04 Agosto 2014
Quarenta anos depois que as primeiras mulheres foram ordenadas ao sacerdócio na Igreja Episcopal, a bispa presidente da igreja – isso mesmo, bispa – não tem certeza em qual lar espiritual estaria caso a igreja ainda se recusasse a ordenar mulheres.
A reportagem é de Bill Tammeus, publicada pelo National Catholic Reporter, 28-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Não sei se ainda seria membro desta igreja”, diz a bispa Katharine Jefferts Schori em entrevista ao National Catholic Reporter. “Aliás, é uma boa pergunta”.
Primeiramente a Igreja Episcopal declarou estas ordenações – 11 mulheres na Filadélfia em 29 de julho de 1974, e quatro no ano seguinte em Washington, D.C. – “inválidas” e “irregulares”, mas depois as considerou válidas ainda que irregulares. Em 1976, o organismo nacional governante da igreja, pressionado por ampla aceitação quanto a tais ordenações, mudou as regras e permitiu a ordenação de mulheres ao sacerdócio, e não apenas como diaconisas. Ele também “regularizou” as ordenações da Filadélfia e de Washington.
Sem a mudança nas regras, “eu estaria pescando em outros mares”, diz Jefferts Schori, mestre em oceanografia. Uma boa aposta é que este mar não seria aquele em que ela passou os seus primeiros oito anos de vida, a Igreja Católica, com todo o seu sacerdócio exclusivamente masculino.
O 40º aniversário da ordenação das “11 da Filadélfia”, como ficaram conhecidas as primeiras a serem ordenadas, está se tornando uma oportunidade para uma introspecção importante sobre como tudo isso aconteceu e que diferença teve para a Igreja Episcopal, para a Comunhão Anglicana em todo o mundo e para a igreja num sentido mais amplo.
Por causa deste aniversário, há um espírito de festividade na Igreja Episcopal, que hoje conta com 2 milhões de membros nos EUA e outros 170 mil em dioceses ao redor do mundo. Há planos para uma celebração do dia 26 de junho na Church of the Advocate, na Filadélfia, onde as ordenações aconteceram e três livros relacionados ao assunto estão sendo publicados.
Mas há também um reconhecimento triste de que as mulheres na igreja ainda vivenciam barreiras informais, bem como misoginia aberta às vezes. (De fato, não foi antes de 2010 que a última diocese episcopal americana – Diocese de Quincy, Illinois – finalmente ordenou a sua primeira mulher. A diocese desde então foi incorporada à Diocese de Chicago.)
Carter Heyward, uma das “11 da Filadélfia”, hoje professora emérita na Faculdade Episcopal de Teologia, em Cambridge, Massachusetts, disse ao National Catholic Reporter que há um “efeito dentro da igreja do tipo teto de vidro”. Isso, diz ela, tem a ver com uma atitude comum que “sim, pode haver mulheres ordenadas na Igreja Episcopal, mas quantas mesmos realmente queremos ter?” Além disso, segundo Heyward, algumas congregações se preocupam com a possibilidade de ficarem conhecidas como lugares onde somente se ordenam mulheres.
Realmente, afirma Heyward, ter uma bispa presidente “conduz as pessoas ao engano. É como ter o presidente Obama, e pensar que o racismo acabou”.
Assim como escreveu recentemente a bispa Barbara C. Harris, sufragânea emérita (ou seja, subordinada a um bispo diocesano): “Embora estejamos felizes que alcançamos esta marca de 40 anos, não tenho certeza de que alcancemos alguma maturidade na realidade deste testemunho e deste fenômeno vivo”.
Hoje, as mulheres representam quase a maioria dos ordenados ao sacerdócio por ano na Igreja Episcopal. Cerca de um terço de todos os sacerdotes episcopais são mulheres. Mas os homens ainda predominam nos altos escalões, embora esta situação pareça não ter feito mulheres ordenadas e bispas a protegerem Jefferts Schori das críticas. Segundo ela, “há muitas pessoas que discordam de mim – de ambos os gêneros e de todas as inclinações. Considero isso um sinal de saúde”.
Ainda assim, algumas mulheres ordenadas podem se sentir isoladas.
“Para mim pessoalmente, a luta não acabou”, diz Gail Greenwell, reitora da Catedral Christ Church, em Cincinnati (Ohio). “Como reitora de uma catedral, sou apenas uma de seis ou sete mulheres em toda a Igreja Episcopal que tem este posto. Igualmente trabalhei como reitora de uma grande paróquia, uma outra raridade para as mulheres nesta igreja. As mulheres estão, na verdade, perdendo espaço na Casa dos Bispos. Em número pequeno, somos as ‘irregulares’ da atualidade”.
Quando Jefferts Schori ouviu o que Greenwell disse, reconheceu o problema: “Continuamos elegendo bispas, mas elas são quase todas bispas sufragâneas. Estamos perdendo terreno em termos de bispas diocesanas. Ao mesmo tempo, a porta está agora se abrindo em torno da Comunhão Anglicana. Há atualmente duas bispas na África, há bispas na Austrália, na Nova Zelândia e no Canadá, e houve duas em Cuba. Há uma na Irlanda, e a porta está aberta na Escócia e no País de Gales. Esperamos e rezamos que ela se abra na Inglaterra”. (Tal como Jefferts Schori esperava, a Igreja Anglicana aprovou em julho a ordenação de bispas.)
Da mesma forma como a Proclamação de Independência e o discurso “I have a dream” de Martin Luther King não puseram em liberdade os afro-americanos integrando-os plenamente à vida americana, assim também aquelas ordenações femininas de 40 anos atrás na Filadélfia não se livraram das barreiras para a sua completa inclusão dentro da Igreja Episcopal.
Mesmo assim, as mudanças provocadas por 11 valentes diaconisas e um punhado de bispos desejosos de ordená-las sacerdotes durante aquela animada celebração de três horas foram realmente marcantes. Talvez o sinal mais claro disso foi a eleição, em 2006, de uma bispa presidente. Heyward escreveu que a eleição de Jefferts Schori “era inimaginável para qualquer membro episcopal em 1974, um pouco parecido como pensar que uma mulher possa ser o papa hoje, em 2014.
Alison Cheek, outra das 11 da Filadélfia, hoje com mais de 80 anos, disse ao National Catholic Reporter acreditar que “as mulheres, em geral, vêm fazendo um trabalho realmente bom dentro da Igreja, embora seja difícil distinguir algumas delas dos homens”.
A romancista e professora Darlene O’Dell capturou a luta pela igualdade feminina na Igreja Episcopal no livro “The Story of the Philadelphia Eleven” [A história das 11 da Filadélfia], obra de 250 páginas recém-publicada pela Seabury Press. Outro livro publicado em resposta aos 40 anos das primeiras ordenações é “Looking Forward, Looking Backward: Forty Years of Women's Ordination” [Olhando para frente, Olhando para trás: Os 40 anos de ordenação das mulheres], editado pela Fredrica Harris Thompsett. Esta obra inclui mais de uma dúzia de ensaios, um escrito por Jefferts Schori. Por fim, há a publicação de “The Spirit of the Lord Is Upon Me: The Writings of Suzanne Hiatt” [O espírito de Deus está sobre mim: Os escritos de Zuzanne Hiatt], editado por Heyward e Janine Lehane. Heyward considera Hiatt, uma das 11 da Filadélfia, a “força motriz” por detrás das ordenações de 1974. Hiatt morreu em 2002.
Embora, como escreve O’Dell, Heyward considere a ordenação o “melhor e mais extraordinário dia” de sua vida, ela e outras do grupo das primeiras mulheres ordenadas, bem como outras que vieram depois, não se mantiveram paradas naquele período turbulento envolvendo o caso Watergate pouco antes da renúncia de Richard Nixon. Pelo contrário, continuaram na luta pela mudança de ideias e necessidades teológicas numa igreja que, muitas vezes, tem estado próximo do front de movimentos sociais que lutam pelos direitos iguais para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.
O cristianismo necessariamente exige continuidade e respeito por sua própria história, diz Heyward ao National Catholic Reporter, mas “precisa estar sempre nos empoderando a fazer o que é justo, compassivo e que promova a dignidade humana e o bem-estar da criação. Assim, um dos lugares de descontinuidade que, creio, devemos levar a sério e trabalhar a respeito é a dominação – a dominação violenta – da criação pelos seres humanos. (...). Isso se apresenta a todo o momento em nossa frente. Uma oura área de descontinuidade é a permanência de pressuposições patriarcais sobre Deus e o mundo”. A ideia de que os homens nasceram para “governar o mundo”, disse, “precisa ser desafiada, sem violência mas com firmeza”.
Heyward elogia grande parte do tom e da abordagem que o Papa Francisco vem estabelecendo. Mas quando se trata de assuntos relacionados às mulheres, disse ela, o “papa não parece estar tão – não sei que palavra usar, mas vou dizer– ciente de que há, realmente, problemas significativos na tradição cristã e, em especial, na tradição católica, quando o assunto é o papel e o lugar das mulheres”.
Esta falta de consciência não tem recebido ajuda por aquilo que muitas das 11 da Filadélfia vivenciaram, visto que a ordenação episcopal de mulheres se tornou um evento rotineiro – tipo um desinteresse por seu trabalho pioneiro.
Por exemplo, Greenwell, que não entrou para a faculdade até vários anos depois das ordenações na Filadélfia, participou de uma conferência, há cerca de 10 anos, onde os organizadores trouxeram o maior número das 11 da Filadélfia possível.
“Enquanto elas contavam suas histórias”, diz Greenwell ao National Catholic Reporter, “havia uma agitação no auditório. Muitas das recém-ordenadas não percebiam que a luta daquelas mulheres no painel era a história delas. Não percebiam que era uma luta delas também e histórias importantes para os seus ministérios. Elas acharam que os homens estavam sendo demonizados como o inimigo, enquanto que a experiência delas (e a minha) era de homens que tinham sido, muitas vezes, nossos defensores. Me vi aí e percebi que me encontrava num meio ambivalente: agradecida pela coragem e pelo espírito pioneiro das ‘irregulares’, mas também simpática com a ideia de que era chegada a ora de ir além de um diálogo centrado na luta. Fiquei impressionada com a lacuna que surgiu entre estas gerações em tão pouco tempo”.
No entanto, é difícil imaginar como a Igreja Episcopal se pareceria, hoje, e como estaria a vida de inúmeras mulheres caso a ordenação feminina não tivesse acontecido.
• Carter Heyward, por exemplo, disse que mesmo se não tivesse sido ordenada, teria sido professora porque “isso estava realmente no fundo de meu coração. Fui chamada para o ministério de ensino com uma espécie de ponte sacerdotal para isso”.
• Jefferts Schori iria provavelmente continuar trabalhando na área das ciências.
• Já Greenwell se pergunta: “Será que eu seria daquelas senhoras episcopais cheia de energia, igual a minha mãe, contente em trabalhar na escolinha dominical e em organizar dispensa para alimentos? Ou teria abandonado a igreja? Realmente, não sei”. O que a igreja sabe mesmo é que Greenwall seria uma defensora persistente daqueles cujo ministério não foram bem recebidos. Diz ela que “durante 20 anos, lutei pela completa inclusão de nossos irmãos e irmãs LGBT nas sagradas ordens”.
• Já Cheek não sabe se ainda seria episcopaliana caso a igreja tivesse somente sacerdotes homens. Por um lado, a sua preocupação imediata após as ordenações de 1974 era que ela e outras seriam “depostas”, ou seja, que suas ordenações como sacerdotes e como diaconisas seriam anuladas.
“Penso que foi a imprensa quem nos salvou”, disse, observando como a mídia, incluindo o National Catholic Reporter, se recusava a deixar cair no esquecimento as ordenações.
As experiências destas mulheres levantam a questão sobre o que as mulheres trouxeram para o ministério que seja diferente daquilo que os homens trouxeram.
Porque a Igreja Presbiteriana americana começou a ordenar mulheres em 1956, fiz esta pergunta à reverenda Margaret E. Towner, hoje com 89 anos de idade, a primeira presbiteriana ordenada.
“Acho que elas trouxeram uma perspectiva de um cuidado, de uma paciência real”, disse Towner, ainda atuante nos organismos de governança regionais da igreja na Flórida. “A maioria delas tem grande paciência. Creio que trouxeram a perspectiva de abertura e compreensão real do que significa o Novo Testamento, ao visitar prisioneiros, etc. É um tipo diferente de compaixão em relação àquela dos homens. Realmente acho que, muitas vezes, as mulheres ordenadas têm insights bons e mais profundos antes do que muitos sacerdotes. Falando das mulheres que ouvi pregar, percebo que elas trazem uma humanidade aos sermões, às meditações, que em muitos casos não vi os homens trazerem”.
Jefferts Schori acredita que as mulheres trouxeram “formas de colegialidade no exercício do ministério bem como uma liderança colaborativa” que não estava plenamente desenvolvidas quando o sacerdócio era só composto por homens. “Penso que as mulheres também trouxeram a ideia de como é viver nas margens, de não ser a norma na sociedade em geral, e isso é um dom, pois abre nossos olhos para vermos os pobres e as crianças, os imigrantes, as pessoas que não vivem no centro”.
Heyward dá créditos às mulheres por elas trazerem experiências ao sacerdócio “que foram amplamente socializadas entre nós em termos de cuidado, hospitalidade (...). Muito disso herdamos de nossas mães e avós.
Como Towner, Cheek pensa que as mulheres ajudaram a “humanizar” o ministério e a igreja em geral. No entanto, afirma que algumas mulheres ordenadas ao sacerdócio adotaram algumas das abordagens menos admiradas, de busca pelo poder, que alguns sacerdotes têm.
Mas é a organização da igreja, diz Cheek, o que dificultou as coisas para elas: “Com as estruturas que temos na igreja, é realmente bastante difícil para as mulheres fazerem a diferença”.
Na verdade, são as estruturas ainda mais hierárquicas da Igreja Católica o que faz com que Cheek pergunte sobre se os católicos algum dia permitirão a ordenação de mulheres.
“O catolicismo tem uma política tão diferença da nossa”, diz ela, “que é difícil imaginar como isso poderia acontecer”. A mudança nas regras da Igreja Episcopal que permitiram a ordenação de mulheres foi algo que “a Casa dos Representantes (metade composta pelo clero, metade por leigos) e a Casa dos Bispos votaram a favor”. O catolicismo carece de uma estrutura mais democrática, declarou, e portanto será mais difícil haver mudança aqui.
“Porém”, acrescentou, “se um papa eleito gostar dessa ideia, quem sabe o que poderia acontecer?”
Jefferts Schori, que tem esperanças quanto à ordenação de mulheres no catolicismo, disse: “Não creio que isto irá acontecer enquanto estiver viva. A Igreja Ortodoxa pode chegar a este ponto antes da Católica”.
Há, é claro, mulheres hoje que dizem ter sido ordenadas como “padres” católicos em conexão com organizações tais como a Roman Catholic Womenpriests, ainda que as estruturas oficias da Igreja se recusem a reconhecer a validade de tais ordenações.
Por enquanto, é provável que a coisa mais próxima que o mundo irá ter de mulheres ordenadas ao sacerdócio católico são as episcopalianas ordenadas – e elas estão ocupadas celebrando o 40º aniversário de um evento fundamental que as ajudou e ajudou a sua igreja a chegar neste ponto.
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Igreja Episcopal celebra 40 anos de mulheres no sacerdócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU