21 Julho 2015
Para a médica Maria José Araújo, o machismo e a desigualdade entre gêneros são alguns dos fatores que explicam o fato de mulheres serem 74% da população que consome remédios para transtornos psiquiátricos.
A cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, recebeu uma série de formações em gênero e saúde mental promovidas pelo projeto Girassóis. Os cursos, iniciados em março de 2014 e divididos em três datas, capacitaram profissionais da saúde, da rede de enfrentamento à violência contra mulheres e lideranças comunitárias. Uma das pessoas que tornou essa medida possível foi a médica baiana Maria José Araújo, que esteve na cidade para participar do Seminário “Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres”.
Maria José formou-se em Pediatria e fez mestrado em Saúde Mental Materna e Infantil na França, seguido de uma formação em Ginecologia de Atenção Primária na Suíça. Ela é ativista pelos direitos das mulheres e uma das fundadoras da Rede Feminista de Saúde, além de ter sido coordenadora da área técnica de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde no primeiro mandato do presidente Lula, e coordenadora, no Brasil, da instituição internacional “Médicos pelo direito a decidir”. Em 2005, Maria José foi uma das 52 brasileiras indicadas pelo projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. A iniciativa selecionou mil mulheres ao redor do mundo todo indicadas para o prêmio como forma de criticar o fato de apenas 11 mulheres o terem recebido durante seus 113 anos.
A entrevista é de Débora Fogliatto, publicada no sítio Sul21, 13-07-2015.
Nesta entrevista, ela analisa as questões que relacionam gênero e saúde mental, defendendo que as mulheres têm mais problemas psiquiátricos (elas são 74% da população que toma remédios para estas doenças) devido às desigualdades, violências e pressões sociais sofridas. As políticas públicas voltadas à saúde mental, porém, não fazem esse recorte, critica a médica. “Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, de tentar interferir na questão da violência, no autoconhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem”, aponta.
Essa violência que as mulheres sofrem na sociedade pode ser tanto física quanto psicológica. “É real a violência psicológica. Tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres às vezes nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional”, avalia a médica. Isso passa por questões de autoestima, determinada sempre pelo “olhar masculino”, segundo ela, que faz com que as mulheres tenham cada vez mais problemas de saúde.
Eis a entrevista.
Como começou o seu envolvimento com o Projeto Girassóis?
A gente [ela e o Coletivo Feminino Plural] faz parte da mesma rede, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, já trabalho com o coletivo há muitos anos. E com o começo desse projeto, elas precisavam de uma pessoa que tivesse uma visão de saúde mental distinta, que contemplasse as questões de direitos humanos, gênero e vulnerabilidade, com outro olhar sobre a saúde mental das mulheres. E eu venho trabalhando com isso há bastante tempo, por isso me convidaram para ser consultora do projeto e fiquei muito feliz.
Muitos profissionais da área parecem ainda não ter formação nesse sentido, nem a percepção da relação entre gênero e saúde mental. Como a senhora percebe essa questão?
É, na verdade as políticas públicas homogeneízam todo mundo. Fora as políticas de pré-natal, parto e aborto, as políticas públicas de saúde são políticas globais, que não contemplam essa questão. Não são elaboradas a partir de uma percepção de que as mulheres têm determinantes da saúde diferentes dos homens. Têm questões relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes, com outros olhares, outras abordagens, outras percepções. Quando sai uma política de saúde mental, ela sai para todo mundo. Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, tentar interferir na questão da violência, no autoconhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem. [Essas políticas] homogeneízam o que é desigual, e muitas vezes são inadequadas a visão e a abordagem.
Então a mulher com sofrimento psíquico vai permanentemente ao serviço de saúde e não consegue ter suas questões resolvidas justamente por isso. Enquanto as políticas públicas não conseguirem ter essa abordagem, mulheres vão continuar sem ter suas questões resolvidas.
Isso tem também a ver com toda a questão da autoimagem, da pressão da mídia e da sociedade sobre os corpos das mulheres?
Exatamente. O Brasil é um dos países do mundo em que mulheres mais fazem cirurgias plásticas. A autoestima das mulheres é sempre baseada no olhar masculino, são os homens que determinam o valor das mulheres e dão status. Não é por acaso que é um dos países onde elas mais são consideradas como objetos. Pelo comportamento, tipo de roupa, por essa questão da cirurgia plástica. Eu estava em um debate onde uma das debatedoras disse que fizeram uma pesquisa com as meninas de 15 anos e o presente que elas pedem nos aniversários é botar silicone nos seios. Com 15 anos! É tão complicado isso, essa questão da mulher como objeto. Eu achava até que isso tinha melhorado, mas nos últimos dois anos acho que regrediu.
E a violência psicológica não é nunca relatada. A física e sexual, embora muitas mulheres não denunciem, outras o fazem. Enquanto a [violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas: “Você é feia, burra, tem o peito caído, está gorda, não entende nada, você é incapaz, não presta para nada”. Esse tipo de violência, que é sutil, vai minando a autoestima das pessoas o tempo inteiro. Toda mulher que sofre violência tem muito baixa autoestima, ou porque sofre violência há muito tempo, ou porque a mãe já sofria violência e cresceu vendo aquilo. É real a violência, tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres, às vezes, nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional.
Em comparação com outros países, se a sociedade for menos machista, percebe-se uma diferença na saúde mental das mulheres?
Eu acho que sim. Quanto mais as mulheres têm autoestima, são menos discriminadas, se valem por elas mesmas, a saúde mental melhora demais. As mulheres casadas que têm mais de três filhos, isso é um risco para a saúde mental. Porque são elas que fazem tudo, cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, são elas que abortam, elas que gerenciam a casa. Quando chegam do trabalho, se forem pobres, vão ter que fazer de novo tudo que fizeram na casa da patroa; se não forem pobres, de qualquer forma têm que cuidar das crianças, ajudar nos deveres da escola. É uma sobrecarga que não termina nunca. Então, o casamento é um risco para a vida das mulheres. Infelizmente, essa é a realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga de trabalho.
Eu tenho uma reflexão, acho que no Brasil a maioria das mulheres de classe média e alta só está junto com os homens porque têm empregada doméstica. É um amortecedor da falta de apoio, da falta de divisão sexual do trabalho, porque os homens e os filhos não fazem nada. Tem um círculo vicioso que as mulheres não conseguem sair, e aí é uma sobrecarga de saúde mental. Por isso que elas são 74% dos consumidores de remédios psiquiátricos, porque tem que ter alguma válvula de escape.
E ao mesmo tempo, parece que muitas vezes os problemas das mulheres não são levados a sério, e elas mesmas não percebem.
Elas muitas vezes não percebem o círculo vicioso em que entram. Sabem que se sentem mal, mas não sabem por que. Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele mal estar: a infelicidade, sobrecarga de trabalho, violência. Há muitas mulheres hoje que conseguem perceber, mas é lento o processo.
Atualmente, os cuidados de saúde mental são muito voltados para a medicalização. Quais os efeitos disso?
Eu sou médica, acho que alguns casos precisam de medicamento. Uma depressão grave, severa, provavelmente tanto homens quanto mulheres precisam de medicamentos, além do apoio de uma terapia, de um profissional. Mas só pelo número já dá para ver que existe um abuso de medicação. Todas as queixas das mulheres para ginecologistas, obstetras e psiquiatras, são imediatamente medicalizadas. Uma pessoa que perdeu a mãe, por exemplo, tanto homens quanto mulheres, é normal que a pessoa chore, sinta tristeza, sinta seu luto. Mas o próprio manual de Doenças Mentais, o DSM, traz que 15 dias de luto já é uma doença mental. Ou seja, transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização. Nessa sociedade capitalista, pós-moderna, individualista, as pessoas não podem mais fazer seu luto, de todos os tipos. Como é uma sociedade de supérfluos, de consumismo, que tudo é temporário e descartável, os afetos também viraram descartáveis. Se seu pai, mãe, companheiro ou companheira morre, você tem que, 15 dias depois, já estar numa boa. É todo um conjunto de sintomas da sociedade atual, da contemporaneidade.
E essas questões de saúde mental afetam de forma diferente em função da raça ou da classe social?
Que eu saiba, não tem nenhum estudo no Brasil que diga, por exemplo, se as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos ou não. Na minha cidade, Salvador, 70% das mulheres são negras, então… Eu não tenho dados científicos, mas pode ser que sejam mais medicalizadas, porque têm acesso a serviços de saúde que não são de boa qualidade, estão nas camadas mais pobres, são mais discriminadas. É só ver o que aconteceu com a Maju, a mulher do tempo no Jornal Nacional, que foi alvo de piadas discriminatórias. Tinha um comentário que dizia: “onde eu posso comprar essa escrava?”, ou seja, estamos num país totalmente machista e racista. Então, isso acontece com uma mulher que está no Jornal Nacional, que é uma mulher culta, que todo mundo elogia o trabalho dela, e mesmo assim os comentários nas redes sociais são terríveis. Eu fiquei chocada, eu imagino que podemos inferir que as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos, até porque as mulheres brancas são discriminadas por serem mulheres, mas não por sua cor.
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'Casamento é um risco para a vida das mulheres', diz especialista em saúde mental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU