14 Outubro 2015
"O direito à moradia, por sua condição de garantia da própria vida das pessoas, poderia servir de exemplo para o estabelecimento de graus de prioridade devida a esses direitos, e de sua preferência, mesmo quando entrassem em conflito com outros, como tão frequentemente ocorre quando a posse multitudinária da moradia está sendo exercida sobre latifúndio urbano que descumpre sua função social e ela é expulsa de lá, por um mandado liminar de qualquer ação possessória", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico) realizou, entre 4 e 7 deste outubro, o seu VIII Congresso Brasileiro, na faculdade de direito da Universidade Federal de Fortaleza. Juristas do Brasil e do exterior, professoras/es e estudantes de direito, advogadas/os, lideranças de ONGs defensoras de direitos humanos, lá se reuniram, em mesas de debate inspiradas na proposta “Direito Urbanístico e Conflitos Urbanos. A efetividade da ordem jurídico-urbanística na promoção do direito à cidade”.
Os principais desafios de hoje a serem enfrentados pelo direito à cidade como o direito à moradia digna, ao emprego, à mobilidade urbana, ao lazer, num ambiente saudável, de convivência fraterna, garante do acesso de todas/os aos meios de vida digna, ao exercício pleno da cidadania, ao bem-estar enfim, como previsto no artigo 182 da Constituição Federal, foram estudados à luz de uma realidade urbana brasileira ainda muito distante de tudo isso, marcada por graves conflitos fundiários.
O direito à cidade foi defendido, assim, numa perspectiva agudamente crítica. Tudo quanto a eficácia desse direito depende do respeito devido às responsabilidades públicas e privadas previstas no ordenamento jurídico do país mereceu destaque, diagnóstico de causas do seu histórico desrespeito, propostas do que pode ser feito no futuro. Lançado, durante o Congresso, o primeiro número da Revista brasileira de direito Urbanístico (Editora Forum), o seu segundo número já contará com várias contribuições doutrinárias das/os presentes nesse evento. .
Os instrumentos político-jurídicos de intervenção no meio urbano foram avaliados como um meio de cobrança dos encargos próprios do direito à cidade, com especial atenção aos Planos Diretores, às Zonas especiais de interesse social e à regularização fundiária. Nada disso, porém, desligado da indispensável participação do povo, em cada tempo e lugar onde ele, mesmo potencialmente, possa ser afetado, como determina o artigo 2º, inciso XIII do Estatuto da Cidade.
O modo como essas responsabilidades podem ser cobradas para a implementação de políticas públicas urbanas destinadas a garantir efetividade aos direitos humanos fundamentais, especialmente os sociais, indicados no artigo 6º da nossa Constituição, receberam atenção redobrada. Transporte (recentemente inserido nesse artigo como direito humano fundamental social), educação, saúde, segurança, entre outros direitos, foram estudados não como promessas de garantia, mas sim como eles atualmente não são garantidos, e como essa injustiça pode e deve ser enfrentada e vencida.
É bem conhecida a pouca eficiência de enfrentamento desses desafios de forma fragmentada, com a burocracia jogando cada problema para um documento, uma secretaria, uma gaveta, para um/a funcinonária/o ou juiz/a, talvez, sem nenhuma sensibilidade social. Prevenidas/os disso, as/os participantes do VIII Congresso receberam uma sugestão de trabalho futuro, essencialmente ligada a duas características dos direitos humanos fundamentais, muito ameaçadas no meio urbano.
Como expressão da própria dignidade humana, esses direitos são reconhecidamente indivisíveis e interdependentes. Assim, o direito à cidade poderia ganhar uma eficácia bem maior se a sua proteção e defesa fossem, igualmente, feitas de forma indivisível e interdependente, tanto em seu planejamento, execução e avaliação, assim estendidas a todas/os. Socializado, o direito à cidade há de resultar de concreta e forte mobilização pública e privada com poder para inseri-lo no que o Papa Francisco chamou, muito oportuna e adequadamente, de ecologia integral, na sua encíclica Laudato Si.
O direito à moradia, por sua condição de garantia da própria vida das pessoas, poderia servir de exemplo para o estabelecimento de graus de prioridade devida a esses direitos, e de sua preferência, mesmo quando entrassem em conflito com outros, como tão frequentemente ocorre quando a posse multitudinária da moradia está sendo exercida sobre latifúndio urbano que descumpre sua função social e ela é expulsa de lá, por um mandado liminar de qualquer ação possessória.
O VIII Congresso teve a oportunidade de ouvir, então, mais de uma lição do Papa sobre a terra, a “casa comum”, o meio-ambiente, num contexto extraordinariamente hábil e apto para ser aproveitado em qualquer política pública ou privada relativa ao direito à cidade:
“É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza.” (nº 139).
O quanto os direitos humanos fundamentais sociais se empoderam, se forem impulsionados por essa ecologia integral, assumida pela própria sociedade, no próprio meio urbano, diz o Papa:
“...enquanto a ordem mundial se revela impotente para assumir responsabilidades, a instância local pode fazer a diferença. Com efeito, aqui é possível gerar uma maior responsabilidade, um forte sentido de comunidade, uma especial capacidade de solicitude e uma criatividade mais generosa, uma amor apaixonado pela própria terra, tal como se pensa naquilo que se deixa para os filhos e netos. Estes valores têm um enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organismos não governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político - nacional, regional e municipal - também não é possível combater os danos ambientais.” (nº 179).
Por isso, a legitimidade das reivindicações, campanhas e mobilizações, dos sindicatos, das ONGs, dos movimentos populares, das associações de moradoras/es, e outras organizações defensoras do direito à cidade e dos direitos humanos, recebeu dessa verdadeira bênção um reconhecimento indiscutível.
O IBDU, certamente, sai desse VIII Congresso apoiado e fortalecido por ela.
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O direito à cidade na perspectiva da ecologia política integral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU