02 Dezembro 2015
Michael Hardt é um filósofo político e teórico de literatura ligado à Universidade Duke e ao Instituto Europeu de Pós-Graduação. Ele é mais conhecido por sua colaboração com Antonio Negri, com quem escreveu a trilogia que inclui Império, (2000), Multidão (2004) e Commons (2009). Seu trabalho tem sido relacionado ao marxismo autônomo. Seu livro mais recente é Declaration, em coautoria com Toni Negri, e refere-se ao Occupy e outros movimentos sociais. Atualmente é editor da South Atlantic Quarterly [revista da Duke University].
A entrevista é de Tom Cassauwers, publicada por Outras Palavras, 30-11-2015.
Eis a entrevista.
Como mudou a sua compreensão do mundo no decorrer do tempo, e o que (ou quem) exigiu as mudanças mais significativas no seu pensamento?
Talvez o mais significativo para mim seja uma coisa que não mudou. Quando Toni Negri e eu estávamos escrevendo Império, no final dos anos 1990, nossa primeira intuição era de que os Estados Unidos logo não seriam mais capazes de controlar os negócios globais, que eles não poderiam mais “ficar sozinhos”, agir unilateralmente. Contudo, não pensamos que algum outro Estado-nação, como a China, fosse ocupar aquela posição ou mesmo que uma aliança multilateral entre Estados-nações dominantes teriam condições de controlar os negócios globais. Nossa hipótese, ao contrário, era de que uma rede de poderes estava emergindo – incluindo os Estados-nações dominantes, junto com instituições supranacionais, corporações, ONGs e outros atores não-estatais – para controlar as relações globais de maneira contingente e transformadora.
Isso pode ser visto como um desafio para a hipótese “realista” de que os Estados são os atores centrais da política internacional. Os Estados certamente continuam importantes, mas nosso questão era que se você foca apenas nas ações estatais, perde o que realmente está acontecendo.
A premissa básica não mudou. Mas a composição do Império, isto é, a composição das estruturas do poder global está constantemente em fluxo. As hierarquias e interações entre Estados, a posição de atores não-estatais, o jugo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial – esses e outros fatores devem ser continuamente acompanhados e avaliados.
Você tem sido associado principalmente com o marxismo autônomo, e as pessoas ligadas a essa tendência adotaram recentemente o slogan do século 16, de Thomas Muntzer “omnia sunt communia”, que pode ser traduzido como “tudo deveria ser comum”. O que pensa dessa sentença e como explicaria seu sentido?
Vejo demandas relacionadas ao comum emergindo de uma ampla gama de setores, hoje. No sentido mais básico, o comum nomeia formas de riqueza que partilhamos e gerimos democraticamente. E isso o torna fundamentalmente oposto, por um lado, à propriedade privada e, por outro, à propriedade pública (ou estatal). Um campo de demandas para o comum envolve, por exemplo, formas imateriais de riqueza tais como conhecimento científico, informação, produtos culturais, código e similares.
Outro campo refere-se à terra e seus ecossistemas e prevê soluções democráticas para nossas interações compartilhadas e o cuidado com o meio ambiente. Finalmente, reconheço todos os recentes movimentos sociais que envolvem acampamentos e ocupações urbanas, da Praça Tahrir ao Parque Gezi, passando pela Puerta del Sol e o Zuccotti Park, como desejando (em parte) tornar comum a própria cidade, ou seja, tornar o espaço urbano aberto a todos e sujeito a formas democráticas de gestão.
É chave para qualquer dessas discussões do comum enfatizar a necessidade de democracia nas tomadas de decisão. Em outras palavras, sistemas de acesso aberto e mecanismos de compartilhamento de riqueza não são espontâneos e precisam ser gerenciados para durar. Enquanto a propriedade privada estabelece um monopólio sobre as tomadas de decisão, o comum requer mecanismos democráticos.
Desde a publicação de Império, o significado que você e Antonio Negri imprimiram ao conceito de multidão mudou. Você poderia explicar brevemente o que quer dizer com multidão e traçar a evolução desse significado, no seu pensamento?
Por multidão entendemos um projeto plural de organização política. Isso pode ser melhor entendido como uma extensão – ou, de fato, uma pluralização – de três conceitos tradicionais: o povo, a classe e o partido. Multidão não é realmente oposto a esses três conceitos, mas, antes, designa versões plurais, internamente heterogêneas de cada um deles. Frequentemente “o povo”, por exemplo, tem sido usado para referir-se a uma população relativamente homogênea, com a exclusão de outros. O termo “povo inglês”, como usado em discursos políticos, por exemplo, tem designado implícita ou explicitamente uma população branca. De modo semelhante, o termo “classe trabalhadora” tem servido com frequência para nomear todos os trabalhadores, mas principalmente homens que trabalham na indústria.
Finalmente, o partido geralmente se refere a uma forma de organização política centralizada, unificada e hierarquizada. Multidão pretende reconciliar esses termos numa chave plural e democrática: um povo que é heterogêneo internamente e aberto àqueles que estão fora; uma classe que compreende todas as formas de trabalho, assalariado e não assalariado; e uma forma partido horizontal e democrática.
Os chamados movimentos sem líderes dos últimos anos estão certamente trilhando esse terreno, mas nenhum deles chegou ainda a criar formas de organização efetivas e duradouras. A multidão não é espontânea e o termo não foi cunhado para nomear alguma coisa que já existe. Ele antes designa as linhas de um projeto a ser construído.
Nos últimos anos temos visto uma interação crescente entre movimentos sociais e partidos políticos na Europa — por exemplo o Podemos, na Espanha. Como vê estes partidos-movimentos evoluindo nos próximos anos?
Vejo o Podemos como uma aposta ou um experimento que irá medir em que extensão projetos eleitorais podem ajudar movimentos sociais a florescer. Por um lado, é verdade que o Podemos nasceu, em muitos aspectos, do movimento 15M, ou seja, dos acampamentos realizados nas principais cidades espanholas no verão de 2011, e das muitas formas de ativismo que se seguiram, tais como as “marés” em educação e saúde. (As vitórias eleitorais do governo municipal, em 2015, do Barcelona em comum e Agora Madri são demonstrações importantes do poder desses movimentos na política eleitoral.) Por outro lado, o Podemos também tem algumas estruturas centralizadas dos partidos políticos tradicionais.
A aposta, então, é dupla. Primeiro, é simplesmente que os movimentos sociais podem levar o Podemos a uma posição de poder nas eleições nacionais. Segundo, a aposta é que um partido eleitoral como Podemos não pode representar os movimentos — mas, ao contrário, criar espaço para eles florescerem. Nenhum desses resultados está assegurado, mas a aposta certamente me parece valer os riscos.
Qual a sua opinião sobre o PKK dos curdos e a sociedade que eles criaram no norte da Síria? Um grupo que adotou a linguagem da autonomia e da democracia direta, nascido a partir um background mais tradicional de política marxista-leninista.
Como tantos outros, me senti inspirado pela defesa de Kobane em 2014-15 pelas forças curdas contra o Estado Islâmico. Mas heroísmo e façanhas militares me interessam menos que inovações políticas, tanto na Turquia como em Rojava (norte da Síria). Um dos mais significativos desenvolvimentos, a meu ver, teve lugar em nível teórico uma década atrás, quando o movimento curdo mudou seu objetivo de “liberação nacional” para “autonomia democrática”. A mudança conceitual de soberania para autonomia é extremamente importante. (A relação entre esses dois conceitos poderia ser objeto de um estudo muito interessante em teoria política.) E ainda mais importante é como a noção de autonomia democrática é articulada, na prática. As comunidades curdas têm de fato experimentado novas formas democráticas. Por exemplo, para combater desigualdade de gênero, cada posto da estrutura de governo de Rojava precisa ser ocupado por um homem e uma mulher como co-responsáveis. Esse tipo de experiência faz do movimento curdo, um dos principais pioneiros, hoje, em novas formas de democracia.
Como acadêmico, você tem sido bastante ativo politicamente. O que pensa da relação entre academia e ativismo político? Os acadêmicos teriam certa responsabilidade quanto ao engajamento político, por causa da sua posição relativamente privilegiada?
Não acho que “responsabilidade” seja o conceito correto para pensar sobre isso. E uma vez que acadêmicos em geral não são mais capazes de engajamento político que outras pessoas, então não ajudaria em nada considerá-los responsáveis.
Na verdade, penso que é importante romper com a suposição-padrão de uma divisão entre teoria e prática, pela qual intelectuais são autores de teoria e ativistas comprometidos com a prática. A meu ver, algumas das teorizações mais inovadoras, hoje, surgem coletivamente em movimentos. Acadêmicos têm muito a aprender, não só com o que os ativistas fazem, mas também com o que eles pensam e os saberes que produzem.
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“Império” e “Multidão”, quinze anos depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU