Por: Cesar Sanson | 11 Setembro 2014
Luiz Henrique, que concilia as tradições indígenas (à esq) com seu trabalho como advogado de questões como demarcação de terras
Luiz Henrique Eloy Amado tem 25 anos e é um dos poucos advogados no Brasil dedicados exclusivamente à demarcação e à reintegração de terras indígenas. Em depoimento à BBC Brasil, 10-09-2014, o índio terena - que se formou em Direito, fez mestrado na Universidade Católica Dom Bosco (MS) e se prepara para fazer doutorado em Antropologia - relata a resistência enfrentada por lideranças jovens dentro e fora de suas comunidades.
Eis o depoimento.
"Deixei a aldeia Ipegui, de Aquidauana (MS), para cursar o ensino superior já pensando em devolver algo à minha comunidade. Fiz parte das primeiras levas de indígenas que tiveram acesso à universidade entre 2005 e 2006.
Ali eu convivia com vários indígenas, e vi que o problema deixou de ser o acesso à universidade, passou a ser a permanência - os índios têm dificuldades financeiras, (se comunicam em sua) língua materna, ficam longe da comunidade, sofrem preconceito.
Nos cinco anos do curso de Direito, em nenhum momento, os direitos dos povos indígenas foram abordados. Então fizemos um grupo de estudo sobre o tema, com acadêmicos e índios. Depois de me formar, comecei a atuar exclusivamente na área de questões coletivas e na demarcação de terras, porque as comunidades indígenas têm uma carência muito grande (de advogados).
Faço oficinas nas comunidades sobre os direitos do povo indígena e atuo em processos de demarcação de terra e reintegração de posse. Na esfera criminal, defendo lideranças criminalizadas pela luta pela terra. Não atuo em casos de crime comum, apenas de índios que respondem processos por seu ativismo.
Um dos casos de maior destaque foi o do 'leilão da resistência', em dezembro, quando fazendeiros organizaram um leilão para arrecadar fundos para contratar empresas privadas para a segurança das fazendas.
Só que na maior parte dos casos de lideranças indígenas mortas, tem sempre uma empresa de segurança ou um pistoleiro envolvido. Entramos com recurso e a Justiça Federal suspendeu o leilão; os fazendeiros recorreram e fizeram o leilão, mas conseguimos bloquear o dinheiro (cerca de R$ 1 milhão). O processo está correndo.
(Nota: À época, os fazendeiros afirmaram que a contratação de seguranças serviria para garantir sua integridade física e de suas propriedades. O caso ainda está sendo discutido pela Justiça). O interessante é que foi a primeira vez que a própria comunidade indígena (entrou com a ação) para defender seus direitos, não a Funai ou o Ministério Público Federal (MPF).
Também conseguimos o fechamento de uma empresa de segurança privada envolvida na morte de um indígena. Nesse caso, sou assistente de acusação da família.
Nunca sofri ameaça direta (pela atuação como advogado), mas vários amigos dizem ter ouvido rumores e me alertam para que eu tome cuidado. Já fui perseguido por caminhonetes e tive que me esconder no mato. Hoje tomo vários cuidados e restrinjo minha rotina.
A causa mais urgente para os índios hoje é, com certeza, a questão territorial. Um terço das terras indígenas do Brasil ainda não foi demarcado, e as que foram estão ameaçadas, seja pelas atividades mineradora e madereira ou pelas hidrelétricas.
O Brasil adotou um modelo de desenvolvimento que não contempla os povos indígenas, vistos como empecilho. Passam por cima dos nossos direitos, e o Brasil é cobrado lá fora por isso. Nas minhas andanças pelo Estado, escuto muito das lideranças (indígenas) e dos fazendeiros uma revolta pela omissão do governo federal na questão. A percepção é de que o governo está de braços cruzados assistindo aos conflitos. As comunidades fazem retomadas (de terras) por conta própria, e o fazendeiro se vê no direito de se armar.
Esse era o fundamento do leilão da resistência: 'o governo não está fazendo nossa segurança'. Isso tem crescido, a violência está crescendo. E nessa disputa os povos indigenas são as maiores vítimas.
Vejo que as lideranças jovens sofrem muita resistência aqui. Uma vez, fazendeiros questionaram na Assembleia Legislativa do Estado (do Mato Grosso do Sul) se eu tinha (registro na) OAB para advogar em nome da causa terena, por eu ser jovem. Já cheguei a entrar em cartórios do fórum para pedir processos e me dizerem: 'Estagiário não pode pegar o processo'. Daí tenho que provar que sou advogado.
Já vi até lideranças indígenas tradicionais fazerem críticas à juventude. Pessoas que estão há 20 ou 30 anos lutando veem o jovem falando e resistem. Falo não por mim, mas num contexto geral. Mas temos quebrado essa resistência quando começamos a dialogar, mostrando que não estamos substituindo ou concorrendo (com os mais velhos) - estamos a serviço da comunidade. Há jovens trabalhando pelas comunidades indígenas em várias áreas: estudantes brigando junto ao Ministério da Educação pela permanência dos índios no ensino superior, jornalistas dando visibilidade aos problemas e práticas culturais, antropólogos fazendo registros orais e contribuindo em laudos judiciais, algo que é fundamental em muitas causas.
Ainda quero, nos próximos anos, prestar concurso para o MPF (Ministério Público Federal), na defesa das populações tradicionais (indígenas e quilombolas).
Acho perfeitamente possível conciliar (as tradições indígenas) com a vida acadêmica. A pessoa tem que saber que está ocupando novos espaços, mas sem esquecer de suas raízes. Vivo em Campo Grande, mas com um pé na minha aldeia."
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'Quero devolver algo à minha comunidade', diz jovem índio que virou advogado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU