04 Novembro 2014
Aos 33 anos, Diego Enrique Osorno é um cabrón marcado para morrer. Repórter mexicano, autor de seis corajosos livros sobre a conjuntura político-social de seu país neste início de século, ele pôs no centro de sua mira jornalística o brutal universo do narcotráfico - que transportou o emergente México das páginas de economia para as policiais.
A entrevista é de Ivan Marsiglia, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02-11-2014.
Não é tarefa fácil em um país considerado dos mais perigosos para o exercício da profissão, segundo a organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras (RSF), com sede em Paris. Por causa de suas reportagens - em que o narcotráfico nas regiões fronteiriças mexicanas é descrito em detalhes, com suas conexões com os poderes locais, as questões migratórias e a política internacional de “guerra às drogas” - Osorno teve, em duas ocasiões, que refugiar-se no exterior e tem sido alertado pelas próprias autoridades que não se cansa de criticar para que ande escoltado, o que se recusa.
No dia 26 de setembro, o desaparecimento de 43 estudantes de Iguala, na região de Guerrero, a menos de 200 km da Cidade do México, pouco depois de terem sido abordados por policiais locais, deu contornos de tragédia internacional ao que era tratado como um problema interno de segurança pública. Indícios dão conta de que os jovens foram entregues ao cartel Guerreros Unidos para encobrir “excessos” da operação policial.
“O que aconteceu em Iguala não é um problema do narcotráfico. É um problema de decomposição política e social”, dispara o repórter na entrevista que você lê a seguir. Nela, Osorno mostra como esses grupos criminosos tornaram-se “organizações empresariais muito sofisticadas”, com estratégias de poder e de comunicação e com participação de quadros policiais e militares que as deveriam combater - de forma semelhante ao que ocorre, diz, com as milícias no Rio de Janeiro. Uma “estrutura necropolítica que cruza de forma transversal diferentes níveis de governo, desde o ponto mais alto da escala do poder até suas zonas mais baixas”.
Eis a entrevista.
Na quarta-feira, o novo prefeito de Iguala, Luis Mazón, renunciou ao cargo poucas horas depois de assumir. A situação é tão grave que ninguém se dispõe a enfrentá-la?
Essa crise lamentável evidenciou não somente a irresponsabilidade dos políticos locais como dos mais altos funcionários do governo federal. O desaparecimento dos estudantes ocorreu no dia 26 de setembro e logo nos primeiros dias o secretário de governo, equivalente a vice-presidente no México, declarou que o governo local deveria resolver a crise com os próprios meios - o que era evidentemente uma irresponsabilidade. Agora, as autoridades locais e federais se dizem preocupadas com a situação, mas isso só por causa da enorme pressão social que foi crescendo, em nível nacional e internacional, para que se encontrem com vida esses 43 jovens. O desaparecimento se transformou numa batata quente para o governo, que demonstra não saber o que fazer.
O que aconteceu com os 43 estudantes?
Tenho a esperança de que estejam vivos, mas infelizmente o padrão do que tem ocorrido nesse tipo de caso no México não é nada alentador. Considero que não apenas devam ser procurados em covas clandestinas, mas também nos centros de detenção ilegal que desgraçadamente se tornaram usuais na região de Guerrero e em outras do país.
Há algumas semanas, outro caso chocou o mundo: o da médica e blogueira María del Rosario Fuentes Rubio, que foi assassinada e teve fotos de seu cadáver postadas na conta anônima que mantinha no twitter para denunciar o narcotráfico. No caso, surpreendeu que criminosos tenham feito uso de hackers para realizar seu intento. De que tipo de recursos esses grupos dispõem hoje no México?
Trata-se de organizações empresariais muito sofisticadas. Quem imagina que os narcos mexicanos são quadrilhas sem importância ou meros camponeses armados engana-se redondamente. Na realidade, os narcos são empresários armados e associados com políticos para realizar seus negócios. E, como em qualquer empresa, esses grupos criminosos procuram organizar seu trabalho recrutando especialistas em cada área. No caso da comunicação eles se deram conta de que se trata de um aspecto fundamental de sua operação e, de uns cinco anos para cá, criaram células encarregadas desse trabalho.
No livro A Guerra dos Zetas, você destrincha as relações entre o narcotráfico e as questões políticas da região fronteiriça mexicana de Tijuana e Ciudad Juárez. De que maneira os dois fenômenos estão interligados?
No noroeste mexicano, verdadeiras legiões de prefeitos e governadores envolveram-se com esses grupos para obter financiamento lícito e ilícito para suas campanhas eleitorais e outros fins. E, quando chegavam ao cargo, renunciavam à tarefa de governar suas cidades e se dedicavam a administrar a destruição delas. Nesse contexto político, não é de se admirar que os corpos policiais municipais tenham deixado de combater o crime e se convertido em uma força criminosa em si mesma. A alta demanda de cocaína do país vizinho, os Estados Unidos, enlouqueceu de ambição milhares de mexicanos de diversas esferas que, para aproveitar a demanda, associaram-se ao tráfico.
Seu livro anterior, O Cartel de Sinaloa, conta a gênese desses grupos criminosos e aponta para o uso político do narcotráfico em seu país. Como isso se deu?
Em 2000, ano em que comecei a trabalhar como repórter, não houve o temido bug do milênio, mas surgiram Los Zetas. Do noroeste do México, ouvíamos relatos acerca deles sem que ninguém prestasse muita atenção. A derrota do PRI (Partido Revolucionário Institucional, que esteve por sete décadas no comando da política mexicana) e o início da suposta transição eram temas mais valorizados nas redações dos jornais. Como era de se esperar, a derrota eleitoral e a incontrolável ambição de poder de seus quadros desataram um verdadeiro cisma no interior do “Dinossauro”, como chamamos o PRI. Do que derivou a expulsão de vários priistas conhecidos, como a cacique sindical Elba Esther Gordillo. Em seguida, o país testemunhou um violento ataque político do governo Vicente Fox contra o chefe de governo do Distrito Federal, Andrés Manuel López Obrador.
Um clima de muita instabilidade política.
Assim chegamos nas ríspidas eleições presidenciais de 2006, ganhas por uma margem de apenas 0,56% em um país já cético em relação às urnas. De modo que o presidente Felipe Calderón chegou ao poder em meio a uma crise (o candidato perdedor nunca reconheceu a vitória nem se reuniu com ele) e decidiu usar a estratégia típica de governos débeis em outras partes do mundo: declarar uma guerra. Contra quem? Supostamente, o narcotráfico, embora de fato não tenha sido assim. Seguimos padecendo dessa desastrosa estratégia de confrontação. Os 43 estudantes são vítimas, como milhares de mexicanos, de um presidente civil que se vestiu de militar no dia 3 de janeiro de 2007 para invocar a ajuda do Exército apenas para legitimar seu nascente governo.
Em sua opinião, então, o enfrentamento do tema pelo governo Peña Nieto não tem sido o mais correto.
O que aconteceu em Iguala não é um problema de narcotráfico. É um problema de decomposição política e social. Guerrero é um Estado onde o Exército mexicano estimulou diversos grupos armados a defender caciques políticos locais, em alguns casos usando o próprio tráfico de drogas para se financiar. Os estudantes não estão desaparecidos por causa do tráfico, mas por um assunto político. Esses jovens passaram anos sendo atacados e criticados pelo governo, cujo discurso contra eles gerou um ódio veiculado pelos meios de comunicação e agora se concretizou no assassinato de alguns e no desaparecimento de 43.
Como é a real situação de perigo a que estão submetidos os jornalistas hoje no México? Você chegou a temer pela vida?
É uma situação muito difícil. Tive que sair do país em duas ocasiões por causa das ameaças que recebi e no momento estou sendo pressionado a solicitar uma escolta pessoal, em relação à qual ainda não me decidi. Nós, jornalistas mexicanos, tivemos que aprender a controlar o medo. Alguém ligeiramente paranoico não consegue ser repórter no México.
O filme Tropa de Elite 2 mostra como grupos paramilitares estão substituindo os traficantes das favelas cariocas e atuando como máfias 'institucionalizadas'. Você vê semelhanças com a adesão de militares aos grupos narcos que ocorreu em seu país?
Sem dúvida. O filósofo camaronês Achille Mbembe mostrou como, ao lado dos exércitos tradicionais, têm surgido máquinas de guerra. ‘Máquinas de guerra formadas por homens armados que se dividem ou se somam entre eles, dependendo das circunstâncias ou das tarefas que tenham que realizar’, ele escreveu. ‘São organizações polimorfas e difusas, que se caracterizam pela capacidade de metamorfose. Sua relação com o espaço é móvel. Às vezes desenvolvem vínculos complexos com as estruturas de Estado (desde autonomia até sua incorporação)”. Exemplos de máquinas de guerra mexicanas seriam o comboio armado que sequestrou o jornalista Raymundo Pérez Arellano em Reynosa ou a caravana que assaltou Ciudad Mier, em Tamaulipas, na manhã de 22 de fevereiro de 2010.
Quem está por trás das ‘máquinas de guerra’ mexicanas?
O real motor por trás desses grupos é difícil de identificar, pois se encontra oculto em uma estrutura necropolítica que cruza de forma transversal diferentes níveis de governo, desde o ponto mais alto da escala do poder até suas zonas mais baixas. Essa estrutura é que produz as representações que espalham o terror em territórios imensos, como ocorre em Nuevo León, Tamaulipas e Coahuila, uma região do noroeste mexicano cuja extensão é superior à metade de toda a América Central.
Em um cenário tão desolador, quais deveriam ser os primeiros passos de uma política efetiva e responsável em relação às drogas?
Falta que os responsáveis por tanta dor prestem conta de seus atos e das opções políticas que fizeram. É a luta que segue para os milhares de afetados por essa perversa política antidrogas criada nos EUA e alimentada no México pela demagogia e pelo dinheiro. Também é preciso encontrar os milhares de desaparecidos na voragem da guerra de Felipe Calderón e as vítimas do discurso triunfalista de Enrique Peña Nieto. A guerra contra as drogas é um fracasso há 30 anos e ainda assim continua a ser sustentada em nível internacional. Por quê? Talvez porque existe quem esteja se beneficiando desse fracasso.
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Necropolítica da droga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU