então, espanto e admiração pelo papa serão autênticos, e se poderá ajudá-lo nas reformas, como bispo de Roma, como ele sempre reitera, pastor de um povo inteiro que caminha com ele.
Exaltá-lo demais corre o risco de distanciá-lo daquele povo que, em sua maior parte, já era próximo das suas ideias e o esperava. E de danificar a sua obra.
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O ''sonho'' da Igreja dos pobres: uma dívida do papa a Martini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU