04 Setembro 2015
"O Brasil mostra sua cara, ou pelo menos revela uma de suas faces, nas formas de relacionamento com os povos indígenas", alerta José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da UNI-Rio, orientador de pesquisas da UERJ e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), em artigo publicado por Correio do Brasil, 01-09-2015.
Eis o artigo.
“Nesta hora que estamos conversando aqui alguém deve estar matando um índio, só que nós só vamos saber muito mais tarde, quando o índio já está morto. É a cobiça da terra, a cobiça do subsolo e a cobiça das riquezas naturais” (Noel Nutels, CPI do Índio, 20/11/1968).
A universidade começa a pesquisar o Relatório Figueiredo, um conjunto documental de 30 volumes com mais de 7 mil páginas que ficou esquecido durante quarenta e cinco anos e que trata dos crimes cometidos contra os índios. Na quinta-feira (27), uma dissertação de mestrado foi defendida na Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) por Elena Guimarães [1]. Antes, na terça (25), foi o exame de qualificação de André Luís Sant’Anna [2] no Mestrado em Relações Étnicorraciais do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET-RJ).
As duas pesquisas centram o foco no Relatório produzido entre novembro de 1967 e março de 1968 pela Comissão de Investigação do Ministério do Interior presidida por Jader de Figueiredo Correia, mas com perspectivas diferentes. O trabalho ainda em andamento do André, na área de psicologia social, busca identificar as práticas disciplinares que atingem o corpo do índio para subjugá-lo. Enquanto o de Elena, que trabalha no arquivo do Museu do Índio, trata o documento como lugar de memória e reconstitui sua trajetória, como foi produzido, silenciado e recuperado.
P de Perseguição
O ponto de partida do Relatório Figueiredo foram os crimes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) registrados em 1963 pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com ampla repercussão fora do Brasil, incluindo o assassinato, em 1960, de 3.500 índios Cinta Larga, envenenados com arsênico.A pressão internacional levou a Casa Civil a solicitar providências ao ministro do Interior, Gen. Albuquerque Lima, que criou, em julho de 1967, a Comissão de Investigação (CI), presidida por Jáder de Figueiredo, Procurador do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS).
Depois de percorrer diferentes regiões do país e de ouvir centenas de funcionários e índios, a Comissão registrou fatos estarrecedores: crimes sistemáticos contra a pessoa e o patrimônio indígena, massacres e extermínios, esbulho e venda ilegal das terras indígenas, desvios de verbas, fraudes, roubos, suborno, falsificação de documentos. O próprio chefe do SPI, o major da Aeronáutica, Luiz Vinhas Neves, responsável pela chacina dos Cinta-Larga, foi acusado de ter faturado quantia exorbitante na época de mais de 1 bilhão de cruzeiros velhos.
O SPI, no lugar de Proteção, passou a ser Serviço de Perseguição aos Índios. Castigos físicos, torturas no “tronco” que provocaram aleijamento, mutilações e mortes, cárcere privado, prisões independente da idade ou do sexo, maus tratos, chicotadas, trabalho escravo, espancamento, assassinatos com requintes de perversidade, viraram rotina, assim como índios pendurados pelos polegares, outros mantidos em cisternas com excrementos humanos, estupros de índias usadas em serviços domésticos.
Trecho do documento selecionado por Elena Guimarães sobre o Massacre do Paralelo 11 traz o depoimento do motorista do SPI, Ramis Bucair, que entregou à Comissão fita magnética na qual estava gravada a confissão na presença de várias testemunhas feita por um dos assassinos, Ataíde Pereira dos Santos:
“…Que um bando de celerados, chefiados por Chico Luís, a soldo da firma de seringalista Arruda Junqueira & Cia. metralhou um grupo de índios Cinta Larga; que após a matança encontraram uma índia remanescente conduzindo seu filhinho de 6 anos, que mataram a criancinha com um tiro na cabeça e penduraram a índia pelos pés, com as pernas abertas e partiram-na a golpes de facão, abrindo-a a partir do púbis em direção à cabeça,(…) que o crime continua impune e os assassinos passeiam livremente pelas ruas de Cuiabá”.
O escândalo do século
Dezenas de depoimentos como esse foram registrados, incluindo o envio de parturientes para a roça um dia após o parto, proibidas de levarem consigo o recém-nascido, “tratamento muito mais brutal que o dispensado aos animais, cujas fêmeas sempre conduzem as crias nos primeiros tempos“, escreveu o procurador Jáder Figueiredo, um pacato e honrado burocrata que não conseguiu conter sua indignação:
“O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. É espantoso que exista na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade”.
A bestialidade alcançou Jader, que sofreu ameaças de morte, foi transferido de Brasília para o Ceará e morreu aos 53 anos num acidente de ônibus nunca investigado. Ele documentou o que foi considerado “o escândalo do século”. Mas o noticiário nacional e internacional se concentrou nos aspectos sensacionalistas, como se fosse uma aberração, quando na realidade os criminosos, identificados pelos respectivos nomes, não eram marginais ou psicopatas, mas “gente normal”, que constituiu família e frequentava a igreja, com filhos na escola e conta no banco, gente que rezava, comia, brincava, ria e chorava.
Os mandantes eram grileiros, latifundiários, seringalistas, comerciantes em conluio com poderes locais, juízes, governadores, desembargadores, políticos, deputados, prefeitos, delegado de polícia, vereadores e até ministros, quase todos aparecem no relatório com nome e sobrenome, numa rede destinada a expulsar os índios de suas terras. Enfim, a nata da sociedade brasileira.
A recuperação das terras
Depois do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, com o recrudescimento da repressão e da censura, o Relatório permaneceu “esquecido” e foi dado como “perdido”. Transferido da FUNAI para o Museu do Índio em 2008 com outra notação, junto com outros papéis, ali estava arquivado com a identificação técnica Processo 4.483/68, já que Relatório Figueiredo era a denominação dada pela mídia. Assim, em 2013, Marcelo Zelic da Comissão Nacional da Verdade conseguiu encontrá-lo rapidamente. Segundo a BBC, esse foi um dos achados mais importantes da CNV.
Mas o termo “descoberta” usado pelos jornais é questionado na dissertação, que reconstitui os caminhos do documento, ponderando que não estivesse organizado no arquivo, dificilmente seria encontrado:
“Este é um evento em que um documento é não mais um papel, um registro documental, mas um local de memórias em disputa, onde este se consolida como monumento, como documento-monumento“.
A dissertação discute a concepção de documento-monumento, chamando a atenção para o perigo de desviar o historiador do seu dever principal: a crítica ao documento qualquer que seja ele, considerando que se trata de um produto da sociedade que o fabricou no contexto das relações de forças que detinham o poder.
O Fundo SPI, ao qual pertence o Relatório Figueiredo, inserido no projeto de digitalização, foi escolhido para integrar o Programa Memória do Mundo da UNESCO. Agora, ele está integralmente digitalizado em alta resolução e pode ser acessado facilmente no site do Museu do Índio. Segundo o líder Kadiweu, Francisco Mantchua, citado na dissertação, “o Relatório Figueiredo pode ser um trunfo usado como prova de que 140 mil hectares de nossas terras foram invadidos por fazendeiros. Com certeza, esses documentos vão nos ajudar“.
A Comissão Nacional da Verdade, de posse do Relatório Figueiredo, reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro na ocupação ilegal das terras indígenas e na violação dos direitos humanos e recomendou: um pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas, a reparação aos mais de 8.000 índios atingidos por atos de exceção, a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, a promoção de campanhas de informação à população, a reunião e sistematização no Arquivo Nacional da documentação pertinente, a regularização e desintrusão das terras indígenas.
Agora, além da possibilidade de usá-lo para reparar injustiça histórica, seu estudo pela universidade nos ajuda a compreender melhor o Brasil, já que as sociedades indígenas constituem sempre um indicador extremamente sensível da natureza da sociedade que com elas interage. O Brasil mostra sua cara, ou pelo menos revela uma de suas faces, nas formas de relacionamento com os povos indígenas.
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Notas:
[1] Elena Guimarães. O Relatório Figueiredo no contexto da Política Indigenista no Brasil: entre tempos, memórias e narrativas. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Banca: José R. Bessa Freire (orientador), João Paulo M. Castro (Unirio) e Joana D´Arc F. Ferraz (UFF).
[2] André Luís de Sant´Anna. Práticas disciplinares implicadas no Relatório Figueiredo: Perspectivas psicológicas no controle étnico-social de índios durante a ditadura militar no Brasil. Texto de qualificação. Banca: Alexandre de Carvalho Castro (orientador), Álvaro de Oliveira Senra(Cefet-RJ) e José R.B.Freire (Unirio).
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