Por: André | 26 Novembro 2015
“nem todo o mundo é obrigado a aceitar os direitos da Natureza. Mas a questão é que prescindir desses direitos é algo muito apetecível para os progressismos que queiram, por exemplo, promover a megamineração ou a exploração petroleira em zonas de grande biodiversidade. Essa é uma das razões pelas quais os progressismos aproveitam essa limitação ou fragilidade nesse tipo de perspectiva.”
A análise é de Eduardo Gudynas e publicada por Rebelión, 19-11-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Semanas atrás, compartilhei algumas reflexões sobre a existência de governos e intelectuais progressistas que tomam algumas ideias próprias da esquerda global e aproveitam suas limitações ou as deformam. Seria um “colonialismo simpático”, porque lhes permite manter uma retórica de esquerda enquanto deixam em segundo plano suas contradições. (1)
Foi apresentado como exemplo o uso de determinados conceitos do geógrafo britânico David Harvey, muito promovido no Equador, Bolívia e outros países sul-americanos. Minha preocupação não estava centrada na pessoa, mas em como os progressistas sul-americanos utilizam suas ideias. É um autor muito conhecido por suas críticas ao capitalismo, mas os progressistas aproveitam algumas limitações nos seus conceitos para se legitimarem.
Foram destacados quatro problemas. O primeiro é o alto nível de abstração, que se centra na crítica do capitalismo globalizado, que permite esquivar-se das contradições locais dos nossos governos. O segundo é uma minimalização da dimensão ecológica local, que é aproveitada para questionar o capitalismo, mas tolerando a destruição da própria Natureza. O terceiro é a limitada atenção às ideias indígenas, o que permite dizer-se anticapitalista, enquanto se afastam dessas cosmovisões e fustigam as suas organizações. Finalmente, as alternativas ao capitalismo são delimitadas ao se centrarem no valor de uso sobre valores de troca, o que não tem nada de ruim, mas é insuficiente, já que nos deixa sem muito lugar para os direitos da Natureza.
Minha nota despertou algumas respostas. Agradeço por essas contribuições ao serem muito úteis para melhorar os meus argumentos. (2) De qualquer modo, creio necessárias algumas precisões.
Em primeiro lugar, questionaram-me pelo fato de assinalar que o conceito de Harvey de “acumulação por despossessão” em “suas ideias básicas não é uma novidade”. Isto é uma surpresa muito grande e peço ao leitor um pouco de paciência com os detalhes. É que o próprio Harvey reconhece que está baseado na ideia de Marx da acumulação primitiva ou originária, e propôs um novo termo, não tanto por diferenças substanciais, mas porque não é nem “primitiva”, nem “originária”, mas está atualmente em marcha. (3) Harvey diz que aqueles termos de Marx devem ser “substituídos” pelo vocábulo despossessão.
Há uma série de autores que propõem posições similares às do meu artigo. Por exemplo, Giovanni Arrighi (junto com N. Aschoff e B. Scully), ao abordar a situação na África do Sul, assinalou que a “acumulação por despossessão” de Harvey é em grande medida um “sinônimo” do conceito de Marx e acrescenta que os processos aos quais se referem os dois conceitos são os mesmos. (4) Então, minhas palavras não são muito originais e não deveriam ser uma surpresa.
Também entendo que todos aceitamos que há uma longa lista de autores e militantes latino-americanos que denunciaram as práticas predatórias de apropriação dos recursos naturais da América Latina, de usurpação de suas terras e suas vidas e de imposição das condições de opressão. Essas são as problemáticas às quais faz alusão a “acumulação por despossessão”, e não tem nada de ruim em reivindicar e privilegiar essas contribuições a partir do nosso Sul. (5)
Em segundo lugar, o problema do “colonialismo simpático” não é um ataque a Harvey, nem tampouco implica uma negação de todos os autores do Norte, uma negação do marxismo ou coisas do estilo. Pelo contrário, meu interesse era assinalar os usos deformados de ideais do Norte acadêmico quando são aproveitadas pelos progressistas do Sul para se legitimarem. Meu artigo original diz: “Não estamos diante de um problema com Harvey, mas diante de uma limitação em nós mesmos, latino-americanos”.
Apesar de todas essas advertências aconteceu o que tinha que acontecer: recebi críticas nas quais meus críticos insistem em que o foco estava em questionar Harvey. E com isso fica para trás, outra vez, o desempenho dos progressistas. Novamente estamos diante de um clássico problema de “compreensão leitora”, onde se diz “A”, mas recebe críticas como se tivesse dito “Z”. Assinalo esta dinâmica, porque é muito própria de posturas dogmáticas, e é usada tanto em ambientes neoliberais como no progressismo fanático. Então volto às palavras do meu artigo: “insisto em que muitas de suas teses (de Harvey) são compartilháveis ao oferecerem um valioso instrumental para entender o capitalismo global”. Se resta alguma dúvida, agora acrescento que não tenho nenhum interesse em um enfrentamento personalizado.
Em terceiro lugar, agora sim podemos abordar a minha preocupação: aproveitar-se das insuficiências ou limitações das ideias de Harvey, assim como de outros autores (Toni Negri, por exemplo), para entender a atual América Latina. Nisto o questionamento mais duro veio de um centro de pesquisa sobre temas de território (CENEDET), vinculado ao Instituto de Altos Estudos Nacionais (IAEN), em Quito. (6)
Eles entendem que a minha nota foi uma crítica a Harvey, mas boa parte da sua reação não se centra no problema central do meu artigo, ou seja, em como os progressismos usam algumas ideias para construir discursos anticapitalistas sem assumir as próprias contradições nem tentar mudá-las. Procuram, ao contrário, defender Harvey. Mesmo que tenham essa intenção, seu argumento principal não repousa tanto nas qualidades das ideias de Harvey, mas em denunciar que as posições sobre os extrativismos estão em geral equivocadas (e assumo que, sobretudo, minhas contribuições em particular), e que inclusive fazem parte de uma perspectiva burguesa. Surpreendentemente, mistura-se no debate o papel dos “extrativismos”, tais como a exploração mineral, petroleira ou agrícola, em grandes volumes que serão exportados.
Proponho-lhes analisar a questão com calma e em dois passos. O primeiro passo é assumir, por um minuto, que os questionamentos do CENEDET-IAEN acertaram e que tudo o que foi dito sobre os extrativismos, por exemplo, os alertas diante da megamineração ou da exploração de petróleo na Amazônia, sejam um grande equívoco ou fruto do pensamento burguês. Se fosse esse o caso, isto converteria o uso que esse grupo faz das ideias de Harvey em uma verdade? Isso converteria a megamineração em uma estratégia anticapitalista? Certamente, não. Estamos falando de questões muito diferentes: a acumulação por despossessão e os extrativismos. São muito diferentes em seus conteúdos, propósitos, alcances e marcos conceituais.
Claramente estamos diante de um erro metodológico que se tornou muito comum, onde se tenta anular uma perspectiva sem analisá-la em si mesma, mas criticam-se questões colaterais. É o mesmo erro que ocorre quando as advertências e alertas sobre os extrativismos não são apreciados em si mesmas, mas são taxadas de serem expressões conservadoras, burguesas ou infantis.
O segundo passo consiste em examinar a validade ou o rigor dos questionamentos do CENEDET-IAEN. Apelarei a alguns exemplos. Comecemos pelo primeiro. O CENEDET-IAEN afirma muito enfaticamente que no meu artigo original digo que o “conceito de valor de uso não tem aplicação na América Latina”. Em nenhum lugar do meu artigo se diz isso. Outra vez aparece esse problema da compreensão leitora.
O que na realidade o meu texto diz é que as alternativas que desandam a primazia do valor de troca (como ocorre com a economia financeirizada), para os valores de uso, têm limitações. Uma vez mais esclareço: não é que isso esteja mal, e certamente são contribuições muito importantes e necessárias, mas são insuficientes. Isso se deve ao fato de que na América Latina há reflexões e práticas cidadãs que vão além do valor de uso e da troca, e entre elas destaca-se o reconhecimento dos direitos da Natureza no Equador. Se não se reconhecem essas outras pluralidades de valoração, notáveis avanços como os direitos da Natureza incluídos na Constituição do Equador, ficam relegados a um segundo plano.
Entendo que a formulação do assunto sobre os valores, assim como o faz o CENEDET-IAEN, mostra que não conseguem ver ou hierarquizar a importância de valores que não sejam antropocêntricos, como os direitos da Natureza. E isso é compreensível; nem todo o mundo é obrigado a aceitar os direitos da Natureza. Mas a questão sobre a qual chamava a atenção é que prescindir desses direitos é algo muito apetecível para os progressismos que queiram, por exemplo, promover a megamineração ou a exploração petroleira em zonas de grande biodiversidade. Essa é uma das razões pelas quais os progressismos aproveitam essa limitação ou fragilidade nesse tipo de perspectiva. E esse era justamente o ponto central do meu artigo.
O segundo assunto são os questionamentos dos alertas sobre os extrativismos. Precisemos que uma análise dos extrativismos é essencialmente uma crítica às raízes de modos de desenvolvimento incompatíveis com a justiça social, ambiental e ecológica. Dessas advertências participam muitos acadêmicos e militantes sobretudo sul-americanos. São abordadas muitas dimensões, razão pela qual sustentar que as dinâmicas globais ou o papel do capital não são atendidos tão somente revela que não se leu ou se leu de maneira superficial. (7) Como esse não é o tema central, basta indicar que, ao menos no meu caso, essas questões ocupam ao menos três capítulos do meu recente livro Extrativismos. (8)
Ao contrário, a equipe do CENEDET-IAEN afirma que uma abordagem baseada em Harvey é superior ao vincular o local com o global. Oferecem como exemplo a espoliação violenta de indígenas amazônicos devido à superacumulação de capital na China. Isso está muito bem, pode ser muito útil. Mas é insuficiente e isso fazia parte do problema central abordado na minha nota.
A insuficiência se deve ao fato de que entre a Amazônia e Pequim existe um amplo leque de atores e ações intermediárias. Na espoliação também agem, por exemplo, os nossos Estados, os governos centrais e municipais, grupos empresariais nacionais, acadêmicos, crioulos e muitos outros. Há vezes em que os governos progressistas convertem-se em um dos principais fatores da despossessão (seguindo a terminologia de Harvey). E essa problemática é minimizada sob a perspectiva preconizada pelo CENEDET-IAEN.
Pergunto-me se, por exemplo, as mudanças normativas para abrir as áreas protegidas às petroleiras ou a criminalização da resistência indígena, se devem às necessidades de acumulação de capital da China ou dos Estados Unidos, ou se não respondem também a dinâmicas internas ao próprio país? Questões recentes, como o fechamento de uma ONG para que não interferisse com concessões petroleiras em um país, ou o megaplano de apoio financeiro de mais de 3,5 bilhões de dólares que outro país outorgará à exploração de hidrocarbonetos, foram decididas em Pequim?
Claro que é importante analisar o papel de Pequim ou de Wal Street, mas é insuficiente. E esse era o ponto do meu artigo. Essas questões locais e nacionais ficam relegadas no tipo de perspectiva proposta pelo CENEDET-IAEN. Precisamente por esses motivos esse tipo de perspectiva é alentado pelos progressismos, já que assim esquivam a urticária de suas próprias contradições. Paradoxalmente, a crítica da equipe do CENEDET-IAEN deixa toda essa limitação em cristalina evidência.
No meu modo de ver as coisas, revelar e discutir essas contradições são hoje as questões mais urgentes. Por todas estas razões, insisto em que é necessário romper esse tipo de colonialidade e construir um olhar crítico latino-americano sob uma esquerda independente, a que sempre deve atender as reais situações nacionais e locais (crítica enraizada), considerar as implicações para as nossas Naturezas (crítica ecológica), que dialogue e aprenda com os povos originários (crítica intercultural), para a partir dali promover vias de saída para as variedades de desenvolvimento (crítica à Modernidade).
Notas:
1. “La necesidad de romper con un ‘colonialismo simpático’”, por Eduardo Gudynas. Rebelión, 30 de setembro de 2015. O texto baseia-se em artigos publicados em Animal Político, La Razón (Bolívia) e Plan V (Equador).
2. Como exemplo, estou agradecido a Tania Herrera, concordo com muitos de seus pontos, ao passo que outros serviram para pulir minhas posições. “Espíritu crítico universal y alternativas locales: sobre la polémica Gudynas-Harvey”. La Mula (Peru), 19 de outubro de 2015.
3. “O ‘novo’ imperialismo: acumulação por despossessão”, por D. Harvey, Socialist Register, 2004.
4. “Accumulation by Dispossession and Its Limits: The Southern Africa Paradigm Revisited”, por G. Arrighi, N. Aschoff y B. Scully. St Comp Int Dev 45: 410-438, 2010.
5. Malfred Gerig discorda das minhas posições da analogia direta entre a acumulação original de Marx e a despossessão de Harvey, mas como se explica acima essa “substituição” de palavras é reconhecida pelo próprio Harvey. Quanto à sua crítica, a de uma “decolonialidade naif”, parece-me que é muito clara a evidência dos empecilhos, barreiras e segregações interpostas no mundo acadêmico em relação aos saberes do Sul. E não deixa de ser chamativo o fato de que eu seja acusado de “ingênuo” sobre a colonialidade do saber apelando justamente a um termo derivado do francês. Cf. “La disputa por los conceptos adecuados: ¿Colonialismo simpático o decolonialidad naif?”, Rebelión, 20 de outubro de 2015.
6. “Ni colonialistas, ni simpáticos: una respuesta a Eduardo Gudynas”, por E. Martínez, V. Morales, C. Simbaña, J. Wilson, N. Fernández, T. Purcell y J. Rayner, Rebelión, 16 de outubro de 2015.
7. Aproveito para comentar outro questionamento, neste caso de L. Gallardo, uma estudante da Universidade de Barcelona. Ela assinala o que seriam ausências na minha abordagem e oferece uma lista de queixas. No entanto, quase todos os seus pontos, na realidade, foram tratados nos estudos sobre extrativismos. Por exemplo, ela reclama entender a função social da renda, discernir o papel da direita e do empresariado (nacional e transnacional) ou a configuração e organização (do agro, diz ela, mas eu acrescentaria outros setores). Como tudo isso foi considerado nos estudos sobre extrativismos, sua crítica mostra que não está a par dos debates aqui no Sul. Mas, além disso, muitas avaliações que ela apresenta são muito próximas, e alguns casos quase iguais, às conclusões da literatura extrativista. Ou seja, cai-se no paradoxo de criticar uma aproximação que em vários casos faz apreciações similares. Há, de qualquer modo, uma diferença básica explícita: Gallardo afirma que pensar a partir da economia é o “único lugar para a viabilidade de qualquer projeto político”, uma ideia comum entre muitos progressistas. Esta é uma afirmação que estimo difícil de defender (o único? A viabilidade política é apenas econômica? Etc.). Cf. “¿Puede Gudynas salvarse del colonialismo simpático?”, La Línea de Fuego (Ecuador), 5 de novembro de 2015.
8. “Extractivismos. Ecología, economía y política de un modo de entender el desarrollo y la Naturaleza”, por E. Gudynas. CEDIB e CLAES (Bolívia), 2. ed., RedGE, CooperAcción e PDTG (Peru), 2015.
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Debates em torno do extrativismo. Colonialismo “simpático” e as contradições dos nossos progressismos. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU