17 Março 2014
"Não se pode modificar a palavra de Jesus, que é vinculante. A doutrina do matrimônio não muda, é a disciplina que deve levar em conta as novas realidades, caso a caso".
A reportagem é de Annachiara Valle, publicada na revista Famiglia Cristiana, 15-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Misericórdia é o nome de Deus." O então cardeal Bergoglio, antes do conclave, se dirigiu assim ao teólogo Kasper, tomando das suas mãos o livro sobre a misericórdia, que depois ele vitaria da janela no seu primeiro Ângelus como papa.
E misericórdia é a palavra que é pronunciada várias vezes pelo cardeal alemão, relator do consistório extraordinário sobre a família. Na sua casa da Praça Leonina, rodeado de livros, o cardeal Walter Kasper fala também de felicidade, daquela "normal, que a maioria das pessoas busca em uma família estável, com filhos. A Igreja deve fazer todo o possível, tem a tarefa, a missão de ajudar as pessoas a encontrarem essa felicidade, que não é um simples sentimento. Ela tem o dever de ajudar a construir uma família sadia. E é em uma família estável que uma criança cresce feliz. Caso contrário, as fraturas serão um peso na sua vida".
Eis a entrevista.
Na sua conferência, o senhor explicou que há um abismo entre a doutrina da Igreja sobre a família e a vivência real dos cristãos. Como preenchê-lo?
Sim, esse abismo obviamente existe, e não só na Itália. Mas já havia durante a vida de Jesus. Mesmo os apóstolos ficavam muito surpresos com as suas palavras. Mas, quando Jesus diz que aquilo que Deus uniu o homem não pode desfazer, ele também diz que é Deus que liga, que abraça as duas pessoas, que quer ajudá-las para que possam ter sucesso no seu projeto de vida. Talvez devêssemos compreender, interpretar e explicar bem a doutrina da Igreja. A doutrina não quer ser um fardo, um peso, mas sim um convite e também uma ajuda para encontrar a felicidade. Isso não significa que não haja problemas. Existem muitas dificuldades e não apenas morais; há problemas de economia, de condições de trabalho, de habitação. E há também uma tarefa social da Igreja que deve contribuir para que a nossa sociedade moderna seja mais amigável para as famílias.
O senhor defende que não é preciso partir de uma lista de ensinamentos e mandamentos, nem se fixar nas questões candentes. Como agir, então?
Os mandamentos de Deus querem ajudar a encontrar a liberdade, a felicidade. Nós devemos explicar isso. E é um ensinamento que podemos oferecer, mas não impor. Eu acredito que devemos mostrar a beleza da família, a beleza da vida cristã. A beleza convence, não os mandamentos impostos ao outro.
No entanto, esses mandamentos, às vezes, são percebidos como um peso. Especialmente quando uma união fracassa.
O fracasso também é possível para um cristão, e vemos que hoje, infelizmente, há muitos matrimônios que fracassam. Mas, mesmo nessas situações, a Igreja deve estar perto, ajudar, aconselhar, encorajar. O grande problema que estamos debatendo é como fazer tudo isso sem abrir mão da doutrina. Porque devemos ser claros: a doutrina não pode ser tirada, e não se pode mudar a palavra de Jesus, que é vinculante. O que se pode fazer é refletir sobre a diferença entre doutrina e disciplina e, portanto, entender – como é uma antiga tradição da Igreja – como agir com os divorciados em segunda união. Eu gostaria também de dizer que não existem "os" divorciados em segunda união.
Em que sentido?
Eu quero dizer que não é possível uma solução única, porque as situações são muito, muito diversas. É preciso discernimento, prudência e sabedoria para ajudar essas pessoas. Pergunto-me, por exemplo, o que fazer com uma mulher abandonada pelo marido com filhos, que tem uma nova situação, talvez com outros filhos. O primeiro matrimônio fracassou, não pôde realizar o que prometeu diante de Deus, da Igreja e dos homens. Mas, agora, ela não pode voltar à primeira situação, e abandonar a segunda também seria uma nova culpa. No entanto, eu me pergunto, se ela faz o que pode fazer, se vive uma boa vida cristã, se educa os seus filhos na fé, pode-se negar-lhe a absolvição do pecado? Todo pecado pode ser perdoado se o pecador o pede. A meu ver, diante de Deus, não é possível que haja uma situação em que alguém se encontre imerso em um buraco sem saída. Isso é contra a misericórdia de Deus. Não existem pecados que não possam ser perdoados.
Concretamente, isso significa que é possível se reaproximar dos sacramentos?
É uma pergunta que eu faço. Se essa pessoa acredita na remissão dos pecados, mesmo que se encontre nessa situação, pode se aproximar novamente da mesa do Senhor? Mas eu não posso dar uma resposta, não sou eu que posso decidir, é a Igreja que deve decidir. Haverá um Sínodo extraordinário e, depois, um ordinário sobre a família, e o Sínodo, com o papa, vai decidir sobre esse ponto. Há muitas pessoas que esperam uma solução. Repito. A resposta não pode ser geral, porque as situações são diferentes demais. Mas buscamos uma solução para as pessoas que vivem nas nossas paróquias, que se comprometem, que tem um sério desejo desse sacramento.
Não busquemos uma solução fácil quem vive essas coisas de modo muito superficial, muito distante da Igreja. É preciso uma ajuda de misericórdia, sem tocar na doutrina e na palavra de Jesus. Não seria uma ajuda para que as pessoas abandonassem a doutrina. Mas o fracasso é possível, todos nós somos pecadores e precisamos do perdão de Deus todos os dias. Nisso, abrimos um debate livre, aberto, até mesmo público, como quer o papa. E mesmo se alguém tentou impedi-lo, isso não é possível. É uma questão que afeta muitas pessoas.
Falou-se também de nulidade. Isso é um problema?
Muitos curas de almas estão convencidos de que muitos matrimônios, em sentido canônico, não são válidos. O matrimônio é um sacramento e pressupõe a fé, e se a fé não existe, o matrimônio no sentido canônico é nulo. É preciso pedir que os procedimentos para a declaração de nulidade sejam mais rápidos, mais simplificados. Com relação a isso, há um consenso crescente entre os bispos. E, depois, devemos pensar na catequese. Muitos são batizados, mas não evangelizados; são batizados, mas, de fato, não são verdadeiros cristãos; são batizados, mas são pagãos. E, se se casam na Igreja sem a fé, o sacramento não é possível. Por isso, é preciso melhorar a preparação pré-matrimonial partindo já de antes, da pastoral juvenil.
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''Não existem pecados que não possam ser perdoados.'' Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU