31 Agosto 2015
Os rapazes, negros e pobres, viajavam em vários ônibus de linha regular até a privilegiada zona sul carioca. O destino, no domingo passado, eram as praias mais famosas do mundo, mas eles acabaram no fundo de um furgão policial, sem ter cometido nenhum crime. A ação pretendia conter uma nova onda de arrastões, um fenômeno complexo que se repete periodicamente nas praias do Rio desde a década de 90, mas a estratégia revelou outro frequente escândalo: o racismo institucional das polícias brasileiras.
A reportagem é de María Martín, publicada no jornal El País, 27-08-2015.
Uma semana antes, já estavam no Arpoador, área cobiçada de Ipanema e ponto final dos ônibus que vêm da periferia, os elementos desta espécie de violento jogo de gato e rato entre assaltantes e policiais que não raro termina com cadeiras voando pelos ares em meio a centenas de banhistas aterrorizados. O roubo da carteira de um gringo no Posto 8 desencadeou caos na areia. A polícia chegou até a orla de cassetete em mãos e espancou os jovens que encontrou pelo caminho, nem sempre os culpados. Muitos deles, da Favela da Penha, bebiam e conversavam. Momentos depois, uma ferida ardia nas costelas de Marcos, enquanto a amiga Ana reclamava que ele apenas estava sentado, sem fazer nada. O roubo e a agressão —aparentemente sem relação com o crime já que Marcos não foi preso—, foram o broche final de um dia de praia regular, com cenas que a polícia carioca se diz, mais do que nunca, determinada a evitar.
O problema é que, para o juiz titular da 1ª Vara da Infância, Pedro Henrique Alves, e a Defensoria Pública do Rio, a solução não pode ser evitar que grupos da periferia cheguem às praias, como no fim de semana. Ambos consideraram “ilegal” a detenção no ônibus. “A polícia só pode prender um adolescente se o encontra cometendo um delito ou se tem uma ordem judicial fundamentada”, explica a defensora pública Eufrásia Souza das Virgens, que abriu um processo contra o Estado por danos morais e constrangimento dos jovens.
Enquanto uma parte da sociedade levava as mãos à cabeça chocada com a medida extrema, o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), defendia os agentes: “A inteligência da polícia mapeou esse movimento de menores desde seu embarque nos ônibus. Quantos assaltos praticaram esses menores? Não estou falando que são todos os que estavam ali [nos ônibus], mas tem muitos deles que já tinham sido detidos mais de cinco, oito, dez ou 15 vezes”.
O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, defensor de um discurso bastante progressista em um país que ainda mantém uma polícia militarizada, quis dar ao episódio uma dimensão social. “A polícia fez um trabalho de prevenção, o que falta dizer às pessoas é a total situação de vulnerabilidade que se encontravam esses jovens. Não se fala em racismo, não se quer dizer que esses jovens iam praticar crimes. A questão é a seguinte: a liberdade de ir e vir também exige deveres. Se você quer ir, estava indo sem pagar passagem. Você sai da sua casa que fica há quilômetros sem comer, sem dinheiro e vai voltar pra casa como?”, questionou Beltrame. “O que está em jogo é a vulnerabilidade dessas pessoas", completou.
Especialistas em segurança e a própria Defensoria Pública se perguntam, então, por que o controle não está em mãos de assistentes sociais, em vez de nas mãos de homens armados. “É uma ação absurda, desastrada e escandalosa, uma expressão do racismo no Brasil, muito comum em sua polícia, e que conta com a autorização tácita da sociedade”, critica o antropólogo Luiz Eduardo Soares, coordenador de Segurança e Justiça no Rio em 1999 e secretário nacional de Segurança Pública em 2003.
Soares lembra como os cariocas viveram a democratização de suas praias no começo dos anos 80, um lugar até então reservado principalmente à elite branca e moradores das favelas da zona sul. “Foi o governador Leonel Brizola que promoveu o transporte e facilitou o acesso dos jovens dos subúrbios mais distantes até as praias. Essa estratégia começou a democratizar a areia e provocou o desprezo da classe média mais racista, que puniu politicamente o governador. Hoje em dia a reação não pode ser a mesma que nos anos 80. Existem leis contra o racismo. Por isso, é surpreendente ver que essa mesma atitude continua presente”, segue ele. “Os jovens negros são sempre tratados como suspeitos, o que nos ajuda a entender, e isso é muito mais grave do que qualquer roubo na praia, as mais de 10.600 mortes provocadas pela polícia, na maioria de jovens negros, pobres em territórios vulneráveis.”
Antes de Rio 2016
Os chamados arrastões, como no Brasil foi batizado esse tipo de furto em gangues em lugares públicos muito concorridos, são já habituais nas areias do Rio em dias de calor e ameaçam a imagem paradisíaca da cidade às portas dos Jogos Olímpicos de 2016.
Os ladrões, alguns mais crianças do que adolescentes, dão o golpe de várias maneiras. Uns aproveitam o enorme grupo de amigos e conhecidos com os quais vão à praia para se proteger, se separam deles e percorrem a areia em busca de banhistas desprevenidos. Ao voltar, trocam entre si os calções de banho e dão a seus cúmplices o botim. Outros, e esta é a técnica mais chamativa e com a qual se espalha o pânico na areia, fingem brigas multitudinárias e aproveitam o tumulto para arrasar com tudo o que puderem.
Após o roubo, é raro que as vítimas apresentem boletim de ocorrência – no Brasil só 20% denuncia furtos, segundo Soares – e a praia continua igual de cheia. "Sabemos por outras pesquisas que a frequência à praia não diminuiu", diz Soares, "o que afasta as pessoas não é o furto, o que aterroriza é a violência".
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A política que barra negros e pobres e ameaça a democracia da areia no Rio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU