12 Mai 2014
"Incrível, mas verdadeiro. Já que o princípio constitucional da função social da propriedade é simples “minúcia” (!?), mesmo que o seu eterno descumprimento pelos titulares de propriedade privada no país o desrespeitem, aí causando repetidas vezes, ocupações de suas terras, toda a responsabilidade por aquela notória injustiça tem de cair mesmo é em cima dos “genitores” (sic) dos sem-terrinha", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST e procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Segundo ele, "A injustiça é bem isso. Ela tem o cruel poder de manter escrava a verdade. Como ela não tem rosto, está disseminada por todo um sistema de opressão e exclusão social, típico do regime econômico, político e jurídico que aqui manda, precisando ser defendida “em nome do crescimento econômico e do progresso”, tem-se de responsabilizar quantas/os se movimentem para denunciá-la, atacá-la e condená-la".
Eis o artigo.
Em matéria de conflito sobre terra, seja ou não ligado à reforma agrária ou à urbana, o Poder Judiciário tem demonstrado posicionar-se de modo o mais diverso, tanto aqui no Rio Grande do Sul, como no resto do país. Ora revela profunda e autêntica sensibilidade humana, reconhecendo a pobreza e a miséria do povo sem-terra e sem-teto como inaceitável violação da lei e da justiça, das quais ele é vítima e não responsável, ora dá apoio à mais grosseira defesa e preservação da injustiça social que o aflige, humilha, despreza e, as vezes, até mata.
O primeiro ainda é visivelmente minoritário, mas o segundo tem-se encarregado de impedir qualquer proposta, ainda que prevista em lei, de políticas públicas, como da reforma agrária e da urbana, capazes de ameaçar, ainda que remotamente, históricos privilégios do tipo de propriedade privada de terra que impera no Brasil, desde o esbulho violento e criminoso (esse sim) praticado pelo branco contra o índio, há mais de cinco séculos, desde a lei de Terras de 1850, e mesmo depois do Estatuto da Terra de 1964.
À violenta colonização de ontem, sucedeu a violenta injustiça social de hoje, sempre que um despacho judicial iguala todo o papel de posse ou domínio de terra registrada, independentemente do modo como está sendo usada, para decidir qualquer ação possessória, em favor de quem tem tal título; manda a força policial agir com a maior presteza contra as/os rés/réus, para impedir qualquer efeito a algum recurso judicial de que se socorra a defesa das/os sem-terra e sem-teto no sentido de modificar ou revogar o despacho liminar de desocupação do imóvel em causa; aproveita a chance de substituir a autoridade dos argumentos invocados nos processos em defesa de gente pobre, mesmo quando são direitos humanos fundamentais dela que se encontrem violados, agredidas sua dignidade e cidadania, para fazer valer o argumento de autoridade da espécie “esse povinho precisa saber quem manda”; de vez em quando alfineta a administração pública como coroinha da rebeldia motivadora da ocupação de terra, etc...
A força e o poder de exclusão social capitalista sobre as/os pobres e miseráveis do Brasil recebe nessas decisões judiciais a aprovação de estarem sendo exercidos em favor da ordem, da segurança, da paz, do devido processo legal. De outro lado, contam com um duplo e poderosíssimo apoio, por uma parte da mídia - a mais reacionária e conservadora - e por organizações corporativas de latifundiários ricos.
Faz parte dessa espécie o despacho de uma juíza - queira ela ou não - que atua na comarca de Pelotas, 5ª Vara Cível, numa ação de reintegração de posse tramitando sob o nº 11400064110. Depois de ter mandado a multidão de sem-terra, ré da ação possessória, sair imediatamente do imóvel objeto do referido processo, baseada exclusivamene num papel (contrato de promessa de compra e venda), quando é mais do que sabido documento sozinho não constituir prova de posse, prolatou novo despacho, acrescentando à decisão anterior um novo fundamento e uma nova ordem.
O primeiro, de não caber à sua decisão “adentrar-se em minúcias afetas à função social da propriedade, questões estas que, embora relevantes, tem seu lugar na esfera da Administração Pública, pelo seu órgão próprio, ao que se sabe, de toda simpática à causa, notoriamente.” A segunda, uma ordem conclusiva: “Agrego, ademais, que deverá ser contatado, pela oficiala de justiça, o Conselho Tutelar local para verificar o número de crianças dentre os invasores com vistas a perpetrar-se previamente a busca e apreensão dos mesmos, ante a evidente situação de risco a que expostos pelos seus genitores.
Incrível, mas verdadeiro. Já que o princípio constitucional da função social da propriedade é simples “minúcia” (!?), mesmo que o seu eterno descumprimento pelos titulares de propriedade privada no país o desrespeitem, aí causando repetidas vezes, ocupações de suas terras, toda a responsabilidade por aquela notória injustiça tem de cair mesmo é em cima dos “genitores” (sic) dos sem-terrinha.
O malsinado despacho entende, então, não ser de sua obrigação e competência analisar a função social da terra onde o conflito se instalou, letra morta permaneça (como quase sempre acontece) o referido princípio constitucional, ainda que a tal disposição de lei, interpretada à luz dos artigos 2º e 12 do Estatuto da Terra nem possa deixar de ser cogitada em casos como o de qualquer possessória sobre terra.
Como os inimigos da reforma agrária e da urbana, das/os sem-terra e das/os sem teto, devem estar festejando esse presente que a juíza deu às mães dos sem-terrinha no dia mesmo delas: que chorem elas a ousadia de defenderem sua dignidade e cidadania; ponham-se no lugar que a juíza reservou para elas: o de serem tão pobres, excluídas, marginalizadas, discriminadas, a ponto de se pressupor que, justamente por defenderem a vida de suas/seus filhas/os, agindo quase em desespero como agem, devem ser separadas delas/es, da forma mais agressiva, violenta e humilhante - a da busca e apreensão executada por ordem judicial.
A injustiça é bem isso. Ela tem o cruel poder de manter escrava a verdade. Como ela não tem rosto, está disseminada por todo um sistema de opressão e exclusão social, típico do regime econômico, político e jurídico que aqui manda, precisando ser defendida “em nome do crescimento econômico e do progresso”, tem-se de responsabilizar quantas/os se movimentem para denunciá-la, atacá-la e condená-la.
Quem se admira dos índices de concentração da propriedade da terra no Brasil, do envenenamento criminoso de que ela, seu ar, suas sementes, florestas e águas estejam sendo explorados de forma devastadora, depredando a matando o solo, saiba que despachos judiciais como o desta juíza - queira ela ou não, repete-se aqui - particularmente no que concerne à desconsideração da função social da propriedade e à insensibilidade social desses efeitos sobre o povo pobre da nação, são cúmplices dessa tragédia.
O mar dos preconceitos culturais e ideológicos, aproveitado contra esse mesmo povo, que já inspirou no passado uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público decidindo providenciar a extinção do MST (!) da qual voltou atrás, envergonhado, tempos depois, tenta afogar, de novo, em maré de violência oficial conhecida pelos seus péssimos e desastrosos efeitos, qualquer defesa de direitos humanos fundamentais que ele ouse fazer.
Não se sabe se a juíza prolatora do infeliz despacho é mãe ou não. Já que ela se permite, todavia, ilações aleatórias e gratuitas, no seu despacho, da espécie, por exemplo, de que as mães dos sem-terrinha podem perder a companhia, ainda que provisória, das/os suas/seus filhas/os, sem um mínimo de prova justificativa de medida tão grave, deveria permitir, baseada na mesma irresponsabilidade de exame dessa prova, que o Conselho Tutelar pudesse ir na casa dela conferir, igualmente, no dia das mães, se ela trata as/os suas/seus filhas/os com o mesmo amor, o mesmo carinho, a mesma coragem e a mesma determinação que as mães vítimas da sua injusta, inconstitucional e ilegal decisão tratam as/os delas.
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No dia das mães, uma juíza dá um presente cruel para as mães dos sem-terrinha, na comarca de Pelotas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU