Por: André | 16 Dezembro 2015
Muitas coisas foram escritas sobre Gustavo Gutiérrez, nem sempre verdadeiras, como ele mesmo constata nesta entrevista, fruto de uma conversa em que ele mostra o significado da Teologia da Libertação, da qual sempre foi considerado o fundador, em sua vida.
Ele não pretende cair no absolutismo e reconhece como esta teologia foi se refazendo, abrindo-se a novas temáticas e realidades e como deve enfrentar desafios. Em suas palavras deixa entrever sua liberdade de pensamento, fruto de seu profundo conhecimento e trabalho teológico, estando consciente de que nem todo mundo vai estar de acordo com sua proposta, o que, por outro lado, não representa para ele nenhuma dor de cabeça.
A entrevista é de Luis Miguel Modino e publicada por Religión Digital, 14-12-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como a Teologia da Libertação marcou a sua vida?
Ela nasceu da minha vida, naturalmente, e eu mesmo quis ser fiel e também crítico, pois a teologia sempre precisa ser refeita e não se trata de aplicá-la como Palavra de Deus. Creio que me proporcionou argumentos, pistas, me deu horizontes, mas nunca a considerei como a última palavra, e me deu também contato com pessoas de uma base enriquecedora.
Você pensa que os pobres continuam a ser uma categoria teológica na reflexão atual?
Não os pobres, e sim a situação de marginalização que vivem, que é contrária à vontade de Deus, e isso o faz teológico.
Alguns se empenham em dizer que a Teologia da Libertação é coisa do passado.
Sabe, a primeira vez que disseram isso foi um mês após a publicação do livro. E no ano seguinte diziam, já morreu. Ou seja, isso não me atinge.
No recente Congresso Continental de Teologia realizado em Belo Horizonte, o contato e o interesse dos jovens para conversar com Gustavo Gutiérrez foi uma coisa muito comentada entre os presentes. É esse um sinal de esperança em relação a essa vigência da Teologia da Libertação?
Claro. No entanto, eu penso que as teologias não nasceram para serem eternas. Se é isso o que querem dizer, eu concordo, mas morrer quer dizer que já contribuiu e que a religião mudou e que veremos outras coisas. Eu, até os 40 anos, não falei de Teologia da Libertação, mas isso não quer dizer que não fosse um cristão que buscava ser cristão e um padre que buscava ser padre. Pude ser cristão antes da Teologia da Libertação e posso sê-lo depois dela, minha vida não está aí.
A Teologia da Libertação me fez mudar, me diz muito. Eu penso que se mantém por tudo o que disse antes, e não apenas isso, mas que avança, não é mais a mesma, pois vai entrando em outros temas, já que nem todos os temas que atualmente são trabalhados na Teologia da Libertação estiveram presentes no começo. É um processo, pois a teologia sempre deve ser tomada com muita flexibilidade. São coisas importantes, mas a teologia não é sinônimo de doutrina cristã, simplesmente é uma maneira de tratar sobre ela.
Nessa Teologia da Libertação, qual é a autoridade teológica dos pobres?
Digamos que é um desafio. Eu não falaria de autoridade, pois é uma palavra estranha, como se alguém manda algo. O importante é descobrir a importância de que estejam presentes, que nos fazem ver que não podemos nos contentar com o que existe e que temos que sentir que continuamos sendo desafiados, e digo isso como pessoa de Igreja, não como algo relativo à minha individualidade.
Por onde deve caminhar e quais são os desafios que a Teologia da Libertação precisa enfrentar hoje?
Esta é uma questão mais ampla e em que neste momento estou trabalhando. Tudo o que faz referência ao mundo da modernidade e da pós-modernidade, embora não leve tão a sério a pós-modernidade, continua mantendo um desafio, o da ciência, o da liberdade... como coisas que estão aí.
Um segundo desafio é o da própria pobreza, pois a forma como vemos a pobreza hoje em dia, inclusive na Teologia da Libertação, não é exatamente a mesma que há 40 anos. As ciências sociais e outras ciências foram esclarecendo coisas e fazendo ver outras, que mostram que o processo continua.
Outro desafio é o da teologia da religião, que também é chamado de diálogo inter-religioso. Mas o diálogo é fácil, basta ser educado. O problema teológico é a teologia, o que significa esta pluralidade de religiões que existe há muito tempo, mas que é um tema, teologicamente, novo.
Até que ponto se pode dizer que o Papa Francisco simpatiza com a Teologia da Libertação?
Sou incapaz de colocar o Papa, um pastor como ele, entre as grades de uma teologia. O que digo quando me fazem essa pergunta é que ele é o frescor do Evangelho. Se ele gosta de uma teologia ou de outra, não tenho problema com isso.
Você teve problemas com a Congregação para a Doutrina da Fé e agora o prefeito dessa Congregação é alguém que se diz seu amigo, o cardeal Müller.
Vou esclarecer isto. Tive problemas, mas eram problemas que vinham do Peru, e que quando a coisa chegou lá não encontraram matéria. A prova é que não tive processo, o que tive foi um diálogo. A diferença, que eu não conhecia, mas que então aprendi, está em que o processo se dá quando há suspeitas de que há coisa que vão contra a ortodoxia, e o diálogo, que foi o que eu tive, que há afirmações que não se compreendem bem, o que é muito subjetivo, pois sempre haverá alguém que não entende bem alguma afirmação.
Quando me dizem que fui condenado, rio um pouco, pois nunca fui condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé. Todos os livros que escrevi seguem sendo publicados. Foi apenas um diálogo no qual não encontraram nada. Há uma carta da Congregação para a Doutrina da Fé na qual se diz que o diálogo com o Pe. Gustavo Gutiérrez terminou de maneira satisfatória.
E com o cardeal Müller?
Geraldo Müller é um amigo, muito bom amigo. Esteve no Peru e, junto com outros professores alemães, trabalhamos sobre a Teologia da Libertação. Depois ele decidiu fazer algo prático de ajuda aos pobres no Peru e foi ensinar teologia no seminário de Cuzco, onde a população é indígena. Foi durante 15 anos seguidos e conhece muito bem a Teologia da Libertação, como provam os dois livros que escrevemos juntos, o segundo com o prólogo do Papa Francisco. Repito que é muito bom amigo e bom conhecedor da Teologia da Libertação, com a qual simpatizou quando era muito discutida entre os setores da mídia, pois na Congregação a Doutrina da Fé nunca houve problemas.
Certa vez, fez uma conferência na Universidade Católica de Lima, muito aplaudida e cujo texto está publicado, na qual explicava como ele mudou com relação à Teologia da Libertação. Além de amigo, foi defensor, sobretudo quando havia reticências que não tinham nenhuma consistência, mas quando se fala mal, todos repetem. Na mídia, nem todos, complicam muito, porque falam de condenação constantemente, e ela nunca existiu.
Se tivesse sido condenado, me teriam proibido de continuar escrevendo e nunca houve um livro, de todos os livros que escrevi, de que se tenha dito que não pode ser vendido, que não está autorizado. Não estar de acordo não é uma condenação, e se alguém não está de acordo, bom, o que vamos fazer! Sempre houve isso dentro da mensagem cristã. Eu também não concordo com muitas teologias muito boas, das quais não gosto, e mesmo que eu não seja ninguém, isso acontece com qualquer um.
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“Nunca fui condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé”. Entrevista com Gustavo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU