Por: Jonas | 06 Mai 2013
“Nós, um grupo de palestinas/os cristãos, depois de ter rezado, refletido e trocado ideias, fazemos ouvir nosso grito, que surge a partir do sofrimento de nosso povo sob a ocupação israelense; é um grito de esperança na ausência de toda esperança, unido ao nosso pedido e nossa fé em Deus que cuida, em sua Divina Providência, de todos os habitantes desta terra. Movidos pelo mistério do amor de Deus por todos, e por sua presença divina na história dos povos, mais particularmente nesta nossa terra, hoje, queremos dizer nossa palavra como cristãs/os e como palestinas/os, uma palavra de fé, esperança e de amor”.
Assim começa o documento Kairós Palestina (KP), que leva o título: “Um momento de Verdade. Uma Palavra de Fé, Esperança e Amor a partir do coração do sofrimento palestino”. Trata-se de uma iniciativa que busca chamar a atenção das e dos cristãos de todo o mundo sobre os dramáticos impactos que tem na vida do povo palestino – do qual as e os cristãos fazem parte – a ocupação israelense na Terra Santa. Não é hora de escutar o clamor daqueles que sofrem violência e opressão? Não é hora de abandonar a indiferença?
A matéria é publicada no sítio Religión Digital, 28-04-2013. A tradução é do Cepat.
O que é o Kairós Palestina e o que propõe?
“Neste documento histórico, nós as e os cristãos palestinos afirmamos que a ocupação militar de nossa terra é um pecado contra Deus e contra a humanidade; e que qualquer teologia que legitime a ocupação está muito distante dos ensinamentos cristãos, pois a verdadeira teologia cristã é uma teologia de amor e solidariedade com os oprimidos e um chamado à justiça e igualdade entre os povos”.
As e os autores de Kairós Palestina são leigos/as, pastores, sacerdotes, um bispo grego ortodoxo e o patriarca latino (católico) emérito de Jerusalém. O grupo ecumênico trabalhou durante um ano e meio para elaborar o documento que, em seguida, foi referendado pelas autoridades das treze denominações reconhecidas oficialmente como Igrejas de Jerusalém, e apresentado publicamente em Belém, em dezembro de 2009, diante das hierarquias cristãs, contando também com a presença de líderes religiosos muçulmanos e judeus.
A iniciativa Kairós Palestina também é um chamado para que as Igrejas e comunidades cristãs do Ocidente recordem que nessa Terra Santa, onde nasceu o cristianismo no coração do Oriente Médio e do mundo árabe, vive uma comunidade cristã árabe autóctone (não imigrante), que se considera a si mesma herdeira direta dos discípulos de Jesus de Nazaré, e que é, portanto, a comunidade cristã mais antiga do mundo... porém, também, a mais esquecida e incompreendida. Bem poucos cristãos/as no mundo sabem da existência de igrejas e comunidades cristãs na Palestina, e menos ainda possuem contato com elas.
O documento procura, por um lado, descrever a situação insustentável em que vivem as e os cristãos, como parte inseparável do povo árabe originário da Palestina, sob o regime israelense de ocupação militar, colonização territorial e de apartheid jurídico.
A primeira parte do documento faz, justamente, uma descrição sucinta das principais políticas israelenses e de seus impactos sobre a população palestina:
- O Muro de separação que fragmenta e isola as famílias e comunidades;
- As colônias israelenses assentadas em terras expropriadas do povo palestino (junto com sua água e seus recursos naturais);
- Os postos de controle militar esparramados por todo o território, que violam a liberdade de movimento da população palestina e afetam também sua liberdade religiosa;
- A anexação e judaização violenta sofrida por Jerusalém, a Cidade Santa para cristãos e muçulmanos, capital histórica da Palestina, agora inacessível para a maioria de sua população (e de onde um quarto de milhão de palestinos/as residentes estão sendo expulsos/as permanentemente);
- O complexo sistema de autorizações de residência e cidadania, que torna impossível a vida das famílias palestinas, especialmente quando um dos cônjuges não tem documento de identidade israelense;
- Os milhares de presos políticos que definham nas prisões israelenses (várias centenas deles sem julgamento, inclusive contando com dezenas de menores de idade);
- O drama dos milhares de refugiadas/os, aglomeradas/os em condições desumanas em acampamentos dentro e fora do território palestino, que esperam, há três gerações, regressar aos lugares de origem de onde foram expulsos pelas milícias do nascente Estado de Israel, e para onde até hoje são proibidos de retornar;
- A discriminação sistemática e legal que sofre um milhão e meio da população palestina, que vive dentro do Estado de Israel;
- A constante emigração, especialmente de jovens com alta qualificação, devido à falta de liberdade e de oportunidades; este fenômeno se dá particularmente entre a população cristã, e é a causa de sua dramática diminuição na Terra Santa.
Por outro lado, o documento propõe-se a desmentir e se opor em relação às falsas versões que circulam no Ocidente, assim como em relação às correntes do chamado cristianismo sionista (muito forte nos Estados Unidos, mas também presente na Europa e América Latina), que pretendem explicar a incessante emigração e diminuição da população cristã na Terra Santa como uma consequência da perseguição ou do fundamentalismo islâmico. Kairós Palestina afirma, categoricamente, que as razões desse êxodo não são religiosas, mas diretamente derivadas das políticas israelenses para o povo palestino, que não fazem distinção entre muçulmanos e cristãos e os atingem por igual.
Por que agora?
Segundo afirma o documento, “porque a tragédia palestina chegou a um ponto morto. E porque aqueles que tem poder de decisão parecem administrar a crise ao invés de trabalhar seriamente por uma solução viável, causando desesperança, expressa em perguntas como: O que a comunidade internacional está fazendo? O que a Igreja está fazendo? O assunto não é apenas político, trata-se de um sistema que está destruindo seres humanos”.
E acrescenta: “Este documento é a palavra das e dos cristãos palestinos ao mundo sobre o que está acontecendo na Palestina. Um grito de esperança ancorado no verdadeiro amor, fortalecido pela oração e nossa fé em Deus. Em primeiro lugar, nós o dirigimos para nós mesmos, e para todas as igrejas, cristãos e pessoas conscientes de todos os credos, em todo o mundo, pedindo para que defendam a verdade, ungindo a todos para trabalhar por uma paz justa em nossa região. Esperamos que as Igrejas recebam a nossa convocação e que a apoiem, como fizeram com o documento Kairós África do Sul, em 1985, transformando-a numa ferramenta não violenta na luta para colocar fim à ocupação e alcançar uma paz com segurança e dignidade para cada ser humano, nesta Terra Santa.
O que as e os cristãos da Palestina nos pedem?
É evidente o silêncio da comunidade internacional diante desta realidade, da qual as comunidades cristas são cúmplices. Apesar dos claros pronunciamentos das hierarquias católicas e protestantes, as igrejas como tais não responderam ao chamado das comunidades cristãs na Palestina; por isso, é importante interpelar e mover as consciências da população que assiste passivamente a este conflito, sendo esta uma contribuição dos cristãos no mundo. Para isto, Kairós Palestina oferece várias linhas de trabalho. O documento chama as e os cristãos de todo o mundo a:
1. “Vir e ver” a realidade existente na Palestina ocupada.
2. Exigir de Israel, como de todos os países do mundo, que respeite o direito internacional e que coloque fim à ocupação da Palestina.
3. Usar o boicote, a retirada de investimentos e as sanções como meios não violentos de pressionar Israel para que acabe com a ocupação.
O anúncio e a denúncia profética são partes essenciais de nossa fé. No documento Kairós Palestina, os próprios cristãos da Terra Santa fazem referência à missão profética da Igreja, colocando em manifesto uma Igreja viva que toma parte na realidade e que se situa ao lado do oprimido “A missão da Igreja é uma missão profética que proclama a Palavra de Deus no contexto local e nos acontecimentos cotidianos com ousadia, doçura e amor por tudo. E se a Igreja toma partido, é pelo oprimido que Ela toma partido. Ela permanece ao seu lado, como Jesus esteve ao lado do pobre e do pecador, que chamou à penitência, à vida e a voltar a encontrar a dignidade que Deus deu e que não é permitido a ninguém privá-lo dela”. (Kairós Palestina 3.4.1).
O documento Kairós Palestina abre um horizonte de esperança. Quantas vezes a rejeição à violência nos paralisa ou, inclusive, torna-nos cúmplices da injustiça. No entanto, quando Jesus nos convida a proclamar seu Reino, está nos propondo que sejamos pacíficos e audazes, que combatamos o mal com o bem, que não sejamos indiferentes diante de quem sofre. Que sejamos firmes, mas misericordiosos. Nossas comunidades podem descobrir a forma como amar o inimigo, ou trabalhar pela paz tem a ver com uma maneira de atuar que supere os enfrentamentos violentos e nisso Kairós Palestina oferece uma contribuição substancial a partir da realidade da nossa Igreja Mãe. Motiva claramente, a partir da Fé, a maneira como na Terra de Jesus o anúncio do Evangelho passa pela construção da paz, a partir da justiça. E com grande fundamentação bíblica nos convida a sermos suaves e audazes na busca do Reino de Deus, enfrentando o “pecado estrutural”que gera pobreza e opressão e que na Palestina, dramaticamente, concretiza-se na ocupação israelense.
Um motivo de pesar e preocupação para as e os cristãos de Palestina é que os milhares de peregrinos que visitam Terra Santa, a cada ano, não entram em contato com as Igrejas locais. Com efeito, a indústria turística é controlada por operadores israelenses que trazem grupos de todo o mundo e apresentam-lhes a sua versão da realidade e jamais os colocam em contato com a população palestina. Cristãos/as de todo o mundo visitam a Terra Santa e continuam ignorando absolutamente tudo sobre o presente, e sem conhecerem sequer a existência da comunidade cristã palestina.
É por isso que nos últimos anos surgiram várias iniciativas palestinas para promover visitas junto com ONGs, e setores cristãos estão trabalhando para atrair cada vez mais visitantes, com um programa que combina uma visita aos tradicionais lugares de peregrinação, com encontros e diálogo com as comunidades cristãs palestinas, conhecimento vivencial da realidade que vivem sob a ocupação, consumo de seus produtos e serviços para apoiar a empobrecida economia local, plantação de olivas numa comunidade rural, etc. Entre aqueles que estão desenvolvendo estas propostas, existem grupos que fazem parte da Iniciativa Palestina para um turismo responsável, que reúne 10 instituições e que elaborou um Código de conduta para o turismo na Terra Santa (“Venham e vejam: Delineamentos para as e os cristãos que realizam uma peregrinação à Terra Santa”).
Por outro lado, Kairós Palestina exorta as e os cristãos do mundo a tomar consciência de que Israel é um Estado que se coloca por cima do Direito Internacional, não cumprindo de maneira sistemática, desde há mais de seis décadas, uma centena de resoluções e tratados da ONU em matéria de direitos humanos e direito internacional humanitário, que exigem que eles coloquem fim à ocupação e colonização dos territórios palestinos.
Precisamente porque Israel insiste em ignorar a comunidade internacional, Kairós Palestina, como parte da sociedade civil palestina, convida as Igrejas e cristãos/as a promover e aplicar medidas como o boicote de produtos israelenses (sobretudo, aqueles produzidos em território palestino ocupado), o boicote cultural e acadêmico, o desinvestimento em empresas cúmplices da ocupação e a aplicação de sanções diplomáticas e políticas. Estas medidas de pressão não violenta buscam fazer com que o custo de manter a ocupação seja insustentável, e que, portanto, Israel se veja obrigado a respeitar as resoluções da ONU.
Esta iniciativa permite aprofundar laços de comunhão e de coordenação. De igual maneira, supõe um apoio às estratégias da Igreja local na Palestina, fomentando o maior impacto de suas ações, a globalidade e dimensão transformadora, sendo manifesto vivo da comunhão da Igreja Universal. Pode ser uma ferramenta pastoral importantíssima para reafirmar nossa Fé, nossa Esperança e nossa Caridade.
No Kairós Palestina encontramos um pedido claro aos irmãos e irmãs de todas as Igrejas: Vocês podem nos ajudar a reencontrar nossa liberdade? Assim, somente vocês ajudarão aos dois povos desta terra a voltarem à justiça, paz, segurança e ao amor. (Kairós Palestina 6.1).
O que ocorreu nestes três anos?
Kairós Palestina gerou numerosas respostas de adesão e apoio.
- Quase 3.000 cristãs/os palestinas/os (na Terra Santa e na diáspora), e quase 2.300 cristãos/as de todo o mundo assinaram o documento. O apoio também foi explícito no mais alto nível oficial de muitas Igrejas, em todo o mundo, incluindo o Conselho Mundial de Igrejas e o Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos.
- O documento foi traduzido em 19 idiomas e foram criados grupos de apoio ao Kairós Palestina em vários países. No sítio da Kairós Palestina existe uma média de 40.000 visitas por mês.
- Numerosos documentos de “Resposta” ao Kairós Palestina surgiram em todo o mundo, desde a Coreia até o Brasil, passando pelas Filipinas, Índia, Austrália, Europa, América do Norte, África do Sul. Entre eles se incluem apoios islâmicos e judeus.
Êxitos significativos
Talvez, as conquistas mais significativas do Kairós Palestina se deram nestes três anos, no terreno mais difícil e desafiante: o de estimular a adesão das Igrejas ao chamado internacional do movimento palestino por boicote, desinvestimento e sanções (BDS), do qual Kairós Palestina faz parte.
Por exemplo, em 2012, a Igreja Metodista Unida, em todo o mundo, e a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos aprovaram em seus respectivos sínodos gerais o incentivo ao boicote de produtos elaborados nas colônias israelenses assentadas em território palestino ocupado. No mesmo ano, Friends Fiduciary Corporation, a firma de investimentos com responsabilidade social, que trabalha para 300 instituições dos Quakers dos Estados Unidos, resolveu retirar investimentos milionários de Caterpillar e Veolia, duas das companhias que lucram com a ocupação e a violação dos direitos palestinos.
Também, em 2012, quinze líderes de Igrejas dos Estados Unidos dirigiram uma carta ao Congresso (respaldada por mais de 15.000 assinaturas) pedindo para avaliarem a legalidade e a moralidade da ajuda militar desse país a Israel, assinalando que “como líderes cristãos/as, é nossa responsabilidade moral questionar a continuação da assistência financeira incondicional do governo norte-americano a Israel” já que a mesma “apenas serve para manter o status quo e a ocupação militar dos territórios palestinos”.
Em março de 2013, o Comitê Central da Igreja Menonita dos Estados Unidos decidiu que não irá investir fundos em companhias que se beneficiam de produtos ou serviços usados para perpetuar atos de violência no conflito entre a Palestina e Israel.
Na África do Sul, o país onde o movimento BDS é mais forte, as Igrejas cristãs (nucleadas no Conselho Nacional de Igrejas da África do Sul, e encabeçadas pelo Arcebispo e Prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu) desempenharam um papel fundamental no incentivo ao boicote a Israel, para o qual, oficialmente, a poderosa central sindical COSATO, o próprio partido de governo e o Congresso Nacional Africano aderiram.
Por sua vez, dentro da Palestina a iniciativa Kairós Palestina foi acolhida com enorme simpatia por parte de todos os setores religiosos, sociais e políticos, incluindo a maioria muçulmana. Líderes dessa fé costumam comparecer nas atividades públicas do movimento Kairós Palestina. Porém, há outras conquistas ainda para vir. Sobretudo, a possibilidade de romper cercos e de criar pontes, quebrar a tradicional passividade daqueles que, a partir do Ocidente, compartilham a fé, mas não sofrimento. Superar receios e indiferenças como um primeiro passo para uma ação pastoral e social que permita lutar contra a ocupação. Em definitivo, reunir vontades e experiências que ajudem a somar ações que nos levem a uma Palestina em paz, com justiça e liberdade.
Veja também:
Confira as seguintes páginas:
Sítio do Kairós Palestina: www.kairospalestine.ps
Iniciativa palestina por um turismo responsável: www.pirt.ps
Movimento BDS: www.bdsmovement.net
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A força profética do movimento Kairós Palestina. Uma interpelação a partir de uma terra oprimida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU