14 Fevereiro 2013
Em sua primeira aparição pública depois de anunciar que vai deixar o cargo no próximo dia 28, o papa Bento XVI citou, na quarta-feira (13), a "hipocrisia religiosa", afirmando que "a divisão do clero" e "a falta de unidade" estão "desfigurando a Igreja".
Bento XVI falou, pela manhã, durante a audiência geral no Vaticano e, à tarde, na missa de quarta-Feira de cinzas - a última que celebrou na Basílica de São Pedro. Na audiência, ele disse que sua renúncia - a primeira de um papa em 600 anos - foi para o "bem da Igreja". Mais tarde, na homilia, diante de cardeais, o pontífice citou os que estariam "instrumentalizando Deus" para a obtenção de "prestígio pessoal e poder".
A reportagem é de Jamil Chade e Filipe Domingues e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-02-2013.
Em sua edição de quarta-feira (13), o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que a renúncia de Bento XVI estaria relacionada não apenas à sua suposta fragilidade física, mas à disputa de poder dentro da Igreja - que seria liderada por Tarcisio Bertone, o número 2 do Vaticano -, que o deixou isolado. Para frear um governo paralelo, Bento XVI optou por desfazer seu pontificado e convocar novas eleições.
Na quarta-feira (13), Bento XVI deu indicações de que a divisão da Igreja pesou em sua decisão. O clima na Basílica de São Pedro durante a missa não foi de festa. Ao chegar ao altar construído sobre o túmulo do apóstolo Pedro, a monumental construção parecia diminuir ainda mais o já fragilizado papa. Mas bastou ele dar sua mensagem para que sua voz frágil mandasse um dos recados mais fortes que já ecoaram nos últimos anos nos afrescos e pilares de dimensões desproporcionais da basílica.
Seu alvo foi o grupo de cardeais que provoca discórdia dentro da Igreja Católica e teria provocado uma guerra interna. "O rosto da Igreja às vezes é desfigurado", disse o papa. "Penso em particular nos pecados contra a unidade da Igreja, nas divisões no corpo eclesial." O pontífice afirmou que ela deve superar "individualismos e rivalidades", especialmente no tempo da Quaresma - período de 40 dias antes da Páscoa em que os cristãos intensificam a oração, a esmola e o jejum.
Durante sua homilia, o papa citou texto do apóstolo Paulo no qual diz "Eis o momento favorável, o dia da salvação" e o aplicou ao momento atual, em que há uma urgência de mudanças "que não admitem ausências ou inércias", pois a unidade da Igreja está ameaçada. Trata-se de uma ocasião única e irrepetível para a reconciliação, disse o papa, de modo que é necessário que os cristãos retornem a Deus "com todo o coração".
Bento XVI completou a crítica à desunião na Igreja, à busca pelo poder e à instrumentalização da fé recordando que, no texto bíblico, Jesus denuncia a "hipocrisia religiosa, o comportamento que quer aparecer, as relações que buscam o aplauso e a aprovação". Em vez disso, o verdadeiro cristão "não serve a si mesmo ou ao público, mas ao seu Senhor, na simplicidade e na generosidade".
Não distante dele estavam dezenas de cardeais, bispos e membros do corpo diplomático que não disfarçavam o mal-estar. Ao terminar a missa, muitos deles se recusaram a falar com a imprensa, visivelmente abatidos.
O cardeal Giovanni Lajolo, presidente emérito da Pontifícia Comissão para a Cidade-Estado do Vaticano, admitiu ao jornal O Estado de S. Paulo que a mensagem de Bento XVI foi surpreendente: "Ficamos sem palavras. Ele mostrou uma profunda intimidade com Deus", declarou o italiano, que participará do próximo conclave - marcado para ocorrer a partir do dia 15 de março. Já o cardeal canadense Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, disse ao jornal O Estado de S. Paulo que recebeu a mensagem de unidade na Igreja proferida pelo papa "com o coração aberto".
Poder mundano?
Antes, pela manhã, Bento XVI deu a primeira parte de seu recado, na audiência pública que realizou com grupos de todo o mundo. "Não é o poder mundano que salva o mundo, mas o poder da cruz, da humildade e do amor", declarou. A mensagem, voltada a todos os cristãos do mundo, no atual contexto pareceu ser mais destinada àqueles que pretendem fazer da Igreja um lugar de "poder mundano".
Referindo-se às ambições de poder de todo ser humano, o papa fez uma analogia com as tentações que Cristo sofreu durante 40 dias no deserto, segundo o relato bíblico. Ele recordou que Jesus encontrou serenidade e um lugar de "silêncio e de pobreza". Em mais uma possível referência ao materialismo na Igreja, Bento XVI criticou a instrumentalização de Deus, dizendo que todo cristão deve "superar a tentação de submeter Deus a si e ao próprio interesse".
Bento XVI procurou justificar aos fiéis os motivos de sua saída - desta vez falando em italiano e não em latim, como havia feito na reunião com cardeais na segunda-feira. "Fiz isso com plena liberdade, para o bem da Igreja, depois de ter rezado por muito tempo e de ter examinada diante de Deus a minha consciência", explicou.
"O que é que verdadeiramente conta na minha vida?", questionou o papa renunciante. Referindo-se, na verdade, à vida de todo cristão, mas numa clara alusão também à sua decisão pessoal de abandonar o papado, declarou: "Quando se vai ao essencial, é mais fácil de encontrar Deus".
Homilia de Bento XVI na Missa de Quarta-feira de Cinzas -13/02/13
Boletim Sala de Imprensa da Santa Sé
Venerados Irmãos,
caros irmãos e irmãs!
Hoje, Quarta-feira de Cinzas, iniciamos um novo caminho quaresmal, um caminho que se estende por quarenta dias e nos conduz à alegria da Páscoa do Senhor, à vitória da Vida sobre a morte. Seguindo a antiquíssima tradição romana da stationes quaresimais, nos reunimos hoje para a Celebração da Eucaristia. Tal tradição prevê que a primeira statio tenha acontecido na Basílica de Santa Sabina na colina Aventino. As circunstâncias sugeriram reunir-se na Basílica Vaticana. Somos numerosos reunidos ao redor do Túmulo do Apóstolo Pedro também para pedir sua intercessão para o caminho da Igreja neste momento particular, renovando nossa fé no Pastor Supremo, Cristo Senhor. Para mim é uma ocasião propícia para agradecer a todos, especialmente aos fiéis da Diocese de Roma, neste momento em que estou para concluir o ministério petrino, e para pedir especial lembrança na oração.
As leituras que foram proclamadas nos oferecem ideias que, com a graça de Deus, são chamados a se tornarem atitudes e comportamentos concretos nesta Quaresma. A Igreja nos repropõe, antes de tudo, o forte chamado que o profeto Joel dirige ao povo de Israel: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos” (2,12). Sublinhamos a expressão “com todo o coração”, que significa do centro de nossos pensamentos e sentimentos, das raízes das nossas decisões, escolhas e ações, com um gesto de total e radical liberdade. Mas é possível este retorno a Deus? Sim, porque há uma força que não mora em nosso coração, mas que nasce do coração do próprio Deus. É a força da sua misericórdia. Diz ainda o profeta: “Voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (v.13). O retorno ao Senhor é possível como 'graça', porque é obra de Deus e fruto da fé que nós depositamos na sua misericórdia. Este retornar a Deus torna-se realidade concreta na nossa vida somente quando a graça do Senhor penetra no íntimo e o toca doando-nos a força de “rasgar o coração”. É ainda o profeta a fazer ressoar da parte de Deus estas palavras: “Rasgai o coração, e não as vestes” (v.13). Com efeito, também em nossos dias, muitos estão prontos a “rasgar as vestes” diante de escândalos e injustiças – naturalmente cometidos por outros -, mas poucos parecem disponíveis a agir sobre o próprio “coração”, sobre a própria consciência e sobre as próprias intenções, deixando que o Senhor transforme, renove e converta.
Aquele “voltai para mim com todo o vosso coração”, é ainda um apelo que envolve não só o particular, mas a comunidade. Ouvimos na primeira Leitura: “Tocai trombeta em Sião, prescrevei o jejum sagrado, convocai a assembleia; congregai o povo, realizai cerimônias de culto, reuni anciãos, ajuntai crianças e lactentes; deixe o esposo seu aposento, e a esposa, seu leito” (vv.15-16). A dimensão comunitária é um elemento essencial na fé e na vida cristã. Cristo veio “para reunir os filhos de Deus dispersos” (cfr Jo 11,52). O “Nós” da Igreja é a comunidade na qual Jesus nos reúne juntos (cfr Jo 12,32): a fé é necessariamente eclesial. E isto é importante recordá-lo e vivê-lo neste Tempo da Quaresma: cada um esteja consciente de que o caminho penitencial não se percorre sozinho, mas junto com tantos irmãos e irmãs, na Igreja.
O profeta, enfim, se detém sobre a oração dos sacerdotes, os quais, com lágrimas nos olhos, se dirigem a Deus dizendo: “Não deixes que esta tua herança sofra infâmia e que as nações a dominem. Por que se haveria de dizer entre os povos: 'Onde está o Deus deles?'” (v.17). Esta oração nos faz refletir sobre a importância do testemunho de fé e de vida cristã de cada um de nós e das nossas comunidades para manifestar a face da Igreja e como esta face seja, muitas vezes, deturpada. Penso especialmente nas culpas contra a unidade da Igreja, nas divisões no corpo eclesial. Viver a Quaresma em uma mais intensa e evidente comunhão eclesial, superando individualismos e rivalidade, é um sinal humilde e precioso para aqueles que estão distantes da fé ou indiferentes.
"É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação!” (2 Cor 6,2). As palavras do apóstolo Paulo aos cristãos de Corinto ressoam também para nós com uma urgência que não admite ausências ou omissões. O termo “agora” repetido várias vezes diz que este momento não pode ser desperdiçado, ele é oferecido a nós como uma oportunidade única e irrepetível. E o olhar do Apóstolo se concentra sobre a partilha com a qual Cristo quis caracterizar sua existência, assumindo todo o humano até carregar o pecado dos homens. A frase de São Paulo é muito forte: Deus “o fez pecado por nós”. Jesus, o inocente, o Santo, “Aquele que não cometeu pecado”(2 Cor 5,21), carregou o peso do pecado partilhando com a humanidade o êxito da morte, e da morte de cruz. A reconciliação que nos é oferecida teve um preço altíssimo, o da cruz elevada sobre o Gólgota, sobre a qual foi pendurado o Filho de Deus feito homem. Nesta imersão de Deus no sofrimento humano e no abismo do mal está a raiz da nossa justificação. O “voltar a Deus de todo o coração” no nosso caminho quaresmal passa através da Cruz, o seguir Cristo sobre a estrada que conduz ao Calvário, ao dom total de si. É um caminho no qual se aprende cada dia a sair sempre mais do nosso egoísmo e dos nossos fechamentos, para dar espaço a Deus que abre e transforma o coração. E São Paulo recorda como o anúncio da Cruz ressoa em nós graças a pregação da Palavra, da qual o próprio Apóstolo é embaixador; um chamado para nós para que este caminho quaresmal seja caracterizado por uma escuta mais atenta e assídua da Palavra de Deus, luz que ilumina nossos passos.
Na página do Evangelho de Mateus, que pertence ao assim chamado Discurso da montanha, Jesus faz referência a três práticas fundamentais previstas pela Lei Mosaica: a esmola, a oração e jejum: são também indicações tradicionais no caminho quaresmal para responder ao convite de “voltar a Deus como todo o coração”. Mas Jesus destaca que seja a qualidade e a verdade da relação com Deus o que qualifica a autenticidade de cada gesto religioso. Por isso, Ele denuncia a hipocrisia religiosa, o comportamento que quer aparecer, as atitudes que buscam o aplauso e a aprovação. O verdadeiro discípulo não serve a si mesmo ou ao “público”, mas ao seu Senhor, na simplicidade e na generosidade: “E o teu Pai, que vê no escondido, te dará a recompensa” (Mt 6,4.6.18). O nosso testemunho então será sempre mais incisivo quando menos buscarmos nossa glória e formos conscientes que a recompensa do justo é o próprio Deus, o ser unido a Ele, aqui, no caminho da fé, e, ao término da vida, na paz e na luz do encontro face a face com Ele para sempre (cfr 1 Cor 13,12).
Queridos irmãos e irmãs, iniciemos confiantes e alegres o itinerário quaresmal. Ressoe forte em nós o convite à conversão, a “voltar para Deus com todo o coração”, acolhendo a sua graça que nos faz homens novos, com aquela surpreendente novidade que é participação à vida do próprio Jesus. Nenhum de nós, portanto, seja surdo a este apelo, que nos é dirigido também no austero rito, tão simples e ao mesmo tempo tão sugestivo, da imposição das cinzas, que daqui a pouco realizaremos. Nos acompanhe neste tempo a Virgem Maria, Mãe da Igreja e modelo de todo autêntico discípulo do Senhor. Amém!
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Papa cita hipocrisia religiosa e desfiguração da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU