15 Dezembro 2015
O agricultor José Ignácio Fernández manejava o facão num roçado quando sentiu o impacto de uma explosão. O machete que cortava o mato detonou uma granada. Os estilhaços arrancaram-lhe a mão, parte do antebraço esquerdo e penetraram também em sua perna esquerda. O acidente, ocorrido em 2006 na localidade de La Esperança, município de Carmen de Viboral, cerca de 60 quilômetros ao sul de Medellín, na Colômbia, afetou ainda a visão e a audição de Fernández.
A reportagem é de Pablo Pereira, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 13-12-2015.
Hoje, aos 57 anos, ele é uma das 11.233 vítimas – 4.293 civis – de explosões de minas abandonadas registradas até dia 4 pelo país, numa calamidade encontrada em todo o território colombiano que vai se prolongar para além do eventual acordo de paz em negociação com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Somente neste ano, 66 pessoas foram vítimas de explosões.
“É um problema gravíssimo no país”, diz a socióloga Luz Damary Lopez, que trabalha com grupos de vítimas de minas em Cocorná, município a 80 quilômetros de Medellín, a capital de Antioquia, um dos Estados mais afetados pela tragédia dos artefatos explosivos improvisados (AEI), munição sem uso (Muse) e as minas “antipessoais” (MAP). Na manhã do sábado 14 de novembro, o Estado encontrou “Don José” em uma reunião de 12 vítimas – das 68 registradas no município – com amputações, problemas visuais e de surdez provocados por explosões acidentais, além de mães de mortos por minas, todos em busca de ajuda para reparação do rastro de desgraça do conflito armado que atormenta os colombianos desde 1948.
A reportagem acompanhou também o trabalho de desminagem do Batalhão de Desminagem do Exército (Bides) em três campos de investigação sobre explosivos abandonados no município. Entre 2001 e 2014, o Exército colombiano fez 17.139 operações de desminagem no país e eliminou 107.461 explosivos. Documentos do Exército reconhecem a gravidade da contaminação nas 32 unidades estaduais (Bogotá, a capital, é uma unidade, como Brasília).
Na bela região montanhosa colombiana, com cascatas e rampas perfeitas para prática de esportes radicais, como parapente e asa delta, que foi cenário de intensos combates entre forças do governo, Farc, Exército de Libertação Nacional (ELN) e grupos paramilitares, o drama das vítimas de minas é contundente. Esta foi terra da guerrilha. A apenas 300 quilômetros de Cocorná está Marquetalia, uma cidadela da resistência comunista que deu origem ao Exército Popular das Farc (Farc-EP), em 1965, e até emprestou nome a um míssil da guerrilha, o Marquetalia 64.
Nos próximos dias, o presidente Juan Manuel Santos e o chefe das Farc, Timoleón Jiménez, o “Timochenko”, devem assinar um pré-acordo para a entrega das armas, abrindo outra etapa do processo de pacificação depois de 60 anos de violência. O passo seguinte dessa agenda de acertos deve ocorrer até março, com a formalização do acordo de paz. A principal dúvida que persiste hoje na Colômbia é a reação de outros grupos guerrilheiros, como o ELN, que ainda não entrou na conversa, e os grupos paramilitares. O ELN já divulgou que apoia as negociações, mas ainda não foi chamado à mesa.
Nas primeiras semanas de novembro, enquanto governo e Farc discutiam e as vítimas civis de minas reclamavam do abandono de suas dores numa escola de Cocorná, as Forças Armadas regulares continuavam a combater o ELN em zonas dos Estados de Arauca, Meta e Cauca. Em 22 de novembro, Timochenko tuitou: “Ofensiva militar e paramilitar não para”, denunciando manobras de milícias adversárias na localidade de Argelia, Estado de Cauca. As Farc estão em processo de cessar-fogo desde julho.
Lavouras minadas. No município de Cocorná, que tem 12 mil habitantes, a população chegou a 8 mil quando a guerrilha apertou o cerco a Medellín, nos anos 2000, e milhares de pessoas abandonaram a cidade, chácaras e sítios. Os “desplazados” fugiam dos combates, torturas, perseguição, extorsões e atentados que infernizavam a região. Cada casa tem sua história de tensão e medo dos confrontos entre guerrilheiros, paramilitares e tropas regulares do Exército de Bogotá.
Um levantamento feito no setor de direitos humanos da prefeitura local mostra o impacto da guerra no município. O quadro Violência em Conflito Armado em Cocorná, que contém registros de 1982 a abril de 2015, revela um ambiente macabro: os assassinatos chegam a 2.789; as desaparições forçadas alcançam 391 casos; os sequestros, 303.
A tabela conta ainda o recrutamento ilegal de meninos e meninas e adolescentes (27); combates, atentados e tiroteios (149); tortura (28); ameaças (441); minas, munição abandonada ou outros artefatos explosivos (70); e denúncias de abandono do local por falta de segurança (29.781).
Mas, desde 2013, com a redução do conflito na região, o fluxo de retorno da população aumentou. Com ela, porém, chegou também o medo de habitar os campos minados. Localidades como San Juan, El Choco, Los Molinos, Campo Alegre e Los Mangos, na área rural, estão no código vermelho no mapa local do Bides. Somente em 2015, 13 minas foram encontradas e eliminadas em três áreas de uma varredura feita metro por metro por soldados em Cocorná.
Desminagem. Na “vereda” Los Mangos, região de acentuadas quebradas de montanhas, o Estado acompanhou a desminagem manual em uma pequena propriedade rural cuja família havia abandonado o local durante o terror. Ao retomar o cultivo de cana, milho e criação de gado, os donos encontraram o mato crescido e as lavouras virando brejo. Los Mangos foi usado como rota de tropas que atravessavam o vale do Rio Tafetane, saindo do município vizinho de Granada, em busca do alto do cerro estreito que oferece visão ampla da região para os dois lados – ideal para observação de deslocamentos militares nas matas ao redor.
Em Los Mangos, os trabalhos já desativaram duas minas abandonadas e a previsão é a entrega da área limpinha em julho. Segundo o prefeito eleito, Johan Ramírez, que assume em janeiro, as pessoas que fugiram estão retornando ao município para aproveitar a limpeza das terras.
Já em Sonsón, município a 113 quilômetros de Medellín, um Cristo crucificado, no alto de um morro, está cercado por balizas vermelhas e placas de “Perigo Minas – Mantenha distância”. Área de conhecida peregrinação à beira da estrada que vai para Nariño, o local passa por desminagem por técnicos da ONG escocesa Halo Trust – entidade autorizada a atuar em seis áreas do país – que trabalham na limpeza do terreno que cerca o monumento.
“Por esta estrada, os guerrilheiros patrulhavam a cavalo e à noite ninguém passava”, diz o morador Javier Henao Blando, de 59 anos, na rodovia 56, que leva também a Manzanares e Marulanda, a vila fundada em 1877 pelo general Cosme Marulanda, já no Estado de Caldas.
Na primeira semana de novembro, quando a reportagem esteve na região de Sonsón, os técnicos de desminagem da Halo Trust estavam em período de descanso. Os grupos trabalham em campo minado em turnos de 15 dias de buscas por 15 de descanso. “O trabalho é muito estressante”, explica um dos técnicos no acampamento da ONG, montado na entrada da cidade.
Sonsón é local de turismo religioso, tem cinco igrejas e é conhecida na região também pela produção agrícola. “Temos aqui uma fazenda com 25 mil pés de abacates”, disse Hector Sanches, secretário de governo municipal. A tensão na região persiste. À beira da estrada que liga a cidade a Medellín, as forças regulares mantêm tanques Urutu e Cascavel, de fabricação brasileira.
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A última guerra civil da América do Sul: A paz e o medo das minas terrestres na Colômbia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU