Por: André | 23 Novembro 2015
O livro Como o Papa tornou-se infalível, de August Bernhard Hasler, é “um impressionante relato de quanto aconteceu no Vaticano naquele não muito distante 1870. Um perfil exaustivo de um Papa, Pio IX, obstinado em ser declarado infalível. Uma crônica do Concílio Vaticano I, que Hasler considera ilegítimo por falta de ecumenicidade e de liberdade”.
A reflexão é de Celso Alcaina, Doutor em teologia Bíblica e Filolofia, Licenciado em Direito e ex-oficial do Vaticano, e publicada por Religión Digital, 15-11-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
“Eu não sou nem serei infalível”. Os alunos do Colégio Espanhol de Roma não dávamos crédito a quanto estávamos ouvindo. A frase estava sendo dita por um Papa, João XXIII, até poucos dias antes Angelo Giuseppe Roncalli. O sucessor de Pio XII, que reafirmou sua infalibilidade com a proclamação de um dogma, o da Assunção de Maria.
August Bernhard Hasler não pergunta. Constata, ilustra, analisa e propõe. Como o Papa tornou-se infalível (Wie der Papst unfehlbar wurde) é o livro que publicou há 35 anos na Alemanha. Na Espanha, em 1980. Um impressionante relato de quanto aconteceu no Vaticano naquele não muito distante 1870. Um perfil exaustivo de um Papa, Pio IX, obstinado em ser declarado infalível. Uma crônica do Concílio Vaticano I, que Hasler considera ilegítimo por falta de ecumenicidade e de liberdade.
Poucos anos depois, em 1970, Hans Küng, com seu livro Infalível? Uma pergunta (Unfehlbar? Eine Anfrage), abordava, com uma interrogação, a mesma questão. Ele a resolvia de maneira muito semelhante, embora com argumentos filosóficos diferentes. Segundo Küng, a indefectibilidade da Igreja não exige a infalibilidade da própria Igreja. E menos ainda a infalibilidade pessoal do Papa, assim como definida no Vaticano I.
Ocorre-me que foi o Papa Roncalli quem, com seu comportamento, propiciou os modernos estudos sobre o Vaticano I e, especificamente, sobre a infalibilidade papal. E isso não é apenas uma ideia. No começo da década de 70, tratei August B. Hasler como colega no Vaticano. Ele, no Secretariado para a União dos Cristãos. Eu, no Santo Ofício. Paulo VI consumia seus penosos últimos anos de Pontificado. Sem ter sido “infalível”, tinha tido traços autoritários, tais como a Humanae vitae. Com frequência, os funcionários comentavam e murmuravam. Hasler evocava João XXIII. Roncalli tinha sido o Papa exemplar, dizia.
“Cada vez está mais claro que o dogma da infalibilidade papal carece de base na Bíblia e na História da Igreja do primeiro milênio. Mas se o Concílio Vaticano I não foi livre, também não foi ecumênico. E, portanto, seus decretos não podem ter validade alguma. Com isso, fica aberto o caminho para a revisão deste Concílio, e abre-se ao mesmo tempo um caminho de saída para uma situação que parece cada vez mais insustentável, tanto para a ciência histórica como a Teologia. Pede-se demais à Igreja? Ela pode admitir que um Concílio se equivocou? Que em 1870 se tomou uma decisão errada?
Caso se levar realmente a sério a colegialidade dos bispos, chegou o momento de rever, em um Concílio Vaticano III, o que o I colocou em movimento. E a consequente perda de autoridade? Não torna inimaginável qualquer tipo de revisão? Não é muito mais hábil interpretar de modo diferente o dogma e adaptar-se às novas circunstâncias? Mas, tomando este caminho, a Igreja não perderia muito mais? Uma revisão teria a grande vantagem da honradez.
Devemos esperar que se produza o exame sem prejuízos que todos desejam, para trazer à luz do dia a verdade, toda a verdade. Porque, já foi dito, somente a verdade nos libertará”.
Com essas palavras Hasler termina o seu livro. Uma obra de 260 páginas que é um compêndio de vários artigos e livros publicados anteriormente. Nele, ele percorre e se detém nas peripécias da discussão conciliar. Distingue nitidamente as duas facções: infalibilistas e antiinfalibilistas. Desnuda seus argumentos, contradições, fraquezas, disputas e assimetria. Aponta Pio IX como o instigador e responsável pelas manobras que ocorreram durante o Concílio. Um Papa ao qual atribui tantos defeitos que chega a produzir aversão ou comiseração. Psicopata, pseudomístico, visionário, ditador, cruel, além de epiléptico.
Pio IX estava convencido de sua infalibilidade pessoal. Já em 1854, tinha feito uso dessa prerrogativa. Proclamou o dogma da Imaculada Conceição de Maria. Durante anos a cúria se encarregou de esquentar os ânimos de hierarcas e do povo católicos. Depois da Ineffabilis Deus, impunha-se a crença na infalibilidade. O contrário era ir contra o sentir e a convicção do Papa. Em uma palavra, era algo herético. Sobre essa base foi convocado e desenvolveu-se o Concílio Vaticano I.
Ao longo de todo o Concílio houve uma grande desproporção entre infalibilistas e antiinfalibilistas. Basta apontar que os bispos italianos, mais de 200, representavam a quarta parte do total. E os bispos italianos dependiam duplamente do Papa-rei. Pio IX chegou a intimidá-los com a ameaça de deixá-los na miséria ou destituí-los, caso se alinhassem com a oposição. O Concílio inclinou-se majoritariamente a favor da autoridade e contra a discussão; a favor do Papa e contra a soberania conciliar; a favor do caudilho e contra o Parlamento.
Segundo Hans Küng, no prólogo ao livro que comentamos: “Hasler informa sobre o que se refere à questão da infalibilidade de um modo sistemático e sem escrúpulos... O que Hasler publica sem nenhum tipo de dissimulação nem paliativo já é uma ‘chronique scandaleuse’, uma lista das manipulações que o debate sobre a infalibilidade sofreu, da preparação, condução e imposição da infalibilidade e em definitiva de Pio IX”.
Enquanto Hasler denuncia a falta de ecumenicidade e de liberdade do Vaticano I, Küng atribui a este Concílio um valor semelhante a outros concílios anteriores, quase sempre midiatizados por forças espúrias.
Não obstante os ataques de autoritarismo dos bispos de Roma a partir de Constantino, durante o primeiro milênio, os Papas não falaram de sua infalibilidade. Tampouco o cristianismo estava consciente dessa suposta prerrogativa papal. Ao contrário, impôs-se a teoria conciliarista. É sintomático e esclarecedor o fato de que o Papa Honório I (625-638) tenha sido condenado por três subsequentes concílios por causa do seu “monotelismo”. E que o Papa João XXII tenha condenado, como obra do diabo, a doutrina da infalibilidade papal defendida pelo franciscano Petrus Olivi. O Concílio de Constança (1414-1418) aprofundou a teoria conciliarista desacreditando a instituição do Papado.
A cristandade do final da Idade Média, em meio a cismas e heresias, estava desorientada. Tentava desesperadamente recuperar a segurança perdida. Buscava-se alguém em quem confiar e a quem seguir. Uma instância infalível. Por isso, não soou como blasfêmia o fato de que Bonifácio VIII (1294-1303) tenha atribuído a si mesmo todo o poder no céu e na terra.
A Reforma iniciada por Lutero veio para dar impulso à autoridade doutrinal do Papa. Era necessária uma resposta autoritária. Doutrinariamente, o pêndulo inclinou-se para o extremo oposto às teses de Lutero. Embora os papas acariciassem sua própria infalibilidade, o Concílio de Trento não levou a sério a infalibilidade papal. É a partir dessa época que a ideia da infalibilidade papal vai tomando corpo. Com fortes resistências, os bispos italianos e os teólogos jesuítas alimentaram a ideia da infalibilidade papal. Mesmo no início do século XIX, a doutrina da infalibilidade papal era rechaçada de modo geral, menos na Itália e na Espanha.
A partir da Revolução Francesa e com as diversas concordatas, o Papado adquire uma relevância insuspeita e desferiu um golpe mortal no galicanismo. Pio VII promoveu-se com o apoio especial do baixo clero. Todos buscavam um ponto de apoio em Roma. As maiores resistências ao Papado vinham dos territórios da diáspora: Holanda, Inglaterra, América do Norte e missões.
A busca da autoridade cresceu a tal ponto que teólogos como Joseph Maistre (Sobre o Papa, ano 1821) exigiram um papa infalível. E isso por motivos sociopolíticos, sem buscar fundamentos bíblicos ou históricos. Um movimento chamado “ultramontano”, apoiado por vários escritores franceses e alemães, predominantemente jesuítas. Era preciso desenvolver os privilégios papais com a finalidade de impor objetivos eclesiásticos. Gregório XVI (1831-1846) fortaleceu o novo e intransigente movimento e condenou o liberalismo. Segundo ele, a liberdade de consciência era uma “ideia absurda e falsa”. Seus dardos apontavam, sobretudo, para a liberdade de imprensa.
A estrada já estava pavimentada. Seu sucessor, Pio IX (1846-1878) endureceu esta postura. Assustado com a Revolução de 1848, decidiu levantar um dique contra a secularização, contra o liberalismo, o racionalismos e o naturalismo. Um dique que se chamava autoridade infalível do Papa. Nomeou bispos apenas de tendência ultramontana. Para garantir o contato individual com os bispos, proibiu a formação de Conferências Episcopais Nacionais. Impôs a obrigação das visitas episcopais regulares à Santa Sé. Introduziu meios curialistas de louvores, censuras, pressões e condenações. Os núncios auxiliavam nesta política papal. Foram alinhadas a Teologia e a Catequese. Os livros de tendência episcopalista acabavam no Índice ou eram queimados. Em muitos catecismos ensinava-se a doutrina da infalibilidade pontifícia. Roma fomentou que nos concílios provinciais se ensinasse a autoridade e a infalibilidade do Papa.
Mas a prova palpável da convicção do Papa Mastai-Ferretti foi a proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria. Foi, além disso, uma pressão indireta sobre o cristianismo. É verdade que uma enquete realizada previamente indicava que a maioria dos bispos era favorável ao dogma. Mas Pio IX opôs-se ao fato de que o tema fosse discutido. As opiniões negativas oriundas da Alemanha tornavam o debate arriscado. “Contra facta non valent argumenta”. Pio IX demonstrou ser infalível com a proclamação do dogma. Demonstrou isso a si mesmo e ao cristianismo. Portanto, o Papa é infalível quando fala “ex catedra”. Um reconhecimento de fato que Pio IX considerou que deveria ser levado ao reconhecimento de direito em um Concílio.
Os “ultramontanos” outorgavam ao Papa títulos, tais como: Rei, Papa-Rei, Soberano, César, Rei Altíssimo, O mais amado dos Reis, Príncipe Majestático, Regente Supremo, Máximo Soberano do mundo, Rei dos Reis, Vice-Deus da Humanidade. Um verdadeiro culto à personalidade com vestígios de misticismo e fetichismo.
Por outro lado, políticos, teólogos e historiadores da Europa Central manifestavam-se contra a papalatria. Confiavam no fato de que nunca seria proclamada uma doutrina não contida na Bíblia ou na Tradição. Inicialmente, também a cúria era contrária a um Concílio que definisse a infalibilidade. Mas, conhecido o teimoso desejo do Papa, o pragmatismo se impôs. Temia-se um cisma. Nos albores do Concílio, as forças antiinfalibilistas superavam as infalibilistas. Graças aos jesuítas, particularmente à revista La Civiltà Cattolica, as coisas começaram a mudar. A partir da convocatória do Concílio, em setembro de 1868, o ambiente foi se esquentando. Aos ultramontanos uniram-se muitos bispos e núncios que sugeriam aos fiéis que enviassem cartas ao Papa exigindo a definição do dogma da infalibilidade. Os escritores e jornalistas defensores do dogma recebiam o reconhecimento papal. Ao defensor da infalibilidade Prosper Guéranger o Papa, em março de 1970, escreveu um elogio no qual acusava os antiinfalibilistas de temeridade, loucura, insensatez e extraordinária desfaçatez. Ao contrário, os escritos da oposição suscitavam a ira do Papa. Assim, os escritos de Von Döllinger e de Le Page Renouf foram parar no Índice de Livros Proibidos. Muitos bispos e superiores religiosos emularam Pio IX proibindo a leitura de livros críticos ao dogma. Às vezes, inclusive castigando com a deposição os autores das publicações ou dos ensinamentos.
Na organização do Concílio, tomaram a dianteira os infalibilistas que dominaram a presidência e as diversas comissões. Além disso, o regulamento foi elaborado e publicado exclusivamente pelo Papa. O controle do aparelho conciliar estava garantido. Papa, cúria e jesuítas estavam empenhados no mesmo. O elemento romano-infalibilista dominava totalmente. Para dar aparência de imparcialidade, foram excluídos alguns teólogos e bispos da tendência dissidente.
“Tudo está organizado e dirigido de tal modo que – escreveu em Londres em janeiro de 1869 Odo Russell, encarregado de negócios britânicos junto à Santa Sé – aos bispos do exterior era inteiramente impossível manifestar suas ideias de maneira individual e independente. Ficarão surpresos quando se virem obrigados a sancionar o que queriam ter condenado”. Esse era o ambiente que se respirava na Assembleia. Mais que tenso, tornou-se trágico. As pressões dos infalibilistas eram constantes e multiformes. Vários bispos da minoria protestaram e falaram de práticas inquisitoriais. Muitos se ausentaram definitivamente. O bispo de Montpellier, Lecourtier, jogou os documentos conciliares no rio Tibre, gesto que lhe custou a deposição da sua diocese.
A intromissão de Pio IX no Concílio era clara, constante e insuportável. Sobretudo, quando correrem rumores de uma nova guerra entre a Alemanha e a França, com possíveis nefastas consequências para os Estados Pontifícios. Diante desta situação, muitos bispos de ambas as facções preferiam adiar a discussão da infalibilidade. Mas o Papa se enfureceu qualificando essa postura de vergonhosa, uma infâmia e de falta de hombridade. “Estou tão decidido a ir em frente que, caso for preciso, proclamarei eu mesmo a decisão e acabarei com o Concílio, caso este preferir o silêncio”. Estas são palavras de Pio IX ditas ao redator-chefe da La Civiltà Cattolica.
Faltavam as condições psicológicas, materiais e formais para uma autêntica discussão livre. Tanto o Papa como os infalibilistas consideravam os seus adeversários como hereges. Assemelhavam-nos aos protestantes e aos infiéis. A Sala era ruim acusticamente. O regulamento obstaculizava as intervenções de quem não era membro das Comissões. Era proibido imprimir os discursos. Impossível reunir-se em pequenos grupos. Foi negada uma comissão mista proposta pelo grupo minoritário para discutir os pontos controversos. Representantes da minoria eram interrompidos constantemente em suas intervenções. A maioria aplaudia, murmurava ou gritava, conforme o caso, provocando cenas de fúria ou de tumulto. Contra o bispo Strossmayer, que afirmou que também havia protestantes que amavam a Jesus, vociferaram: “É Lúcifer, um segundo Lutero. Anátema!” Segundo Dupanloup, os bispos podiam falar, mas não discutir.
Pio IX, enquanto felicitava pessoalmente os defensores da infalibilidade (entre eles o bispo espanhol Miguel Payá y Rico, depois cardeal arcebispo de Compostela), censurava publicamente os contrários, chamando-os de guias de cegos, amigos deste mundo, ignorantes, covardes, asnos ou heresiarcas. O Papa costumava negar a estes bispos a audiência solicitada e, no caso de concedê-la, aproveitava para convencê-los da oportunidade de definir o seu dogma. São proverbiais, ao mesmo tempo que escandalosas, as humilhações impingidas por Pio IX aos bispos antiinfalibilistas. Ao cardeal Filippo Guidi (suposto filho de Pio IX) que, em nome da Tradição, propôs uma louvável fórmula de consenso entre as duas facções, o Papa o chamou à ordem e espetou: “A Tradição sou eu”. Os bispos dependentes da Propaganda Fide, assim como os patriarcas e bispos orientais, alinharam-se com os antiinfalibilistas.
Uma intensa batalha foi orquestrada e praticada na imprensa a favor da tese pontifícia. Já citamos a La Civiltà Cattolica. Outras publicações com o mesmo enfoque eram L’Univers, L’Unità Cattolica, La Correspondence de Roma, Il Giornale di Roma e Il Divin Salvatore. E, evidentemente, o L’Osservatore Romano. Tudo quanto publicavam era ditado ou previamente aprovado pelo Papa. Os argumentos da minoria eram ignorados.
Sem o misticismo de Pio IX é impossível compreender sua teimosia na definição do dogma da infalibilidade. Dizia experimentar visões milagrosas que o confirmavam em sua iniciativa. Também dava crédito a supostas aparições de crianças, freiras e freis na mesma direção. A mais explícita foi a de Dom Bosco que, durante o Concílio, teve uma visão na qual se lhe anunciava a definição da infalibilidade. Depois de falar repetidamente com Dom Bosco nos primeiros meses de 1870, o Papa se reafirmou em sua decisão de definir a infalibilidade em qualquer circunstância, mesmo contra o Concílio.
Tanto o bispo Felix Dupanloup como Agustin Theiner, prefeito do Arquivo, tacham Pio IX de pseudomístico e ignorante nas ciências eclesiásticas. Sua idade avançada – 79 anos – acentuava suas limitações. Falava-se de um ancião em regressão à infância. Muitos bispos julgavam que sua decisão de definir o dogma era fruto da obstinação própria da velhice. Chegou a aplicar a si mesmo a frase: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Um dia, passando pela Trinità dei Monti viu um paralítico e lhe gritou: “Levanta-te e anda”. Mas seu experimento fracassou: “Estou convencido de que está louco”, escreveu o historiador Gregorovius em junho de 1870. Opinião compartilhada por muitos bispos, segundo Du Camp. E não apenas pelos da minoria. Também muitos infalibilistas se lamentavam de ter à frente da Igreja um ancião obcecado e paranóico que constituía um sério perigo para a própria Igreja.
Depois do que foi exposto até aqui, parece claro que a liberdade dos padres conciliares esteve seriamente limitada. Vários bispos da minoria fizeram esta denúncia. No final, e devido a esses protestos, os cinco Presidentes cogitaram uma manobra. Pediram a todos os padres conciliares a adesão por escrito a uma declaração que atestava a liberdade da Assembleia. A assinatura não foi unânime e os bispos da minoria não assinaram ou o fizeram com reservas. Um memorial dos bispos franceses começava com esta frase: “Nós não temos nenhuma liberdade”. Vários bispos, entre eles Strossmayer, Hefele, Schwarzenberg, Foster e o cardeal Von Hohenlohe, sentenciavam que por sua falta de liberdade não deveríamos falar de um Concílio autêntico e obrigatório. E observavam que nem mesmo a maioria dispunha de liberdade, dado que grande parte do episcopado dependia economicamente do Papa.
Conforme ia se aproximando o final do Concílio, muitos bispos da minoria deixavam de participar da Assembleia e outros se ausentavam definitivamente. Foram vãs e contraproducentes as ameaças diplomáticas dos governos francês e prussiano. Serviram para que o Papa se tornasse ainda mais obstinado.
Mt 16,18s (“Tu és a pedra...”), Lc 22,32 (“Roguei por ti...”) e Jo 21,15ss (“Apascenta as minhas ovelhas”), são as citações bíblicas que eram trazidas para a discussão dentro do Concílio. Os antiinfalibilistas negavam seu valor probatório. Particularmente, eles negavam que tais textos tivessem sido interpretados pela Tradição milenar no sentido do presente dogma. Dentre os antigos Padres, discutia-se sobre os testemunhos de Irineu de Lyon, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona. A discussão se ampliava aos diversos concílios e papas anteriores. Mas não nos enganemos. O núcleo duro da discrepância estava no passional, na conveniência, na oportunidade. Os ânimos estavam esquentados a favor ou contra a autoridade papal em si. Os fundamentos doutrinais eram algo acessório e pretestativo.
A votação solene ocorreu no dia 18 de julho de 1870. Os votos a favor somaram 535. Mas em 13 de julho, menos da metade dos 1.084 eleitores com direito a voto tinham votado placet. E menos dos dois terços dos 700 que participaram no início do Concílio. Ao final, 88 bispos votaram contra e 62 deram um voto condicionado. Não obteve sucesso a esperança de que o Papa transigisse em incluir na definição o assentimento da Igreja. Às vésperas da votação solene, muitos bispos se ausentaram manifestando seu protesto. Outros já tinham abandonado o concílio. Alguns que votaram non placet se submeteram uma vez ditado o dogma.
As consequências da definição foram diversas. A minoria rompeu sua unidade. Vários bispos se submeteram finalmente ao Papa. Os bispos da Áustria-Hungria se enfureceram. Alguns dos que se submeteram consideraram a definição como um “acidente”. Sobretudo, temiam e queriam evitar um cisma. A guerra franco-alemã contribuiu para desviar a atenção dos eclesiásticos rebeldes. Consequência intraeclesial do Concílio é o cisma dos “veterocatólicos”. Trata-se de um reduzido número de bispos e intelectuais da Áustria, Hungria, Suíça e Alemanha que reconhecem a primazia papal, mas não sua autoridade e infalibilidade assim como definida no Vaticano I. Atualmente, reúne quase três milhões de fiéis.
No campo político-diplomático, devemos destacar vários desastres. As potências europeias temiam que a nova doutrina aumentasse a intromissão da Igreja na esfera estatal. Os piamonteses tomaram Roma. A Áustria rompeu a concordata de 1855. Na Alemanha surgiu a Kulturkampf, que modificava as relações com Roma. A França se afastou da Igreja provocando a separação definitiva entre Igreja e Estado em 1906. Na Itália, os católicos foram excluídos da vida política. Com efeito, Pio IX, com seu decreto “non expedit”, proibiu sua participação ativa e passiva nas eleições. A população romana exteriorizou seu ódio contra Pio IX durante o seu enterro.
Epílogo
No dia 03 de setembro de 2000, Pio IX foi declarado beato por João Paulo II. Na mesma cerimônia, com uma decisão endogâmica, também João XXIII foi declarado beato. Sabe-se que foi um equilíbrio de forças dentro do Vaticano. Na corrida pelo pódio dos altares, Roncalli tomou a dianteira, canonizado no dia 27 de abril de 2014. Não são numerosos, mas aguerridos, aqueles que, desde 1906, vêm empurrando Mastai-Ferretti para a “Glória do Bernini”.
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Como o Papa tornou-se infalível. Artigo de Celso Alcaina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU