03 Abril 2013
Assim como o profetas antes dele, o Papa João XXIII também teve uma visão para compartilhar com a família humana. A Pacem in Terris projetou um mundo onde a paz seria alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais.
A opinião é do jesuíta norte-americano Drew Christiansen, professor visitante no departamento de teologia do Boston College, Chestnut Hill, Massachusetts. De 2005 a 2012, foi editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA.
O artigo foi publicado na revista America, 08-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Pacem in Terris nasceu na mente do Beato João XXIII no outono de 1962, durante a crise dos mísseis cubanos, quando ele serviu como um canal de contato entre o presidente John F. Kennedy e o líder soviético Nikita Khrushchev, incitando o diálogo para acabar com o confronto mais perigoso da Guerra Fria.
Para o papa, a crise dos mísseis foi um momento profético. Ele ofereceu uma mensagem de paz para superpotências encerradas em uma competição de risco mundial. Até a sua intervenção, essa competição havia sido definida por estratégias de guerra ultrarrealistas. Foi sua a clássica palavra de um profeta: um apelo de um homem de Deus aos homens do poder.
Desafiando os pressupostos realistas dos estrategistas da Guerra Fria, ele rejeitou a noção geralmente sustentada de destruição mutuamente assegurada – de que um equilíbrio de armas garantia a paz entre as nações – argumentando, ao invés, que "a verdadeira paz entre os povos se baseia (...) exclusivamente na confiança mútua".
Assim como o profetas antes dele, o Papa João XXIII também teve uma visão para compartilhar com a família humana. A Pacem in Terris projetou um mundo onde a paz seria alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais.
Cinquenta anos depois, a visão de João XXIII começou a se realizar. Os direitos humanos se tornaram um fator importante no direito e na diplomacia internacionais. As agências transnacionais proliferaram para lidar com problemas e emergências globais. A governança global já começou, embora imperfeitamente, a se tornar realidade. A jurisdição universal para crimes contra a humanidade se tornou realidade, e os antigos praticantes do impasse nuclear, como Henry Kissinger e George Schultz, agora pedem a abolição das armas nucleares.
Enquanto a Igreja comemora o 50º aniversário da Pacem in Terris, a visão profética do Papa João XXIII tem afetado as questões mundiais pela promoção dos direitos humanos e pelo fortalecimento da governança global. Embora ainda reste muito a ser feito, o mundo mudou consideravelmente em direções que o Papa João XXIII aprovaria.
Definindo uma agenda para os direitos humanos
Na maior parte, a Pacem in Terris tratou relativamente pouco tanto das questões das armas nucleares que ajudaram a lançar a encíclica, quanto de outros tópicos associados nessa época com o ensino católica sobre guerra e paz. Em vez disso, ela propôs uma estrutura de paz construída sobre "o reconhecimento, o respeito, a tutela e a promoção" dos direitos humanos.
Ao fazê-lo, ela definiu a agenda para a participação da Igreja nas questões mundiais para os anos vindouros. O Concílio Vaticano II, pegando a pista da Pacem in Terris, declarou o Evangelho como a mais segura salvaguarda da "dignidade pessoal e da liberdade humana" e anunciou a promoção dos direitos humanos como um dos dois principais serviços que a Igreja Católica presta o mundo.
Nos anos que se seguiram, as conferências nacionais de bispos, dioceses e ordens religiosas abriram escritórios de direitos humanos para abordar crimes na América Latina, Ásia e África. Esses grupos trabalharam através do Pontifício Conselho Justiça e Paz, com conferências nacionais de bispos politicamente influentes no Ocidente e com agências de direitos humanos seculares para defender as pessoas contra regimes repressivos. Mais tarde, o Beato João Paulo II foi um guia para o movimento trabalhista Solidariedade, na Polônia, e, posteriormente, um ator principal nos eventos de 1989 que levaram ao fim do comunismo na Europa Oriental, fazendo uma contribuição especial com o desdobramento não violento desses eventos. Suas visitas e discursos também prestaram apoio aos defensores dos direitos em todo o mundo.
O mundo secular também estava passando por um despertar aos direitos humanos durante esse tempo. A Anistia Internacional começou a fazer apelos pelos "prisioneiros da consciência" em 1961. A adoção dos Acordos de Helsinque, em 1968, especialmente suas disposições sobre os direitos civis, deu origem a novos grupos da sociedade civil como o Grupo de Helsinque e o Human Rights Watch.
Além disso, os tratados que propunham a proteção contra a tortura, discriminação, genocídio e desaparecimentos foram adotadas, juntamente com outros em prol das crianças, mulheres, migrantes, trabalhadores, pessoas com deficiência e povos indígenas e tribais. Finalmente, o aparato para um crescente monitoramento internacional e coação às violações dos direitos começou a ser erguido durante a cúpula do 60º aniversário das Nações Unidas em 2005, com algum reforço da capacidade das Nações Unidas no processo de paz e a adoção do princípio da responsabilidade de proteger, como ele é vulgarmente chamado.
Muito mais ainda precisa ser feito para melhorar ainda mais essas instituições, mas os contornos do tipo de mundo que o Papa João XXIII imaginou, onde a autoridade pública defende os direitos de todos, começaram a ser perceptível no nosso mundo contemporâneo.
Moldando uma comunidade mundial
A geopolítica vaticana tradicional, assim como a do resto do mundo pós-Vestfália, se focava nas relações entre os Estados. A parte IV da Pacem in Terris ainda tratava das realidades binacionais e multinacionais de tipo tradicional. Mas a teologia política subjacente à encíclica revivia uma antiga e "cosmopolita" teologia política católica, identificada, a partir da antiguidade tardia até a Idade Média, com a cristandade, agora secularizada e despojada das pretensões à soberania papal universal, na forma de um universalismo político baseado em direitos.
João XXIII viu toda a ordem política dirigida a defender os direitos das pessoas. Nesse contexto, o papa introduziu um nível de ação política que a encíclica chama de "comunidade mundial" e que os diplomatas, jornalistas e lideranças da Igreja se referem como "comunidade internacional".
A partir do Papa João XXIII, o ensino social católico identificou o crescimento de novos grupos sociais como uma dinâmica natural da "socialização" que contribui para a efetiva unidade da família humana. Essa é uma intuição caracteristicamente católica, enraizada no caráter social essencial da natureza humana e da natureza comunitária da realização humana. O Concílio Vaticano II nomeou a promoção da unidade – e, portanto, a paz –, juntamente com a promoção dos direitos humanos, como uma das formas-chave pelas quais a Igreja serve ao mundo. Em prol do bem-estar futuro da única família humana, o Papa João XXIII também propôs um novo conceito: o bem comum universal.
O bem comum universal
Desde a antiguidade, o bem comum tem sido um conceito crucial na teologia social e política católica, que faz referência ao bem compartilhado de toda uma sociedade ou entidade política. Em tempos anteriores, ele havia sido aplicado a cidades-Estado e a reinos medievais italianos; nos tempos modernos, a Estados-nação.
Apreciando a maior interdependência dos nossos tempos e dos problemas globais, como o desarmamento nuclear, que excedeu a capacidade de resolução até mesmo de tratados multilaterais, a Pacem in Terris argumentou que o bem comum universal deveria governar tais realidades transnacionais. Por sua vez, o reconhecimento das reivindicações do bem comum universal implicava o dever de desenvolver instituições de âmbito global para enfrentar os problemas globais.
Embora alguns tenham objetado que a utopia do Papa João XXIII, como foi chamada por um jornalista italiano, entrevia um único super-Estado global, a sua única ilustração específica era o sistema das Nações Unidas, uma rede frouxa de órgãos formais como a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, a Tribunal Internacional de Justiça e autoridades autônomas como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, unidas com um arranjo de escritórios especializados que lidassem com problemas como refugiados, desenvolvimento, população e relatores especiais da ONU que aconselhassem o secretário-geral ou outros órgãos internacionais sobre vários problemas emergentes, como a intolerância religiosa.
O Papa Bento XVI explicou mais detalhadamente na Caritas in Veritate (2009) como um sistema mais integrado e eficaz de governança global deveria se enraizar na subsidiariedade, de modo que o subsidium, ou serviço, das unidades maiores suprissem as inadequações das unidades sociais menores.
Talvez os desenvolvimentos recentes mais significativos na implementação do bem comum universal desde o tempo do Papa João XXIII sejam o Tribunal Penal Internacional (2002) e o conceito emergente da Responsabilidade de Proteger. O tribunal é um painel de último recurso em casos de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Ele atua quando as jurisdições locais não conseguem agir ou são incapazes de fazê-lo.
A Responsabilidade de Proteger (R2P), uma versão melhorada e jurídica da intervenção humanitária, é um princípio do direito internacional que, como a Pacem in Terris, propõe a ideia de que toda autoridade política é ordenada a defender os direitos dos cidadãos e exige que a comunidade internacional intervenha, com a permissão do Conselho de Segurança, para evitar violações aos direitos humanos, coagir à sua correção e/ou fornecer soluções às populações afetadas.
Antes da formulação da responsabilidade de proteger, o Papa João Paulo II apelou durante as crises na ex-Iugoslávia, África central e Timor-Leste àquilo que então era conhecido como intervenção humanitária por parte da comunidade internacional. Em seu discurso à Assembleia Geral da ONU em 2008, o Papa Bento XVI deu um forte endosso à R2P, embora em confrontos posteriores na Líbia e Síria, por causa da preocupação com a situação das minorias cristãs locais, a Santa Sé se mostrou relutante em invocar o princípio.
A necessidade de regulação das instituições financeiras globais, depois do colapso de muitas das principais instituições de investimento e dos delitos flagrantes de outras, fornece um exemplo de outro conjunto de problemas do tipo que o bem comum universal pretendia enfrentar. Em 2009, como parte do seu tratamento à governança global na Caritas in Veritate, o Papa Bento XVI citou a reforma das finanças globais como uma grande prioridade. "Os operadores das finanças", escreveu ele, "devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua atividade, para não abusarem de instrumentos sofisticados que possam trair os poupadores".
Em 2011, às vésperas da reunião do G20, o grupo político de ministros de finanças e de presidentes de bancos centrais das 20 maiores economias, o Pontifício Conselho Justiça e Paz publicou um estudo pioneiro sobre a regulação financeira, Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspectiva de uma autoridade pública de competência universal. Ele cita a Pacem in Terris como a sua inspiração para propor "uma autoridade sobre a globalização".
A necessidade de "estruturas e mecanismos adequados e eficazes à altura da própria missão", escreveu o conselho a respeito de um autoridade mundial para governar o sistema financeiro, é muito maior "em um mundo globalizado (...) que mostra também o peso do egoísmo e dos interesses setoriais, entre os quais a existência de mercados monetários e financeiros de cunho predominantemente especulativo, prejudiciais para a economia real, de modo especial dos países mais frágeis".
Trabalhar pela paz
Finalmente, no meio século desde a publicação da Pacem in Terris, a participação dos católicos, de outros crentes e de ativistas seculares no trabalho multifacetado pela paz também deu à Igreja um amplo grau de engajamento na pacificação que João XXIII desejava, mas que só poderia imaginar vagamente. Os principais grupos católicos nesse campo incluem o Pax Christi International, a rede Caritas Internationalis, a Comunidade de Santo Egídio e a Catholic Peacebuilding Network.
A multiplicação de iniciativas privadas e voluntárias que muitas vezes lideram o caminho para satisfazer as necessidades humanitárias quando os governos não respondem é uma característica da situação mundial hoje. A política global é caracterizada pelo entrelaçamento de iniciativas não governamentais, governamentais e intergovernamentais. Os recentes esforços da Santa Sé para integrar as atividades de paz e justiça católicas diretamente em estruturas eclesiais hierárquicas, de fato, pode ir contra a tendência das iniciativas da sociedade civil no mundo em geral. Para alguns, como o Catholic Relief Services, no entanto, que é patrocinado pela Conferência dos Bispos dos EUA e que regularmente busca orientação teológica, isso não deve apresentar problemas reais. Mas para outros, acostumados a mais autonomia e ao apoio apenas de bispos amigos, isso pode exigir mais ajustes.
O que precisa ser avaliado é a perda potencial, através da centralização curial, de iniciativa por parte dos fiéis e de velocidade na resposta católica aos eventos em mudança. Uma atenção mais explícita à evangelização nesses empreendimentos católicos, como previsto na recente legislação, também pode diminuir a margem de liberdade dos fiéis para a colaboração pelo bem comum com os crentes de outras fés, assim como com os homens e mulheres de boa vontade. A integração das organizações católicas diretamente na burocracia vaticana também pode correr o risco de reduzir a eficácia das suas iniciativas de pacificação, como acontece quando qualquer grupo voluntário é assimilado por uma organização maior.
A experiência de 50 anos demonstra que a visão de paz do Papa João XXIII não era "um sonho impossível". A integração dos direitos humanos ao direito e diplomacia internacionais, a evolução das estruturas de governança global com práticas como a Responsabilidade de Proteger, e a multiplicação de iniciativas de pacificação da sociedade civil dão substância ao desígnio do Beato Papa João XXIII de um mundo mais pacífico.
No entanto, a visão de paz da Pacem in Terris continua sendo uma utopia, cuja profundidade de potencial e amplitude de aspiração ainda devem ser realizadas. Enquanto pensamos no futuro centenário da Pacem in Terris, daqui a 50 anos portanto, talvez possamos aprender com o otimismo do Papa João XXIII e imaginar não só os desafios para a paz que o mundo irá enfrentar nas cinco décadas a partir de agora, mas também as forças e invenções sociais que podem promover a causa da paz.
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Pacem in Terris: uma visão de paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU