24 Novembro 2015
Esperar que 100% dos brasileiros tenham acesso a água e esgoto tratado não é um patamar extraordinário, mas um objetivo a perseguido por governantes que deve ser exigido pela população. Afinal, chega a ser inconcebível constatar que o cheiro de ovo podre, causado por um descaso do poder público em prover saneamento adequado, seja capaz de “anestesiar” órgãos ligados ao olfato através do efeito do gás sulfídrico. O alerta é feito por Pedro Mancuso, professor Doutor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, para quem a questão da coleta de esgotos gerados em áreas carentes precisa ser encarada de forma mais responsável.
A entrevista é de Marsílea Gombata, publicada por CartaCapital, 23-11-2015.
“Vejo um grande vazio na forma de tratar de maneira igualitária populações diferentes, do ponto de vista de renda”, observa em entrevista a CartaCapital. “O acesso à água, ao saneamento e à alimentação é um direito humano”.
Eis a entrevista.
Em termos de saúde, quais os principais problemas que a falta de saneamento pode causar às populações obrigadas a conviver sem ele?
Há muitos, entretanto, acredito que o mais importante é a perda da dignidade que um cidadão desprovido do serviço experimenta. O acesso à água, ao saneamento e à alimentação é um direito humano. Atingir a meta de 100% de atendimento da população com água e esgoto coletado e tratado deve ser um objetivo a perseguido pelos tomadores de decisão, e isso deve ser exigido e cobrado. Talvez na falta de acesso à informação de forma clara, por parte da população, é que está a raiz desse mal.
Quais doenças (dermatológicas e de outros tipos) podem ser causadas pela falta de saneamento? Elas podem evoluir de que maneira?
As doenças que podem ser associadas à água são muitas. Algumas se devem à ingestão da água, como a disenteria bacilar causada pela bactéria Shigella dysenterriae, a cólera transmitida pela bactéria Vibrio cholerae, a leptospirose pela Leptospira, a salmonelose causada pela Salmonella, a disenteria amebiana causada por um protozoário chamado Entamoeba histolytica, a hepatite infecciosa transmitida pelo vírus da hepatite A, a paralisia infantil pelo poliomielites vírus. Outras doenças são adquiridas pelo contato com água contaminada, como a escabiose (sarna) transmitida pelo Sarcoptes scabiei e o tracoma transmitido pela bactéria Chlamydia tracomatis. Existem também aquelas em que a água exerce um papel no ciclo do microrganismo, como por exemplo a esquistossomose, e também doenças transmitidas por insetos, tendo a água como meio de procriação como a dengue, a malária e a febre amarela. É importante lembrar ainda os chamados contaminantes emergentes, que transmitem inúmeras doenças e só recentemente vêm sendo pesquisados, como, por exemplo, águas contendo hormônios, plastificantes, fármacos e outros produtos que só agora estão sendo investigados.
Em termos químicos, o que tem no cheiro de ovo podre que sai de rios poluídos e esgotos a céu aberto em locais sem saneamento?
Existem vários gases que são formados a partir da decomposição dos esgotos. Em particular, o famoso cheiro de ovo podre se deve ao gás sulfídrico formado pela atividade de microrganismos na decomposição dos esgotos. Esses microrganismos agem quando existe um “déficit” de oxigênio no esgoto bruto. Esse “déficit” ocorre quando a quantidade de esgoto presente num corpo de água é superior à quantidade de oxigênio que seria biologicamente demandada. Ou seja, quando a demanda bioquímica de oxigênio conhecida por DBO, não é satisfeita. Dessa forma, para o fornecimento de oxigênio que satisfaça essa demanda é importante realizar operações nas estações de tratamento de esgoto para a inibição da formação desse gás.
Quais os principais problemas a curto prazo que o cheiro de esgoto pode causar? E a longo prazo?
A curto prazo, dores de cabeça, náuseas e tonturas são relatadas. A longo prazo, são encontradas referências no ataque às estruturas metálicas e impregnação do revestimento das casas, nos móveis e utensílios que ficaram expostos por longos períodos, sendo comum a referência sobre a desvalorização desses imóveis. É o caso de algumas cidades banhadas pelo rio Tietê nos trechos mais poluídos, próximos a São Paulo.
Mesmo que deixemos de sentir o cheiro, ele ainda continua causando problemas?
O gás sulfídrico é capaz de “anestesiar” os órgãos ligados ao olfato. Assim, é comum pessoas que moram próximas às fontes desse gás relatarem que o forte odor já foi pior e que atualmente praticamente não existe. Entretanto, esses relatos são contraditórios à luz de medições feitas com instrumentos de detecção de odor e da presença do gás sulfídrico.
Se houver investimento em saneamento, podemos economizar em saúde? De quanto é essa proporção, ou seja: quanto precisamos investir em saneamento para economizar em saúde hospitalar?
Na realidade essa proporção é diferente para cada fonte ou cada autor consultado. O que, no entanto, é consenso é que existe uma forte relação entre investimento em saneamento e economia em despesas com saúde. Alguns autores afirmam que essa relação se encontra em torno de 1 dólar investido em saneamento para cada 4,3 dólares economizados em saúde. Acho bastante difícil precisar esse valor, mas, para nós, da Faculdade de Saúde Pública da USP, a existência dessa correlação já é indicativa do caminho a ser seguido.
Em termos de saúde, o que de mais urgente o poder público deveria fazer em áreas sem saneamento – tapar as valas, canalizar, tratar?
Para uma resposta mais precisa, há a necessidade de uma discussão anterior sobre “o que é saúde”. Hoje saúde não é simplesmente ausência de doença. Fatores ligados a qualidade de vida, quando ausentes, podem ser considerados como problemas de saúde que podem gerar doenças. Atualmente, falta de sistema de transporte público adequado, trânsito agressivo e barulho também são levados em conta quando se pensa em saúde pública. Assim, a ausência de um serviço de saneamento básico adequado é um fator que influencia a saúde humana, mas existem outros importantes também.
Em termos de saneamento básico, a ordem natural é a implantação do serviço de captação, tratamento e distribuição de água potável, seguida da coleta dos esgotos decorrentes do uso dessa água e por último, mas não menos importante, o tratamento e a disposição desse esgoto tratado no meio ambiente.
O fato de mesmo em alguns bairros ricos o esgoto ser coletado mas não tratado influi na vida dessa população?
Se não detectado pelos órgãos dos sentidos, a população não percebe a falta do serviço. Entretanto, esses esgotos acabam sendo despejados em rios que afetarão outras pessoas, que eventualmente captem água desses corpos de água. E, como não existe um rio para cada cidade, fatalmente isso irá acontecer.
O tratamento de esgoto e água é o único meio de não termos contato com esse tipo de sujeira? Como deveria ser feito, por exemplo, a utilização da água de reuso?
O reuso sempre é feito, na maioria das vezes de forma não planejada. Não existe uma forma de utilizar água uma única vez. Ela sempre, de uma forma ou de outra, retornará ao meio ambiente e será reusada. Para que a população não tenha contato com o esgoto bruto a única forma de fazê-lo é tornando esse esgoto não bruto, ou seja, que ele seja tratado de forma segura e sua reutilização se dê de forma planejada e controlada.
Existem inúmeros casos na bibliografia especializada, dando conta de que a água produzida em estações de reuso são mais seguras do que aquela produzida pelo sistema convencional. E a explicação para isso é simples: como tratam-se de estações projetadas para reuso, o controle é feito de forma específica atender uma determinada finalidade, às vezes com padrões mais rigorosos que aqueles para água potável.
Quais principais falhas políticas apontadas no setor de saneamento no Brasil? O senhor defende algum tipo de mudança no que diz respeito a gestão ou elaboração de políticas públicas?
O atual modelo teve origem no Plano Nacional de Saneamento (Planasa), concebido nas décadas de 60 e 70 e que foi sofrendo ajustes conforme foram alteradas as condições econômicas e sociais do País. Vejo um grande vazio na forma de tratar de maneira igualitária populações diferentes, do ponto de vista de renda. A questão do fornecimento de água e a coleta dos esgotos gerados em áreas carentes, por exemplo, precisa ser encarada de forma mais responsável.
Via de regra, nas capitais brasileiras os bairros mais carentes localizam-se no entorno dos mananciais de água potável, não havendo uma proposta para contornar esse problema. Em última análise, isso na realidade é uma das consequências da pobreza, que só pode ser minimizada através de medidas econômicas e sociais adequadas.
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Esperar que 100% tenham água e esgoto é o mínimo, diz sanitarista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU