Por: André | 24 Agosto 2015
Tendo recebido uma carta com denúncias sobre suposta repressão a ONGs que atuam na Bolívia, o vice-presidente Álvaro García Linera respondeu com uma longa carta, em que esclarece o tipo de ação desse tipo de organização na Bolívia e a realidade sobre a atuação do governo desse país.
A carta de Álvaro García Linera é publicada por Rebelión, 19-08-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o texto.
Estimados companheiros e companheiras:
Agradeço a generosidade que tiveram para dedicar parte do seu tempo à elaboração de uma carta dirigida à minha pessoa, com a finalidade de me fazer um “convite à reflexão” sobre as minhas declarações sobre o papel das organizações não governamentais na Bolívia e seu financiamento.
Entendo sua preocupação sobre a liberdade de expressão, mas considero que o fazem em vão. Vale, no entanto, a oportunidade, porque sempre é grato saber que os amigos se lembram da gente. E digo que sua preocupação é vã, porque nas minhas declarações sobre as quatro ONGs (Milênio, CEDIB, Fundação Terra e CEDLA), nem agora nem em nenhuma oportunidade anterior, propus seu fechamento, expulsão ou restrição alguma de sua atividade. Vocês sabem muito bem que na Bolívia a liberdade de expressão e de associação não constituem apenas direitos civis, mas representam componentes indissolúveis da vida, história e desenvolvimento das sociedades democráticas, das organizações e dos movimentos sociais. A própria democracia só se compreende e irradia sobre a base inegociável da liberdade de associação e pensamento.
Hoje, a democracia na Bolívia está alcançando níveis de profundidade e irradiação extraordinária, precisamente no marco da administração do Estado por parte de organizações sociais indígenas, camponesas, operárias, de bairro e populares, cuja vida se alimenta da liberdade de ideias e múltimas formas de organização. Viemos dessa raiz. E para quem em tempos neoliberais suportou a repressão e a prisão por pensar diferente, está mais do que claro que o horizonte socialista e plurinacional só pode ser construído com base na ampliação dos princípios democráticos da liberdade de pensamento e associação.
Neste contexto – e fazendo uso da liberdade de pensamento e expressão –, assinalei que quatro ONGs mentem e camuflam seu ativismo político reacionário sob o manto de atividade “não governamental”. Por acaso, não têm o direito de mentir? Evidentemente que sim, mas eu também tenho o direito de denunciar a mentira, de denotar as falsidades escritas em suas “supostas” pesquisas, que mais se assemelham a decálogos de fé política ou perfis primitivos de estudo. Na mesma medida em que os funcionários destas ONGs têm o direito constitucional de fazer para-política partidária a partir dessas organizações, eu tenho o direito de revelar que estão exercendo o papel de substitutas dos partidos políticos de direita, e que seus funcionários não fazem mais que recrutar adeptos mediante a roupagem de atividades hipócritas “sem fins lucrativos”, diante de seu reiterado fracasso em fazer política de maneira aberta.
Estas quatro ONGs bolivianas têm todo o direito de existir, funcionar, fazer suas pesquisas e inclusive de fazer política; no entanto, nós temos o direito e a necessidade – assim o exige o movimento popular que conduz o processo revolucionário na Bolívia – de criticar seu surpreendente enquadramento ideológico no discurso ambientalista feito e financiado a partir dos centros imperiais.
Todos estamos de acordo em que é necessário uma ordem sociopolítica que substitua a lógica predadora da natureza impulsionada pelo valor de troca. Mas aqui existem ao menos duas posições. A primeira, correspondente ao discurso imperial, propugna que a mais-valia ambiental que sustenta o desenvolvimento dos países do Norte seja paga pelos países do Sul, congelando assim a melhoria de suas condições de vida e petrificando as relações coloniais de pobreza e submissão construídas ao longo de séculos e ainda hoje vigentes. Esta posição está claramente expressada na proposta ambientalista da USAID sobre a Amazônia, e na sugestão do gabinete de Tony Blair para a implementação de uma administração transnacional nessa região.
Em oposição a esta posição, para as nações indígenas soberanas, uma nova sociedade ambiental só será possível rompendo a condição colonial de fragmentação e pobreza que prevalece entre os povos e nações do Sul. Trata-se de criar uma civilização ecológica mediante a combinação de saberes ancestrais e contemporâneos capazes de restituir um metabolismo procriativo entre natureza e natureza transformada em sociedade. No entanto, isto não se pode alcançar simplesmente imitando o que acontece no Norte (ilusão desenvolvimentista), nem muito menos congelando as condições de vida dos povos do Sul (colonialismo petrificado). Esta civilização surge apenas na medida em que somos capazes de proporcionar as condições materiais mínimas de existência, de satisfação das necessidades básicas, que permitam liberar as capacidades criativas e cognitivas dos povos para a criação dos fundamentos de uma sociedade ecológica, que só poderá ser de caráter comunitário e universal.
Nesse sentido, aos que, sim, preveni e adverti com a expulsão, são organismos internacionais, ONG e governos estrangeiros que financiam e se envolvem em atividades políticas, que vão contra os interesses do Estado Plurinacional da Bolívia e o processo revolucionário do povo que se vem desenvolvendo durante os últimos 10 anos. Trata-se de um princípio de soberania e dignidade elementar para qualquer Estado democrático e, minha pessoa, enquanto eventual servidor público, não apenas está no direito, mas na obrigação moral e intelectual de se opor a qualquer tipo de ingerência em atividades políticas internas.
O núcleo do neoliberalismo contemporâneo, que destruiu direitos, recursos e associatividade social no mundo inteiro, não é a substituição da soberania nacional por um tipo de mundialização desterritorializada do poder. Basta ver as muralhas de cimento e aço que os supostos Estados desenvolvidos levantam hoje diante do fluxo da força de trabalho, para compreender que a soberania nacional de todos os países tenta ser substituída pela soberania nacional de uns poucos, que pretendem decidir sobre o destino de outros.
O restabelecimento dos princípios da soberania nacional, isto é, a autodeterminação, é um dos pilares para o desmonte da ordem neoliberal na Bolívia. Referimo-nos à autodeterminação enquanto Estado para definir a gestão de seus recursos e seu modo de relacionamento com outros Estados, e também à autodeterminação social para definir seu horizonte como comunidade política na história.
Essa é a principal razão pela qual decidimos – como governo soberano – expulsar o FMI dos escritórios privados que tinha no Banco Central da Bolívia; a CIA, que tinha escritórios no Palácio do Governo; o corpo militar norte-americano, que tinha sua base extraterritorial em um aeroporto na Amazônia boliviana; a USAID e o embaixador dos Estados Unidos, que conspiravam junto a grupos separatistas de extrema direita, apoiando a divisão do país em micro-republiquetas sob proteção estrangeira.
A autodeterminação nacional é uma dimensão da autodeterminação social, e nenhuma revolução poderá avançar no aprofundamento dos direitos democráticos da sociedade sem a consolidação das condições da soberania estatal. É impossível definir o horizonte interior de uma sociedade (o pós-neoliberalismo, o Viver Bem, o socialismo, etc.), sem definir seu horizonte externo, sem ser soberano. Por isso, não podemos permitir que nenhum governo externo, empresa ou organização para-governamental estrangeira defina as políticas públicas do Estado Plurinacional da Bolívia. Do contrário, estaríamos nos submetendo a um neocolonialismo.
Todo este marco me permite voltar aos meus comentários sobre as quatro ONGs acima citadas, acerca das quais sustentei que mentiam e defendiam os interesses da direita política internacional. A preocupação de vocês é compreensível, pois mentiram para vocês. Vocês se alarmaram porque lhes disseram que eu tinha proposto sua expulsão. Nada mais falso! A quem eu adverti com a expulsão do país, são organismos estrangeiros que se intrometem em atividades políticas que afetam a soberania do Estado Plurinacional da Bolívia.
Com isto fica plenamente demonstrado que essas ONGs mentem, e o fazem de tal maneira, que conseguem que pessoas bem intencionadas se somem ao discurso imperial orientado a infundir suspeitas sobre a vigência das liberdades democráticas e os direitos civis dos regimes revolucionários e progressistas da América Latina. Também mencionei que estas ONGs faziam política partidária de direita, apoiando o discurso ambiental imperial. Uma revisão superficial de seus argumentos, comparados com os expostos pela USAID sobre a Amazônia, comprova aquilo de imediato.
Portanto, vocês compreenderão que, assim como respeitamos a opinião política de todos os atores nacionais na Bolívia, na minha qualidade de cidadão – e mais ainda, como servidor público – não tenho por que me calar nem ocultar as mentiras destas ou de qualquer outra instituição que prejudique o processo revolucionário pertencente às organizações sociais do país. A defesa inegociável da revolução boliviana, interna e externamente, é para mim algo irrenunciável, assim como o próprio direito à liberdade de expressão e associação.
Lamento profundamente que tenham sido utilizados por estas quatro ONGs em sua tentativa de simular uma imagem autoritária de – vocês bem sabem – um dos países mais democráticos do mundo. Não obstante, se o que está por trás deste passo errado é sua boa vontade para discutir horizontes revolucionários ou progressistas para o nosso país e o mundo, sejam bem-vindos como sempre.
Uma afetuosa saudação,
Cidadão Álvaro García Linera
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Uma resposta a um “convite à reflexão”. Artigo de Álvaro García Linera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU