Por: Cesar Sanson | 28 Agosto 2015
A crise brasileira tem similaridade com a da Grécia, pela ideia de que o ajuste vai fazer com que seja restaurada a confiança dos investidores e a irrealidade da meta. Mas a nossa Alemanha está aqui dentro, representada pelo mercado financeiro, diz Luiz Gonzaga Belluzzo em entrevista à Marcia Pinheiro da revista Brasileiros, 27-08-2015.
Professor da Unicamp, sócio da FACAMP, da consultoria Una e da revista Carta Capital, Belluzzo diz que a presidenta Dilma Rousseff deveria ter negociado o ajuste fiscal – de resto, necessário – com os sindicatos e os movimentos sociais, que a reelegeram.
Infelizmente, não é o único problema. Para Belluzzo, a economia nacional tem vários “cadáveres”, que apareceram com mais contundência neste ano. A valorização do câmbio nos últimos 20 anos é um deles, o que provocou um processo de desindustrialização. Um segundo é o injusto sistema tributário. Nada menos do que 58% da receita dos impostos é paga pelas camadas de renda de até dois salários mínimos.
O economista defende uma total reestruturação nas empresas envolvidas na operação Lava Jato. A exemplo do que fizeram os Estados Unidos na crise das hipotecas, o governo deveria assumir as companhias, saneá-las e, posteriormente, vendê-las em leilões ou em operações de abertura de capital.
Eis a entrevista.
Por que a recessão no Brasil chegou com uma velocidade tão acentuada?
Temos algumas vulnerabilidades que se manifestaram agora. É preciso traçar a trajetória real do que aconteceu. Vamos voltar à reação da economia brasileira à crise de 2008. Foi muito rápida. O Brasil vinha em um ritmo de expansão, impulsionado pelo ciclo de commodities e pelo crescimento da economia mundial. Nossa economia cresceu com base no consumo. Naquele momento, entre 2004 e 2008, fomos muito bem, também amparados pelas políticas sociais e pelos reajustes reais do salário mínimo. Isso elevou o poder de compra de grande parte da população. E houve uma queda muito pronunciada dos preços dos bens duráveis, por conta da agressividade chinesa nas exportações, principalmente os eletroeletrônicos. Isso fez com que a renda real, sobretudo das pessoas que ascenderam economicamente, tivesse o auxílio dos preços relativos. Eu sempre dou o exemplo da televisão de tela plana.
Na Copa do Mundo de 2006, comprei uma de 42 polegadas por R$ 12 mil; hoje, custa R$ 2 mil. Além disso, veio a expansão do crédito consignado e a ampliação do crédito imobiliário, com o programa Minha Casa, Minha Vida. O cenário todo colaborou para o aumento do bem-estar das famílias. Conseguimos recuperar rapidamente o crédito em 2009. A crise era de contágio, uma vez que no Brasil não havia calote de hipoteca, como nos Estados Unidos. Mas, em 2011, o ciclo de consumo foi perdendo força.
Mas do ponto de vista fiscal a situação não foi se deteriorando?
A relação entre o crescimento do PIB e da renda é de 2,5 por um. Quando a economia desacelera, isso se reverte. Se olharmos os primeiros anos do governo Dilma, é muito claro que a receita e o superávit primário continuaram a crescer, mas em menor ritmo. Em 2015, o superávit já é negativo na ponta. Portanto, a desaceleração da economia abriu espaço para o desequilíbrio fiscal. Outro dia, li uma análise de uns economistas mais ortodoxos, que dizia que as políticas sociais não cabem no PIB. Até brinquei: vai ver que eles querem jogar os velhos do penhasco.
Quais são as maiores deficiências do Brasil?
Há vários cadáveres enterrados. O primeiro deles, que os conservadores não gostam de discutir, é a valorização do câmbio nos últimos 20 anos. Agora, por exemplo, o câmbio está desvalorizando. E muitos dizem que isso prejudica a inflação. O efeito é maior, dado o percentual de componentes importados dos produtos feitos no País, que é de 27%. O problema não começa quando se deixa o câmbio desvalorizar, mas quando permite que ele se valorize, porque há uma mudança total nas cadeias produtivas. O Brasil passou 30 anos se afastando das cadeias produtivas globais. Os conservadores dizem – e isso é binário: precisa abrir a economia. Foi o que fizeram no governo Fernando Henrique.
Quando Lula foi eleito, a taxa de câmbio se desvalorizou e o dólar foi a R$ 4, por medo do PT. Na média, ficou em R$ 3,58. Essa desvalorização foi acompanhada do ciclo de commodities. No fim de 2003 e início de 2004, a economia começou a crescer. Nós fomos muito bem em exportações de manufaturados. A Argentina cresceu 8% depois da crise da dívida de 2001/2002, o que elevou a demanda por produtos industrializados brasileiros. Havia superávit comercial de manufaturados e commodities. Em 2006/2007, a economia ainda estava bombando, mas esse efeito sobre a indústria foi se tornando menor, dada a política adotada pelo Antonio Palocci e seus agregados.
No ano passado, o déficit comercial da indústria foi de US$ 117 bilhões. O agronegócio segurou a balança. Mas agora, o superávit desse setor está menor. Aumentamos as quantidades exportadas, mas os preços caíram. O que estava programado? O Brasil iniciar investimentos em infraestrutura. O Brasil é um importador líquido. Tínhamos uma participação importante no comércio internacional, durante o governo dos militares, com programas como o BEFIEX (Concessão de Benefícios Fiscais e Programas Especiais de Exportação). Isso era coisa do Delfim Netto e do Roberto Campos. O Delfim era desenvolvimentista e o Campos era sem saber. Ele se dizia liberal, mas não era. A partir dos anos 1990, a curva da competitividade da indústria brasileira começa a declinar de uma maneira impressionante. No campeonato da indústria nacional, o Brasil caiu para a terceira divisão.
Quais são os outros cadáveres?
O segundo cadáver é o sistema fiscal e tributário brasileiro, que é dos mais regressivos do mundo. As alíquotas, que eram elevadíssimas após a Segunda Guerra, começaram a retroceder. Nos Estados Unidos, começaram a taxar menos os riscos, porque supostamente são eles que investem, o que foi um desastre. E as pessoas no Brasil continuam a repetir essa besteira. No nosso sistema, 58% da receita fiscal é extraída das camadas de renda de até dois salários mínimos. O curioso é que dividendo não paga imposto; nem na fonte, nem na declaração. É a mesma lógica americana. O dividendo pertence ao acionista e supõe-se que, se ele receber mais, vai investir. É uma tolice, porque precisamos proteger a empresa, e não os acionistas.
Portanto, nosso sistema fiscal é iníquo, além de ser muito sensível às flutuações da renda. Quando se fala em ajuste fiscal, eu penso: por que não temos um sistema tributário que taxe os mais ricos? Por que não taxar a renda, os ganhos de capital? Bill Clinton quando fez superávit, foi possível por cobrar imposto dos lucros em bolsa.
No caso brasileiro, o sistema é todo marcado pela desigualdade. Qual é a participação dos juros da dívida pública no PIB? É 8% e vai crescer. De 2007 a 2011, o País pagou um PIB de juros. É uma transferência de renda perversa. Isso tem muito a ver com o conservadorismo de uma fração da sociedade.
E a Operação Lava Jato?
Foi, como dizia o general Ernesto Geisel, a pá de cal. A operação produziu uma paralisia na economia. O programa de concessões de investimento público ficou danificado gravemente e a fuzilaria moralista acabou apavorando o governo, que ficou imobilizado. Ninguém quer ver livres as ações inidôneas das empresas. Mas é preciso separar as coisas. Parece que agora o juiz Sérgio Moro acertou, pois disse ser preciso fazer acordos de leniência. É necessário fazer uma reestruturação das empresas envolvidas, e fazer com que paguem multas pesadas, entregando as ações que têm para o governo, que eventualmente poderá revendê-las em leilões ou aberturas de capital. Nos Estados Unidos, isso foi feito com os bancos, como o Citibank, a General Motors e a Ford.
A presidenta Dilma Rousseff agiu acertadamente ao baixar a meta fiscal?
Eu tenho dois cachorrinhos: o Karl Marx e o John Maynard Keynes. Eles me falavam: esse ajuste fiscal não vai dar certo. É óbvio. A economia em 2014 já começou a desacelerar fortemente. Em cima disso, a equipe econômica fez uma série de cortes na boca do caixa. Simultaneamente, para colocar a inflação na meta, o Banco Central subiu os juros de maneira agressiva. A dívida pública cresceu 3,5% somente em junho. Eles dizem que a dívida em 2018 vai chegar a 66% do PIB; é uma conta bastante frágil. Porque o mercado já aponta que ela vai além de 70% ainda neste ano.
De alguma forma, a crise brasileira tem similaridade com o que acontece na Grécia?
Tem sim, pela ideia de que o ajuste vai fazer com que seja restaurada a confiança dos investidores e a irrealidade da meta. É uma falsificação da ideia de Keynes de confiança. O economista dizia que, para progredir, os empresários precisariam melhorar as condições de seus balanços. Mas o que vai acontecer é a piora dos balanços. Para os consumidores, a mensagem é: vocês correm o risco de ficar desempregados. A população, então, corta gastos. Como os empresários estão vendo isso, os setores de bens de consumo não investem. Os indivíduos olham uns aos outros e chegam à conclusão de que não vai dar certo.
Qual seria a alternativa a esse modelo para o Brasil?
A situação fiscal não era, de fato, das melhores. As pessoas não gostam de falar de capitalismo; elas fogem do conceito. Dilma foi eleita com o compromisso de manter as conquistas sociais. A crise fiscal hoje tem um fundamento político. A independência do econômico do político é ingênua e de má-fé. Mas o atual ajuste atinge setores e pessoas diferentemente. Se provoca o desemprego, quem paga é o sujeito que chega em casa e diz: perdi meu trabalho. Qual foi o erro fundamental? Não foi a necessidade de se fazer um rearranjo das contas públicas. Foi feito de cima para baixo, na base tecnocrática. O governo deveria ter consultado as bases sociais que votaram na presidenta. Ela foi eleita com 54% dos votos. E quem a escolheu? Foram os eleitores do Lula, das regiões mais pobres do Brasil, cuja vida melhorou muito; cidadãos que subiram na escala social com a valorização do salário mínimo e o Bolsa Família. Os sindicatos e os movimentos sociais deveriam ter sido consultados. A Dilma vai me perdoar, e eu gosto muito dela, mas tem uma visão tecnocrática da situação. Isso não deu certo em nenhum lugar do mundo. Nisso somos muito parecidos com a Grécia. Só que a nossa Alemanha está aqui dentro. Não está fora. A nossa Troika está aqui: é representada pelo mercado financeiro e pela visão truncada e míope de seus economistas.
Além de um ajuste mais criterioso, quais seriam medidas que conduziriam o País ao crescimento?
Tenho grande resistência em aceitar a dicotomia pessimismo/otimismo. Nós devemos ter esperança. Ou seja, todos vamos trabalhar para que as coisas deem certo. Temos de deixar o câmbio desvalorizar mesmo, para proteger a indústria brasileira e recuperar a capacidade de coordenação do Estado brasileiro dos investimentos de infraestrutura.
O senhor tem conversado com a presidenta Dilma?
Não. A última vez que conversei com ela foi em um almoço, junto com João Manuel Cardoso de Mello, em Campinas. Somos amigos dela. Mas isso não quer dizer que vamos concordar com o que ela está fazendo.
E com o Lula?
Com o Lula converso sempre. Ele sempre tem uma atitude muito positiva e criadora. Não se deixa abater, a despeito do que têm feito com ele. Isso de querer processá-lo por ter jantado com empresários, francamente! Eu gostei muito de uma entrevista com Ciro Gomes. Ele não tem medo e afirmou: “Ninguém vai dar golpe aqui, não! Nós vamos nos mobilizar”.
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‘‘A nossa troika está aqui. A nossa Alemanha está aqui dentro. Não está fora" Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU