07 Janeiro 2013
Há quase 50 anos, nesta cidade medieval de Tübingen, com as suas colinas íngremes e o vasto câmpus de uma das grandes universidades da Alemanha, Hans Küng e Joseph Ratzinger eram padres e colegas do departamento de teologia. Küng e Ratzinger eram os progressistas mais jovens e mais influentes a assessorar os bispos no Concílio Vaticano II (1962-1965).
A reportagem é de Jason Berry, autor de Render Unto Rome: The Secret Life of Money in the Catholic Church [Dai a Roma: A vida secreta do dinheiro na Igreja Católica]. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 26-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando se concluiu o Vaticano II, ele desencadeou um movimento histórico na Igreja por um maior engajamento na vida cotidiana do povo de Deus, a massa dos fiéis. Surgiu uma nova sensibilidade pela justiça e pelos direitos individuais na Igreja, que iria crescer para 1 bilhão de católicos em todo o mundo, com missões de ativismo em muitos dos países mais pobres do planeta.
De volta à Universidade de Tübingen, Küng, natural da Suíça, e Ratzinger, que havia crescido na escuridão nazista da sua Alemanha natal, logo se viram em desacordo acerca das mudanças radicais na Igreja, em um debate teológico que ecoaria em toda a Europa e a Igreja global.
Agora, durante o 50º aniversário do Vaticano II, Küng, um renomado acadêmico internacional, e Ratzinger, conhecido como Papa Bento XVI, estão ainda mais em desacordo. Das muitas questões que os dividem, Küng vê a tentativa de conter a Leadership Conference of Women Religious dos EUA como um sinal de miopia, uma falha de visão.
"Você não pode negar que Joseph Ratzinger tem fé", disse Küng, de paletó e gravata, sentado em seu escritório, falando em tons calmos no crepúsculo azul. "Mas ele é absolutamente contra a liberdade. Ele quer obediência".
"Ele é contra o paradigma do Vaticano II". Küng fez uma pausa. "Ele tem uma ideia medieval do papado".
"Muitas irmãs são mais instruídas e mais corajosas do que inúmeros clérigos homens", disse ele com naturalidade. A Cúria Romana "irá tentar condená-las".
A lendária batalha intelectual entre Küng e Ratzinger reflete as divisões na Igreja em geral. Sua separação começou logo após o Vaticano II. Durante as revoltas estudantis de 1968, Ratzinger ficou horrorizado quando os manifestantes irromperam em sua sala de aula. Nesse mesmo ano, a encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, que condenava o uso da contracepção artificial, foi de encontro a enormes protestos de leigos, teólogos como Küng e até mesmo bispos dispersos.
Ratzinger dobrou para a direita, abraçando a continuidade institucional. Küng atacou a infalibilidade papal como um acidente da história, desprovida de significado teológico genuíno.
Küng vê a crise dos abusos do clero e a repressão contra a organização das lideranças das irmãs norte-americanas como sintomas de uma estrutura de poder patológica. Em sua opinião, o impacto sobre a autoridade moral e as finanças da Igreja é uma crise que rivaliza com a Reforma Protestante.
Em seus anos na universidade de Tübingen, Ratzinger, educado e livresco, era visto frequentemente em sua bicicleta. "Ele não tinha carteira de motorista", lembrou Hermann Häring, um teólogo aposentado da mesma instituição que conheceu a ambos.
Ratzinger via o futuro da Igreja na reconstrução das suas raízes ortodoxas.
Da academia, Ratzinger elevou-se a arcebispo de Munique e Freising, depois a cardeal, nomeado em 1981 pelo Papa João Paulo II como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo escritório da Inquisição Romana. Por processar teólogos que se afastavam da doutrina oficial, ele ficou conhecido como um duro executor da verdade.
Küng tornou-se um teólogo popular e altamente influente com um grande fluxo de escritos, incluindo um livro crítico sobre a infalibilidade papal. O Vaticano reagiu com uma investigação doutrinal e a suspensão da licença de Küng para ensinar teologia em 1979. Mas na Universidade de Tübingen, uma instituição pública que remonta a 1477, Küng tinha segurança no trabalho. Ainda como padre, ele se tornou um pária para os católicos ortodoxos e um herói intelectual para os fiéis em geral, enquanto continuava publicando e falando publicamente.
Enquanto os processos da congregação doutrinal alvejavam mais estudiosos da Igreja tais como o padre norte-americano Charles Curran e Leonardo Boff, o estudioso brasileiro da teologia da libertação, Küng comparava Ratzinger ao Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski – o sinistro monge que diz a Jesus que as massas devem ser subjugadas por superstição para que a religião mantenha o seu poder.
"Você não pode defender os direitos humanos na sociedade e não defendê-los na Igreja", disse Küng. "Na Irlanda, o primeiro-ministro é mais franco do que qualquer um" – referindo-se ao virulento discurso de Enda Kenny no Parlamento em 2011, quando atacou o Vaticano pela arraigada ocultação de pedófilos. A Irlanda fechou a sua embaixada na Santa Sé.
Na edição francesa de seu novo livro (A Igreja ainda pode ser salva? No Brasil, publicado pela Editora Paulus, 2012), Küng expande a analogia entre uma Igreja que uma vez julgava hereges e a injustiça na Congregação para a Doutrina da Fé sob Ratzinger, como cardeal e agora como papa.
"A Inquisição Romana continua existindo", escreve ele, "com métodos de tortura psicológica e o uso de muitos manuais de coação nos dias de hoje".
Küng, 84 anos, ampliou o tema da Inquisição em uma entrevista no dia 15 de novembro em sua residência de dois andares, que também sedia os escritórios da Fundação Ética Mundial, por ele fundada.
"A Cúria Romana percebeu que a vida prática das irmãs era diferente", disse, "e isso foi o suficiente para persegui-las. Você vai a Roma para uma audiência, e é um ditado – é pegar ou largar".
Küng e Bento XVI personificam os campos polarizados da Igreja em sua evolução desde o Vaticano II. Um lado vê uma Igreja de aspirações crescentes nos leigos, particularmente nas mulheres. O lado papal busca um retorno a uma piedade mais profunda, a uma tradição baseada em regras que honra a hierarquia.
A noção monárquica de absolutismo papal vê Bento XVI e João Paulo II se destacarem em alto relevo a partir do clamor dos teólogos e ativistas inspirados no Concílio Vaticano II. Küng vê a investigação vaticana sobre o grupo de lideranças das religiosas como sintomática de uma retração papal a partir do Vaticano II.
"A dissidência é importante na história dos Estados Unidos", explicou. "A Igreja Católica é diferente. Eles estão perseguindo pessoas que estão discordando... Será que a Igreja é um chefe que tem a verdade, e não muita justiça?"
Küng disse não estar surpreso com o fato de que o clima de medo gerado pela congregação doutrinal tenha sido recebido com silêncio pelos padres norte-americanos.
"Eu já escrevi", disse ele, como se a lição devesse ser memorizada, "que um padre, agindo sozinho, não é ninguém. Dez sacerdotes são uma ameaça levada a sério. Cinquenta padres agindo juntos são invencíveis".
Küng anunciou sua aposentadoria para 2013, quando completará 85 anos. A bela casa forrada de livros de Tübingen continuará hospedando a fundação que ele lançou. Para um homem de um idealismo tão feroz, ele parece um retrato de serenidade.
"Muitas pessoas não ficam na Igreja porque elas a identificam com o bispo local", disse ele, enquanto as luzes da cidade brilhavam ao longo dos vales de Tübingen. "Elas são leais à sua comunidade, e não à Cúria Romana".
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Hans Küng condena e resiste à moderna ''Inquisição romana'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU