21 Outubro 2014
Mais de dois milhões de fiéis, peregrinos e espectadores se juntaram em torno da figura de madeira que representa a Virgem Maria enquanto esta fazia o seu trajeto pelas ruas. Uma multidão de fiéis assegurava e arrastava uma corda que se estendia por alguns quilômetros a partir da berlinda que levava a querida estátua, arrastando-a, palmo a palmo, através da multidão encharcada de suor. Fogos de artifício marcavam a sua massagem.
A reportagem é de Benjamin Soloway, publicada por Religion News Service, 18-10-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Círio de Nazaré é o maior evento religioso no Brasil deste ano. Ele acontece anualmente na região amazônica, no estado do Pará.
Celebrado na segunda semana de outubro, a observância, a procissão católico-romana e uma série de celebrações e tradições que se desenvolveram em seu entorno atraem participantes de todo o Brasil, quase duplicando o tamanho da pequena cidade portuária.
Ardua demonstração pública de devoção, o Círio tem persistido e prosperado como uma peça central da cultura regional amazônica – mantendo níveis consistentes de participação a cada ano –, mesmo quando o catolicismo perde terreno para igrejas evangélicas numa transformação profunda da sociedade brasileira.
Segundo um relatório divulgado no ano passado pelo Centro de Pesquisas Pew, o número de brasileiros que se identificavam como católicos caiu para 65% da população em 2010, abaixo dos 74% em 2000. A população protestante cresceu 7% ao longo do mesmo período – uma tendência observada em toda a América Latina. Ainda há mais católicos no Brasil do que em qualquer outro país do mundo, mesmo que os números venham caindo rapidamente.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que constrói os dados censitários no país, descobriu que Belém tem menos católicos e mais evangélicos do que a média nacional.
Mas no Brasil, onde as tradições africanas e indígenas se misturam com o cristianismo há séculos e onde o catolicismo tem raízes culturais profundas, as identidades religiosas não são tão definidas assim.
“Muitos dos fiéis das igrejas pentecostais acompanham o Círio”, diz Raymundo Heraldo Maues, professor de Antropologia com especialização em Círio de Nazaré, da Universidade Federal do Pará.
“Às vezes, os cientistas sociais se esforçam para reconciliar as formas como as pessoas se identificam com as formas como elas, de fato, se comportam”, afirma Alan Cooperman, diretor de pesquisas religiosas no Centro Pew.
“As definições que as pessoas se atribuem quase nunca se adequam por completo com aquilo que os outros pensam ser as crenças normativas e práticas que deveriam estar presentes junto destas mesmas definições”, afirmou.
Na região, a maioria das igrejas evangélicas admoestam os seus fiéis claramente sobre o Círio, mas estas admoestações entram, muitas vezes, por um ouvido e saem pelo outro. Algumas não são tão rígidas nesse sentido. Os membros das Assembleias de Deus, a maior igreja pentecostal no Brasil, distribuem alimentos e água ao longo da procissão.
“As pessoas são contra o Círio”, disse Wanessa Nunes, 20, católica quando criança, participando atualmente de uma comunidade batista que evita o festival. “Dizem que qualquer contato que tivermos com o Círio conta como idolatria”. No entanto, ela veio observar a procissão e mesmo considerou “ir na corda”: ajudando a puxar a imagem para o seu lugar de descanso, na Basílica de Nazaré.
Durante a procissão no dia 12 de outubro, os fiéis se acotovelavam para conseguir ver, ou melhor: tocar a berlinda ou a corda, enquanto a figura de madeira da Nossa Senhora de Nazaré – conhecida localmente como “Rainha da Amazônia” ou “A Nossa Santinha” –, protegida por um vidro polido, seguia em frente.
Os que se colocam próximos do centro das procissões se arrastaram num ritmo laborioso por quase seis horas ao longo de uma curta distância, através de uma multidão e de um calor escaldante.
Alguns fizeram o trajeto todo de joelhos, para pedir um favor à Virgem ou para agradecê-la por uma intercessão.
Muitos caem ao longo do caminho. Havia 20 estações da Cruz Vermelha, organizadas por centenas de voluntários que corriam em meio ao tumulto para carregar até um lugar seguro os que caíam.
Os praticantes da Umbanda, religião brasileira que mistura tradições africanas, cristãs e indígenas, também participaram.
“Na Umbanda, nós cultuamos os santos, então é normal para nós celebrar o Círio”, disse Edson Elias, morador de Belém, durante uma refeição tradicional do Círio em sua casa.
“Muitas pessoas de outros grupos religiosos participam no Círio e encontram nele um ambiente acolhedor”, afirma o arcebispo local, Dom Alberto Taveira Correa via email.
O Círio é celebrado há 222 anos. Foi inspirado por um morador local chamado Plácido Jose de Souza, quem encontrou uma estátua há muito tempo perdida de Virgem Maria, às margens de um rio. Segundo a lenda, sempre que ele trazia a figura junto de si, ela teimosamente voltava ao lugar onde fora descoberta – o mesmo lugar em que a basílica se encontra hoje.
A Maria original está desativada atualmente, pois é demais venerada, não podendo se arriscar nas ruas. Em seu itinerário contemporâneo, o Círio não é mais um simples evento religioso, mas cresceu para incorporar celebrações culturais – e até mesmo contraculturais.
“Não é só [um evento] religioso, mas parte da cultura do estado do Pará”, disse o prefeito de Belém, Zenaldo Rodrigues Coutinho Jr. No ano passado, a Igreja e município trabalham juntos para inscrever o Círio na lista da Unesco que reúne os Patrimônios Culturais da Humanidade.
O Círio, assim como muitos festivais religiosos brasileiros, traz consigo uma grande parcela do profano juntamente com o sagrado, incluindo música ao vivo e festas dançantes regadas a bebida. O mais icônico de tudo é a Festa da Chiquita, festa LGBT ao ar livre que, na noite anterior à procissão, reuniu cerca de 700 mil foliões.
A Festa da Chiquita começou em 1978 como uma paródia do Círio, e continua assim até hoje, porém aproximou a sua data festiva para o fim de semana do Círio de Nazaré, tornando-se um elemento indispensável do próprio festival.
“Nós achamos que a Igreja não é tão santa assim, e que o profano não é tão profano como se pensa”, disse Eloi Iglesias, um ícone gay local e organizador da Chiquita. “Todos estes queers são católicos”.
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Apesar de os brasileiros estarem abandonando o catolicismo, a procissão da Virgem Maria continua popular como nunca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU