25 Abril 2013
Uma cálida manhã de outono e uma plateia que lotou a sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, marcou a primeira conferência do filósofo canadense Charles Taylor no Brasil nesta quarta-feira, 24-04-2013. Concentrando suas ideias em torno do debate liberais e comunitários, o pensador iniciou sua fala trazendo a variedade de sentidos que tais conceitos costumam assumir em nossos dias. Isso porque as pessoas partem de bases muito diferentes para abordar tal temática.
A reportagem é de Márcia Junges.
Na opinião de Taylor, é preciso compreender a influência do mundo anglo-saxão no debate liberais e comunitários. Assim, um dos autores fundamentais nesse assunto é John Rawls (1905-2002), que inaugurou uma onda de estudos sobre o neoliberalismo. A série de teorias iniciada com Rawls é normativa, e em seu caso é a teoria da justiça que ocupa lugar central, com o volumoso A teoria da justiça.
Tocqueville (1805-1859), grande pensador francês do século XIX, foi elencado como um autor importante para que se compreenda a democracia liberal, observa Taylor. “Tanto Rawls quanto Tocqueville estão preocupados em analisar a sociedade moderna em relação às anteriores”. E frisou: “Uma sociedade pode ser liberal sem ser democrática. Os regimes que buscavam igualar as massas eram terrivelmente autoritários”.
“Uma sociedade pode ser liberal sem ser democrática", observa Charles Taylor |
Joseph Schumpeter (1883-1950), pensador austríaco que migrou para os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, previa em sua teoria que a democracia continha espaço para manter as pessoas em uma inatividade programada, uma espécie de apatia. Esse autor escreve sobre o medo de que o poder tem de que as pessoas queiram participar demais da política, trazendo ideias intolerantes e inconvenientes. Tais autores fazem uma espécie de preempção sobre a “periculosidade” da democracia, como se fosse melhor a política nos tempos da Inglaterra do século XVIII. Algo como “vamos então deixar as elites governarem”. A partir disso percebemos que liberalismo e democracia não andam de mãos dadas, necessariamente.
Charles Taylor recuperou a ideia de tirania da maioria, tributária a Tocqueville, que alertava para o fato de que esta poderia tomar conta da sociedade. Tal posicionamento é recorrente na história norte-americana, como no período de McCarty (1908-1957) e no pós-11 de setembro. Tocqueville, um democrata destacado, queria compatibilizar democracia e liberalismo. Toda a tradição que chamamos de republicanismo é uma teoria que se preocupa com a república, a democracia autogovernante a encontrar condições para sua saúde contínua.
Em sua obra, Monstesquieu (1689-1755) falava sobre a república, a monarquia e o despotismo. A razão que mantem a monarquia viva é a honra, e na república trata-se da virtude. Essas ideias influenciaram desde Rousseau (1712-1778) até Hannah Arendt (1906-1975), e se preocupam com a saúde de uma democracia liberal, e não simplesmente com valores em si. Esse é o estranho contexto no qual surge o debate liberais e comunitários, comenta Taylor.
Sociedades de imigração
Os liberais de inclinação normativa se depararam com várias objeções à sua teoria. Um sentido da palavra comunitarismo é a reação das pessoas a partir dessa tradição humanística cívica contra o liberalismo simplesmente normativo. Nos EUA fala-se em movimento comunitário, sem grande poder político, mas com influência intelectual destacada. Contudo, pondera Taylor, temos que observar de perto que em nome da liberdade as pessoas não acabem promovendo a ascensão de certos atos negativos. A saúde de uma sociedade republicana fica periclitante quando se elevam empresas, ao invés de pessoas. A reação republicana é de que deveríamos ver as questões de liberdade num contexto de responsabilidade.
Outro sentido de liberalismo, bem diferente, e que também usa o termo comunitarismo, é aquele que fala de comunidade da república inteira, de toda a sociedade. Outros falam em comunidades culturalmente definidas. Em muitas comunidades norte-americanas e mesmo do Canadá, seus membros vêm do exterior. Durante muito tempo tais sociedades se definiram com sociedades de imigração, e inclusive estavam estruturadas para isso. O segundo tipo de sociedade de imigração são sociedades que se converteram em sociedades de imigração sem querer sê-lo, como é o caso da Europa Ocidental, caso da Alemanha após a construção do muro. Havia empregos que deveriam ser ocupados, e a taxa de natalidade estava caindo. A Alemanha Ocidental recebeu, então, um influxo de imigrantes para suprir essa lacuna. O que se fez nesse país foi definir tais trabalhadores como Gast arbaiters.
Fusão cultural permanente
O feminismo nas sociedades do Hemisfério Norte surgiu para romper com um modo de pensar e agir. Uma das características fundamentais das democracias dessa parte do globo é a existência, ou pela primeira vez, a autoasserção das diversidades. Nesse caso temos o problema de grupos diferentes dentro das sociedades liberais mais amplas, clamando por aceitação, igualdade e liberdade. O comunitarismo poderia designar qualquer doutrina e dizer que devemos reconhecer as diferenças e dar às pessoas o que elas merecem. Esse significado é tão diferente do primeiro que chega a ser contraposto a ele.
E o que o reconhecimento realmente acarreta? “É aqui gostaria de falar em multiculturalismo, termo também confuso em sua delimitação de sentido e que significa várias coisas diferentes”, completou Taylor. Criado na Austrália e logo depois utilizado no Canadá, esse conceito foi endereçado às pessoas demonstrando as diversidades oriundas da globalização. Uma parte dos primeiros imigrantes desses locais veio das ilhas britânicas, Itália, Alemanha, Espanha, Europa Oriental e do mundo todo. O senso de diversidade cultural cresceu muito, e o multiculturalismo era um conjunto de políticas para lidar com essa diversidade. Por um lado, o multiculturalismo foi entendido como um incentivo à criação de guetos, mas tal interpretação correspondia à forma como as sociedades europeias reagiam a isso. “As pessoas diferentes não deveriam invadir a paz da sociedade, perturbando-a”, disse Taylor.
No Canadá o multiculturalismo queria integrar pessoas de todas as nacionalidades. O fato de seus ancestrais virem de outros lugares não retira a igualdade dos cidadãos de diferentes nacionalidades. Isso foi acompanhado de propostas de inserção e reconhecimento de pessoas, reconhecimento como cidadãos, com base numa cidadania comum. “Entretanto, a palavra comunitarismo pode realmente tornar esse debate muito confuso. No caso da França a palavra multiculturalismo foi assimilada a reconhecimento de primeira espécie. A diferença é reconhecida, mas as pessoas devem ficar no seu lugar. Isso porque representam uma ameaça à república, pensam os franceses”. Entretanto, é preciso integrar as pessoas numa cidadania comum, pontua o pensador. “A pessoa estrangeira tem direitos e deveres como todos”.
Ao longo desse debate, há dois quadros do comunitarismo, um deles associado ao termo negativo, apontando que o grupo deve ser diferente sem se misturar. Do outro lado, você reconhece e oferece a possibilidade das pessoas viverem nesse lugar. Taylor ressaltou que a fusão das culturas é fundamental, e que estas estão em mudança permanente. “As pessoas são acostumadas com uma continuidade e linearidade culturais, e gostam de pensar que a sociedade continuará a ter estruturas imutáveis. Essa é uma das grandes reações emocionais. Tudo e todos que tiram essa linearidade são mal recebidos”. O interlúdio infeliz na história do Ocidente é a nossa surdez para as outras culturas, arrematou.
Surdez para as outras culturas: interlúdio infeliz na história do Ocidente |
Democracia e reforma constante
Uma democracia moderna e diversificada tem a ver com sua própria reforma. Esse sistema político tem que se perguntar o que se está fazendo e tentando promover. “Temos lutas tremendas no Quebec sobre as diferenças religiosas, sobretudo com os muçulmanos. Na Europa e América do Norte há movimentos perigosos de islamofobia em institutos acadêmicos de direita que refletem o suposto perigo dessa religião, que deve ser combatida”, lamentou Charles Taylor. “Nas democracias modernas devemos trabalhar constantemente sobre esse tipo de exclusão”.
Temos um profundo mal estar em relação à mudança em nossas sociedades. Trata-se de uma questão central nas democracias de nosso tempo. Tocqueville não precisava se preocupar com esse fator. Ele figura como um pensador interessante porque percebeu as duas as exclusões massivas que ocorriam pelos idos de 1830 nos EUA, em relação aos índios e negros. Ele descreve a exclusão dessas pessoas e discutiu a democracia americana nos termos em que os americanos a concebiam. Tal teoria está baseada em ignorar esse tipo de exclusão. Nas sociedades atuais da do Hemisfério Norte isso é impossível. “Há um saudosismo de voltar ao passado, quando ‘sabíamos quem éramos’”, ironiza Taylor.
Charles Taylor no Basil
Charles Taylor está pela primeira vez no Brasil num roteiro de eventos acadêmicos que se estende de abril a maio de 2013. A convite do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele iniciou hoje um Ciclo de Debates que desenvolver-se-á em duas perspectivas temáticas: O debate liberais-comunitários: colóquio com Charles Taylor ocorrerá nos dia 24 e 25 de abril e Religiões e Sociedade nas trilhas da secularização. Diálogos com Charles Taylor ocorrerá em 26 e 29 de abril.
Trata-se de um evento de caráter multi e transdisciplinar que reunirá pesquisadores e estudiosos de diferentes áreas acadêmicas em conferências, mesas redondas, diálogos, entrevistas e apresentação de trabalhos. Dada a amplitude das contribuições de Charles Taylor para a discussão dos temas centrais do evento – sociedade, religiões, secularização –, e tendo em vista ampliar os debates em torno a temas de interesse para diferentes áreas de estudos e pesquisas.
Confira aqui a programação completa dos eventos de Charles Taylor no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
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Charles Taylor e o debate liberais-comunitários: a necessidade de uma fusão cultural permanente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU