30 Junho 2014
"(...) Direitos para brancos, direitos para ricos; migalhas e porradas aos pretos, porradas e migalhas aos pobres", escreve Dario de Negreiros, jornalista e membro do Margens Clínicas, grupo de psicanalistas que oferece atendimento psicológico a vítimas de violência de Estado, em artigo publicado no sítio Ponte, iniciativa de jornalismo independente com foco em Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos. 26-06-2014.
Eis o artigo.
O Estado Oligárquico de Direito é organizado fundamentalmente a partir da noção de margem. Quem está pra além da margem – ou para além da ponte, como se fala na periferia, para além dos rios que dividem a cidade – não é um cidadão desse Estado. Ele não é ninguém, não tem nenhum direito. E é por isso que ele pode ser morto. E é por isso que, quando ele é morto, ninguém liga. Porque Quem foi morto não é ninguém
Que existe uma relação de causalidade entre a atualidade da violência de Estado, no Brasil, e a escassez, desde o fim de nossa ditadura civil-militar (1964-1985), de políticas públicas que objetivem e possibilitem a chamada “transição democrática”, eis uma afirmação que não devemos ter receio de fazer. No entanto, esta relação não é – e nem deve ser entendida como – uma relação evidente.
Compreendê-la como um dado, como uma espécie de evidência empírica, como se se tratasse de um fato que prescinde de toda e qualquer interpretação, constitui postura que desestimula a realização de um trabalho fundamental: a investigação do modo como esta relação se concretiza no funcionamento das instituições de segurança pública e na realidade cotidiana de violações sistemáticas de direitos humanos cometidas por agentes do Estado.
Para que nos aprofundemos no desvelamento desta relação causal, devemos, em primeiro lugar, esclarecer as vias pelas quais a ditadura civil-militar nos deixou como legado a atual arquitetura institucional da segurança pública no Brasil. E também, é claro, entender por quais motivos esta arquitetura institucional é tão ruim, ineficiente, autoritária e intrinsecamente fadada à produção de violência.
Equivocam-se aqueles que repetem descuidadamente que as nossas Polícias Militares teriam sido criadas na ditadura. Ela surge, muito antes, durante o período colonial, criada para regular o negócio da escravidão. Ou seja: pode-se dizer, sem exageros, que o racismo institucional da Polícia Militar é literalmente congênito. Hoje, segundo pesquisa conduzida por Jaqueline Sinhoretto, da Universidade Federal de São Carlos, a Polícia Militar de São Paulo mata três negros para cada branco.
Mas, apesar de a PM não ter nascido na ditadura civil-militar, sua atual importância, seu papel de destaque em nossas políticas de segurança pública não são outra coisa senão um legado da ditadura. E por quê?
Até 1969 – pouco depois do AI-5, o auge da repressão – as instituições que tinham o papel mais importante para a segurança pública no Brasil eram as Guardas Civis. Essas Guardas – de âmbito estadual, nada tendo a ver com as atuais Guardas Civis Municipais – além de, evidentemente, não militares, eram polícias de ciclo completo. Eram elas, portanto, as grandes responsáveis pela segurança pública no Brasil. As Polícias Militares, à época, permaneciam aquarteladas nas grandes capitais.
Eis que o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici decide baixar dois decretos: o decreto-lei 667, em Julho de 69, e o decreto-lei 1.072, em dezembro. Com eles, são dissolvidas as Guardas Civis Estaduais, as PMs são retiradas de seu aquartelamento e os efetivos das recém-dissolvidas Guardas-Civis são a elas incorporados. As Polícias Militares passam, então, a executar com exclusividade o policiamento preventivo e ostensivo, criando-se aquilo que o antropólogo Luiz Eduardo Soares chama de “nossa jabuticaba institucional”: a divisão dos ciclos. Como Soares nos explica, nessa entrevista a que tomo a liberdade de remeter o leitor: “uma parte do trabalho, a investigativa, quem faz é a Polícia Civil; a outra parte, preventiva e ostensiva, quem faz é a PM. Esse tipo de distribuição não funciona. Não sou eu que digo, há um grande consenso entre aqueles que lidam com essa área, estudam, pesquisam”.
Surgem, então, duas meias-polícias, e um modelo de segurança pública destinado ao fracasso. Mas, independentemente da divisão dos ciclos, a militarização, em si mesma, também é péssima. E por quê? Diz Soares:
“a estrutura institucional militar determina um certo tipo de funcionamento dos seus agentes, reduzindo-lhes campo de liberdade na atuação. E esse padrão tem um corte, tem uma direção política inexorável. Simplesmente pelo seguinte: ao policial, na ponta, não cumpre pensar, mas cumprir ordens. E por que é assim? Porque a estrutura é hierárquica, a vertebração é rigorosa organizacionalmente e há uma concentração decisória. Isso funciona no exército, porque o propósito é fazer com que o método adotado por essa instituição, que é o pronto-emprego, se viabilize. Para quê? Para atingir as suas metas constitucionais, que são a defesa da soberania nacional, etc., envolvendo inclusive práticas bélicas quando necessário. Então se deduz da finalidade (que é, no limite, fazer a guerra) um método (pronto-emprego) do qual decorre a necessidade de um certo tipo de estrutura organizacional. Há, então, a ideia, de que preciso que exista uma fonte exclusiva de ordens, que deve fluir sem óbices por todas as cadeias comunicacionais, até a base, para promover um deslocamento célere de grandes contingentes humanos e materiais. Isso se justifica em razão da natureza desse embate, que é a guerra. A aplicação à polícia militar desse mesmo modelo organizacional só se justificaria se a missão da PM fosse análoga à do exército. Não é. Mesmo constitucionalmente, não há nenhuma relação. Algumas práticas são similares, ainda que distintas. Mas representam menos de 1% das atividades da PM no Brasil. Nada pode justificar a organização de 99% das atividades com base em 1%.”
Vejamos outra meia-verdade. Ouvimos dizer, comumente, que o governador do Estado é o comandante-em-chefe da PM. Isso é verdade, mas não é toda a verdade. As chamadas segundas-seções – na sigla, a PM2, conhecida popularmente como P2 –, constituem o serviço de inteligência da PM, responsável não só pela coleta de informações, mas também pelas decisões sobre estruturas organizacionais, efetivos, ensino e instrução, dentre outras atribuições. Estas segundas-seções, pasmem, não respondem ao governador do Estado: elas fazem parte do sistema de informações do Exército e respondem diretamente ao comando do Exército. Ou seja, além da divisão de ciclos entre as duas “meia-polícias” brasileiras, há ainda outra esquizofrenia estrutural, interna à própria Polícia Militar. Nossas PMs respondem a dois senhores: ao Governador do Estado e, ao mesmo tempo, ao Comandante do Exército.
E tudo isso, toda essa estrutura, toda essa arquitetura institucional da ditadura civil-militar se manteve, até hoje, por quê? Teria sido algo que passou batido aos Constituintes, em 1988, mais ou menos como ocorreu, segundo os pesquisadores da Universidade de Brasília Adriano Benayon e Pedro Antonio Dourado de Rezende, com a alínea inserida de modo fraudulento pelo Nelson Jobim?
De forma alguma. A manutenção desta estrutura foi amplamente negociada entre os militares e os constituintes. O Exército, conta-nos o professor Jorge Zaverucha, nomeou 13 oficiais superiores para fazerem lobby pelos interesses dos militares. Mais do que isso, quando Abreu Sodré, então governador de São Paulo, propôs a Ulysses Guimarães a extinção da PM, este lhe teria lhe confessado estar de mãos atadas por ter “um compromisso com o general Leônidas”. O mesmo general Leônidas Pires Gonçalves que, como conta Zaverucha, quando viu a primeira redação do artigo 142 da Constituição Federal – artigo que, na redação atual, é considerado por muitos como um mecanismo de legalização do golpe de Estado, uma vez que cria um dispositivo legal de suspensão da própria ordem legal – ameaçou zerar todo o processo de redação constitucional. Em resumo: os parlamentares constituintes, acuados, decidiram ceder às demandas do Exército.
Até aqui, esforcei-me para deixar mais clara a relação existente entre a atualidade da violência de Estado e a particularidade de nossa “transição democrática”. Para tanto, tivemos de nos concentrar, até agora, no segundo termo desta relação: nesta transição que foi feita para não ser, de fato, uma transição. Mas é importante que também tornemos claro e concreto o significado do primeiro termo. O que é que entendemos, afinal, por “atualidade da violência de Estado”? Qual é a amplitude dessa violência? Enfim, qual é a gravidade do problema sobre o qual estamos falando?
Trata-se de um problema que nunca deixa de assustar e desesperar mesmo aqueles que estão acostumados a lidar cotidianamente com os dados.
Em nove anos (2003-2012), a PM do Rio matou 9.646 pessoas, ou seja, mais de 1.000 pessoas por ano. A PM de São Paulo, em cinco anos (2005-2009), matou 2.045 pessoas. Para se ter uma ideia do que isso significa, basta imaginar que todas as polícias dos EUA juntas mataram, nesses mesmos 5 anos, 1.915 pessoas. O Estado de São Paulo, portanto, que tem 40 milhões de habitantes, mata mais do que os EUA, que têm mais de 300 milhões de habitantes. E o Rio de Janeiro, com 16 milhões de habitantes, isto é, com apenas 5% da população dos EUA, demora somente dois anos para matar o mesmo número de pessoas que todas as polícias norte-americanas somadas matam em cinco.
Para resumir a gravidade e a dramaticidade do problema, fiquemos novamente com Luiz Eduardo Soares:
“Está em curso no Brasil um verdadeiro genocídio [...] são sobretudo os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos [que são mortos] [...]. O problema alcançou um ponto tão grave que já há um déficit de jovens do sexo masculino na estrutura demográfica brasileira. Um déficit que só se verifica nas sociedades que estão em guerra”. Todo e qualquer historiador, geógrafo ou cientista social que decidir, no futuro, analisar a estrutura demográfica brasileira de nossos tempos, irá se deparar com este déficit. Não há dúvidas: estamos diante de uma tragédia histórica inequívoca e indelével.
Diante disso, o que fazer? Gostaria de formular, aqui, a seguinte proposição: em um Estado Oligárquico de Direito, todos os cinco preceitos maiores que compõem o conceito de Justiça de Transição, exatamente da mesma forma que se aplicam aos crimes e às vítimas do passado, podem e devem ser aplicados aos crimes e às vítimas do presente. Examinemo-la.
Em primeiro lugar: o que é um Estado Oligárquico de Direito? Tomo de empréstimo a definição do professor emérito de filosofia da USP Paulo Arantes: “um regime jurídico político caracterizado pela ampla latitude liberal-constitucional em que se movem as classes confortáveis, por um lado, enquanto sua face voltada para a ralé, que o recuo da maré ditatorial deixou na praia da ordem econômica que ela destravou de vez, se distingue pela intensificação de um tratamento paternalista-punitivo”. Trocando em miúdos: direitos para brancos, direitos para ricos; migalhas e porradas aos pretos, porradas e migalhas aos pobres.
Exatamente do mesmo modo que aconteceu na ditadura, os agentes do Estado responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade permanecem impunes e no mais completo anonimato.
Por outro lado, devemos perguntar: seria possível sustentar que os preceitos da Justiça de Transição – conceito jurídico-sociológico que nasce da “preocupação de apreender a excepcionalidade dos momentos transicionais [de um governo ditatorial a um governo democrático] e em evitar, a todo custo, que se consumasse uma regressão autoritária” – devem se aplicar às vítimas e aos crimes do presente, ou seja, devem se aplicar ao Estado Oligárquico de Direito? Os cinco pilares fundamentais do conceito – direito à memória, direito à verdade, punição dos criminosos, reparação das vítimas e reforma das instituições – se aplicariam aos crimes cometidos no presente por, basicamente, três motivos.
Primeiro motivo
Quando a advogada Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, veio à USP, no dia 27 de março deste ano, ela disse algo que, aqui, repito de memória, pedindo desculpas e assumindo responsabilidade, antecipadamente, por eventuais incorreções: “uma Comissão da Verdade tem a tarefa de investigar crimes de lesa-humanidade. E o que são crimes de lesa-humanidade? São violações fundamentais dos direitos humanos, como torturas e assassinatos, cometidas por agentes do Estado, de forma sistemática ou generalizada, e como parte de uma política de segurança deliberada”. Essa descrição, que cabe aos crimes da ditadura, é uma descrição absolutamente perfeita dos crimes do presente.
Segundo motivo
Exatamente do mesmo modo que aconteceu na ditadura, os agentes do Estado responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade permanecem impunes e no mais completo anonimato. Exatamente da mesma forma, as circunstâncias em que acontecem esses crimes nunca são elucidadas. Nunca, salvo raríssimas exceções, os fatos vêm a público. Inanidade investigativa e punitiva que deve nos levar a questionar o papel que desempenham, diante dos banhos de sangue diários, nossos juízes e promotores. “A mão que aperta o gatilho e que mata é acompanhada de uma outra mão: de uma caneta que assina o arquivamento, que é feito pelo promotor”, disse-me em entrevista recente o deputado estadual Marcelo Freixo. O Ministério Público tem sido omisso?, perguntei-lhe. “Mais do que omisso: ele é conivente”, respondeu Freixo. “O auto de resistência só não é investigado porque o MP não quer investigar, porque ele pede o arquivamento. E o juiz arquiva.”
Terceiro e último motivo
As vítimas de nosso Estado Oligárquico de Direito são abandonadas a um esquecimento tão drástico quanto aquele que o Estado Ditatorial civil-militar tentou impingir às suas vítimas. O Estado Oligárquico de Direito é organizado fundamentalmente a partir da noção de margem. Quem está pra além da margem – ou para além da ponte, como se fala na periferia, para além dos rios que dividem a cidade – não é um cidadão desse Estado. Ele não é ninguém, não tem nenhum direito. E é por isso que ele pode ser morto. E é por isso que, quando ele é morto, ninguém liga. Porque Quem foi morto não é ninguém. Ou, se quisermos, podemos inverter a proposição: ninguém foi morto.
Diante deste mais absoluto esquecimento, é urgente que constituamos políticas públicas de reparação às vítimas do presente: reparação financeira, reparação psíquica –trabalho atualmente desenvolvido pelo grupo de psicanalistas Margens Clínicas, do qual faço parte –, enfim, é necessário formular uma política de reparação integral. E é absolutamente urgente a criação de políticas de memória e de verdade. Para dizê-lo com todas as letras: uma Comissão da Verdade dos Crimes do Período Democrático deve ser criada urgentemente.
Está na hora de entendermos que a voz desses mortos, de hoje, é tão importante quanto a dos mortos do nosso passado recente.
Algumas pessoas – como o professor de filosofia da USP Vladimir Safatle e a psicanalista e membro da Comissão Nacional da Verdade Maria Rita Kehl – têm insistido, há alguns anos, no modo como o não esclarecimento dos crimes da ditadura, o esquecimento dos fatos e o assassinato simbólico das vítimas seriam “a verdadeira causa do caráter deformado e bloqueado de nossa democracia”.
Concordando com eles, atrevo-me a ir além. Todos os que leem este texto – ou, pelo menos, a maior parte – já ouviram falar do coronel Ustra, infame torturador da ditadura. Mas quem, dentro nós, já ouviu falar dos Matadores do 18, grupo de extermínio do 18º Batalhão da PM, na ZN de SP? Todos lemos nos jornais, recentemente, o depoimento do coronel Paulo Malhães, que assumiu ter sido um torturador e um assassino na ditadura, que assumiu que violava e mutilava cadáveres. Mas eu tenho certeza de que um número muito menor de pessoas já ouviu falar dos “Highlanders”, que, segundo um relatório da Polícia Civil, seria um grupo de extermínio da PM de SP que costumava cortar a cabeça das vítimas e jogá-las em Itapecerica da Serra.
Por mais que todos procurem se livrar dos mortos, matando os uma segunda vez, matando os com essa morte simbólica que consiste em dizer que a morte deles foi em vão, que seu destino é a vala comum da história
Em Maio de 2006, mais de 500 pessoas foram mortas em uma semana. Quem matou? Como matou? De que modo? Por qual motivo? Chacina de Sapopemba, em 2014: 3 mortes. Chacina do Jardim Rosana, 2013: 7 mortos. Chacina de Campinas, 2014: 12 mortos. Quem matou?
É neste contexto que devemos perguntar: por qual motivo a desmemória, o mais absoluto esquecimento em que caem esses crimes e essas vítimas, assim como a impunidade destes criminosos, são menos constitutivos do caráter radicalmente deformado e bloqueado da nossa democracia do que o esquecimento dos crimes e das vítimas da ditadura?
Safatle costuma dizer que “os corpos retornam”. Cito-o: “Por mais que todos procurem se livrar dos mortos, matando os uma segunda vez, matando os com essa morte simbólica que consiste em dizer que a morte deles foi em vão, que seu destino é a vala comum da história, que seus nomes nada valem, que não merecem ser objetos de memória coletiva, os corpos retornam” . Não é por acaso que Débora Silva – fundadora do movimento Mães de Maio, que teve o filho morto pela polícia em 2006 – diz uma frase muito parecida: “Os nossos mortos têm voz”.
Está na hora de entendermos que a voz desses mortos, de hoje, é tão importante quanto a dos mortos do nosso passado recente. Que uma Comissão da Verdade dos crimes da democracia é tão importante quanto uma Comissão da Verdade dos crimes da ditadura. E, enfim, que a reparação das vítimas do presente é tão importante quanto a reparação das vítimas do passado. Isso se quisermos começar a pensar em uma transição democrática que não seja desenhada para não terminar.
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Memória, verdade, justiça e reparação para os crimes do Brasil pós-ditatorial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU