23 Outubro 2014
O ex-presidente dos bispos italianos, Dom Camillo Ruini, cardeal, fala sobre Igreja, gay e divorciados: "Essa onda libertária poderia refluir".
A reportagem é de Aldo Cazzullo, publicada no jornal Corriere della Sera, 22-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Eminência, do Sínodo sai uma Igreja dividida. Votou-se, as posições defendidas pelo papa prevaleceram, mas até uma certa medida. Que impressão o senhor teve dele?
Aquela que o Papa Francisco expressou no discurso conclusivo: não uma Igreja dividida, mas uma Igreja com posições diferentes. Uma Igreja que é comunhão: o único corpo de Cristo, no qual somos membros uns dos outros. Parece-me um pouco forçado dizer que certas posições eram defendidas pelo papa, em vez de certas outras. Ele mesmo quis que houvesse plena liberdade de expressão. E também é muito arriscado falar de maiorias e minorias.
Mas se coagularam elementos de discordância e de descontentamento para com Francisco. É normal? Ou consequências negativas podem decorrer disso?
Esses elementos podem existir, certamente não é a primeira vez. Aconteceu também no Concílio. Consequências negativas podem ocorrer se alguém se esquecer que o papa é a cabeça e o fundamento visível da unidade da Igreja.
Francisco criticou "os zelosos, os escrupulosos, os cautelosos, os chamados tradicionalistas, os intelectualistas". A quem ele se referia?
Mas ele também criticou os bonachões, aqueles que gostariam de descer da cruz ou maquiar o depositum fidei para contentar as pessoas. Colocar o papa de um lado contra o outro é fazer o contrário do que o próprio papa nos pede.
Na entrevista com Ferruccio de Bortoli, Francisco disse que não se reconhece na fórmula dos valores inegociáveis. Mas essa fórmula foi central nos últimos anos para o Vaticano e também para a Conferência Episcopal Italiana.
A fórmula remonta a uma nota de novembro de 2002 da Congregação para a Doutrina da Fé, liderada então pelo cardeal Ratzinger, que a usou às vezes também como papa. A expressão dizia respeito ao compromisso dos católicos na vida política, e o significado era especificado na própria nota: servia para distinguir as exigências éticas irrenunciáveis das questões sobre as quais é legítima que os católicos uma pluralidade de orientações. Eu mesmo usei essa fórmula. Mas não gosto de fazer questões de palavras e não tenho dificuldade em renunciar a uma expressão que, com efeito, foi muitas vezes mal interpretada; como se privasse os católicos envolvidos na política da sua liberdade e responsabilidade, enquanto se limita a instá-los à coerência, confiando esse pedido de coerência à liberdade de cada um.
É verdade que um grupo de cardeais, durante o Sínodo, foi ao encontro de Ratzinger para pedir uma intervenção dele, recebendo uma recusa?
Nunca ouvi falar disso. Ficaria um pouco surpreso se isso tivesse ocorrido, sem que, antes ou depois, algum boato chegasse aos meus ouvidos.
Qual é, hoje, o papel do papa emérito? O senhor conversa com ele?
Eu fui encontrá-lo duas vezes, a última em setembro passado. Falamos sobretudo de teologia. O seu papel foi especificado por ele mesmo: ele não exerce nenhuma função de governo; ele sustenta a Igreja a partir de dentro, com a oração e com a força do seu pensamento teológico.
É realmente impossível dar a comunhão a um divorciado sem violar a indissolubilidade do matrimônio?
Se o matrimônio permanece indissolúvel e, portanto, continua existindo, contrair um novo matrimônio seria um caso de bigamia; e ter relações sexuais com outras pessoas seria um adultério. Não se pode pretender que o matrimônio seja indissolúvel e que seja possível se comportar como se não o fosse.
Regra inalterada, práxis mais elástica: será esse o compromisso final?
É provável. Na missa dessa segunda-feira, cita-se um salmo que diz: "Verdade e misericórdia se beijaram". Essa ideia já está no Antigo Testamento, está no mistério de Deus. Realizá-la no mundo criado pode ser fatigante. Mas temos um ano de tempo para encontrar o caminho certo.
O senhor falou de direito divino. O papa convidou-os a se deixarem surpreender por Deus.
Eu penso assim e devo dizer o que penso. O papa também reafirmou a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade, a procriação do matrimônio, em termos muito claros.
O senhor está dizendo que Francisco mudou a linguagem e os temas, apontando para o social, mas não a doutrina?
Cada papa tem a sua sensibilidade. Wojtyla era um polonês que havia sido temperado na luta contra o comunismo e, por isso, passou como um papa conservador: na realidade, ele definia o Concílio como "a maior graça do século XX". Ratzinger é um grande teólogo alemão. Francisco foi o primeiro papa latino-americano e tem uma sensibilidade diferente.
A avaliação atual é que a Igreja passou do conservadorismo ao progressismo. Está errado?
A ótica não é apropriada, mas, se quisermos usar categorias mundanas, também se pode dizer isso. E pode acontecer que nós, homens da Igreja, demos a essa linguagem impróprio algum pretexto. O fato é que a Igreja é uma coisa diferente. É uma comunhão.
Existe hoje uma oposição na Igreja? Com um líder?
Não há uma oposição e muito menos um líder da oposição. Não consigo imaginar em quem se poderia pensar para um papel desse tipo: ninguém tem a veleidade para isso.
O senhor já leu o livro de Antonio Socci, Non è Francesco?
Não li. Se quiser saber o que penso da tese segundo a qual papa teria sido eleito invalidamente, eu lhe digo desde já que a considero totalmente infundada e bastante ridícula. Nunca ouvi um único cardeal que tenha participado do conclave dizer algo que, de algum modo, se assemelhasse a isso.
O senhor não acha que, no setor editorial laico, teve início um "ataque de direita", que dá voz a uma parte do mundo católico que não se reconhece nesse papado?
Um pequeno ataque desse tipo, infelizmente, existe; talvez também em reação à tendência de outras editoras laicas de se apropriarem do Papa Francisco, para transformá-lo em um defensor das teses contrárias ao catolicismo. As duas coisas se contrastam; mas o poder midiático dessa segunda atitude é muito mais forte. Uns têm os seus rifles de carregamento manual; os outros têm a aviação.
Símbolos, vestiário, estilo: chamaram a sua atenção as escolhas de Francisco? Incluindo a de não viver no Apartamento?
Chamaram-me muito a atenção, mas de maneira decididamente favorável. Acho que foram uma verdadeira bênção para a Igreja: contribuíram para fazer com que ela superasse um momento difícil. Em particular, o papa está em Santa Marta não por motivos "ideológicos", mas porque se encontra mais à vontade em contato constante com as pessoas, como ele mesmo disse.
O senhor concorda com o cardeal Scola, quando ele diz que a Igreja está atrasada a respeito da homossexualidade?
A questão do atraso ou da antecipação depende da direção de marcha em que se vai. Quando eu era um jovem sacerdote e vários homossexuais vinham falar comigo e às vezes se confessar, eles diziam que encontravam na Igreja um ambiente respeitoso e compreensivo. Tornei-me amigo de alguns. Agora, a Igreja é considerada atrasada porque continua considerando a homossexualidade não conforme com a realidade do nosso ser, que está articulada em dois sexos do ponto de vista orgânico, psicológico e, mais em geral, antropológico. Só o tempo dirá se, ao afirmar isso, a Igreja está atrasada ou antecipada em relação à opinião predominante.
Na Itália, parece próximo o entendimento sobre as uniões civis, com o consenso de Berlusconi. É um erro?
Sobre esse ponto, eu me expressei no tempo dos Dico, e não mudei de opinião. É justo tutelar os direitos de todos; mas os verdadeiros direitos, e não os imaginários. Se houver qualquer direito atualmente não tutelado que seja justo tutelar, e eu duvido, para fazer isso não é preciso reconhecer os casais como tais. Basta afirmar os direitos dos indivíduos. Parece-me o único modo de não tomar o caminho que leva ao matrimônio entre casais do mesmo sexo.
Mas, na Itália, se fala de uniões civis, não de matrimônio.
Se o conteúdo é muito semelhante, de pouco adianta mudar o nome do recipiente.
O que o senhor pensa de Marino [prefeito] que, em Roma, registra casamentos gays?
Um prefeito tem o direito de defender as próprias posições, mas nem por isso pode violar as leis do Estado.
Haverá também na Itália um movimento de protesto?
Ninguém pode descartar isso. Na França, o movimento Manif pour tous certamente não foi organizado pela Igreja: é uma força grande e variada, que levou o governo a ser mais prudente.
O senhor está dizendo que a onda libertária pode defluir?
Nos anos 1970, muitos não marxistas estavam convencidos de que o marxismo era um horizonte insuperável para a cultura e a história. Mas, depois, o marxismo se dissolveu e foi substituído por perspectivas diferentes. À época, eu me ocupava com os jovens: em poucos anos, tudo mudou; Marx não interessava mais. Não sei dizer se vai acontecer algo semelhante com a atual tendência libertária; mas não descarto isso.
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''A onda libertária vai refluir.'' Entrevista com Camillo Ruini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU