10 Abril 2014
Os Estados-nação de cultura abraâmica (judaica, cristã ou islâmica) não encontraram nenhuma contradição entre a pena de morte e o sexto mandamento: "Não matarás".
A opinião é do filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004), pensador da desconstrução. O artigo, publicado no jornal La Repubblica, 03-04-2014, é um trecho do livro de Derrida recém-publicado na Itália e intitulado La pena di morte (Jaca Book, 348 páginas). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O que dizer a alguém que viesse lhes dizer de madrugada: "Sabe, a pena de morte é o próprio do homem"? (Longo silêncio). Eu logo seria tentado a lhe responder – muito rapidamente: sim, você tem razão. A menos que seja o próprio de Deus – ou que seja a mesma coisa. Depois, resistindo à tentação em virtude de outra tentação – ou em virtude de uma contratentação –, eu seria tentado, então, refletindo bem, a não responder muito rapidamente e a fazê-lo esperar – dias e noites. Até o amanhecer. [...]
E supondo que a decisão sobre a qual nos preparamos para falar, a pena de morte, não seja o arquétipo mesmo da decisão. Supondo, portanto, que qualquer pessoa nunca pode tomar uma decisão que seja sua, para si, sua própria. A esse respeito muitas vezes manifestei as minhas dúvidas. A pena de morte como decisão soberana de um poder talvez nos lembre, acima de tudo, que uma decisão soberana é sempre do outro. Vem do outro. [...]
Com a crueldade que vocês conhecem, e uma crueldade, sempre a mesma, que vocês também sabem que pode ir da maior brutalidade ao abatimento, aos refinamentos mais perversos, do suplício mais sanguinário ou ardente ao suplício mais negado, mais mascarado, mais invisível, mais sutilmente maquinalizado, já que a invisibilidade ou a negação nada mais são, sempre e em todo o caso, do que um pedaço de artifício teatral, espetacular, até mesmo voyeurista.
Por definição, por essência, por vocação, nunca haverá invisibilidade para uma condenação à morte legal, para uma pena de morte aplicada por princípio, para esse veredicto nunca houve uma execução secreta ou invisível. São necessários o espetáculo e o espectador. A cidade, a polis, toda a política, a concidadania – de pessoa ou mediada pela sua representação – deve assistir e atestar, deve testemunhar publicamente que foi dada ou infligida a morte, deve ver o condenado morrer. O Estado deve e quer ver o condenado morrer. [...]
Todas as vezes em que um Estado, associado a um poder clerical ou religioso, em formas a serem estudadas, tiver pronunciado veredictos e julgado grandes condenados à morte, eles foram, portanto, acima de tudo, Sócrates. Sócrates, vocês sabem mas retomaremos, ao qual foi imputada a corrupção dos jovens, não acreditando nos deuses da cidade e substituindo-os por novos deuses, como se tivesse tido o projeto de fundar outra religião e pensar um novo homem. Releiam a Apologia de Sócrates e o Críton; neles vocês encontrarão que uma acusação essencialmente religiosa é assumida por um poder de Estado, um poder da polis, uma política, uma instância jurídico-política, o que se poderia chamar, com um terrível equívoco, de um poder soberano como poder executivo.
A Apologia diz isso expressamente (24bc): a kategoria, a acusação lançada contra Sócrates, é que ele errou, ele foi culpado de ter cometido a injustiça (adikein) de corromper os jovens e de (ou por) ter deixado de honrar (nomizein) os deuses (theous) da cidade ou os deuses honrados pela cidade – e, sobretudo, de tê-los substituído não simplesmente por novos deuses, como muitas vezes dizem as traduções, mas por novos demônios (etera de daimonia kaina); e daimonia, sem dúvida, são deuses, divindades, mas também, às vezes, fantasmas [revenants], como em Homero, deuses inferiores ou fantasmas [revenants], as almas dos mortos; e o texto distingue claramente os deuses e os demônios: Sócrates não honrou os deuses (theous) da cidade e introduziu novos demônios (etera de daimonia kaina).
A acusação, portanto, no conteúdo, é religiosa, propriamente teológica, até mesmo exegética. Sócrates foi acusado de heresia ou de blasfêmia, de sacrilégio ou de heterodoxia: equivoca-se sobre os deuses, engana-se ou engana os outros, sobretudo os jovens, a respeito dos deuses; confunde os deuses ou gera confusão e desprezo sobre os deuses da cidade. Mas essa acusação, essa kategoria essencialmente religiosa é assumida como sempre, e nós nos interessamos regularmente por essa articulação recorrente, sempre recorrente, de um poder de Estado, como soberano, um poder de Estado cuja soberania é, ela mesma, essencialmente fantasmático-teológica e, como toda soberania, se destaca no direito de vida e de morte sobre o cidadão, no poder de decidir, de fazer a lei, de julgar e de executar a ordem operando a execução do condenado.
Mesmo nos Estados-nação que aboliram a pena de morte, abolição da pena de morte que não equivale de fato à abolição do direito de matar, por exemplo na guerra; pois bem, os poucos Estados da modernidade democrática que aboliram a pena de morte conservam um direito soberano sobre a vida dos cidadãos que podem mandar para a guerra para matar ou para serem mortos em um espaço radicalmente estranho ao espaço da legalidade interna do direito civil em que a pena de morte pode ser mantida ou abolida. [...]
É sempre legal matar um inimigo estrangeiro em situação de guerra declarada, mesmo para um país que aboliu a pena de morte (e, a esse propósito, devemos nos perguntar o que define um inimigo, um estrangeiro, um estado de guerra – civil ou não; sempre foi difícil determinar os seus critérios e se torna cada mais difícil).
Por outro lado, em segundo lugar, até certos fenômenos recentes e restritos de abolição legal da pena de morte em sentido estrito, em um número ainda limitado de países, ou seja, nos Estados-nação de cultura abraâmica, os Estados-nação em que uma religião abraâmica (judaica, cristã ou islâmica) era dominante, quer fosse religião de Estado, religião oficial e constitucional, quer fosse simplesmente religião dominante na sociedade civil; pois bem, esses Estados-nação, até certos fenômenos recentes e limitados de abolicionismo, não encontraram nenhuma contradição entre a pena de morte e o sexto mandamento: "Não matarás".
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''Quando o Estado mata, somos todos Sócrates.'' Artigo de Jacques Derrida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU