26 Fevereiro 2015
De acordo com o jesuíta Scannone, professor de Bergoglio, a teologia do Papa Francisco é uma teologia do Povo e a sua opção pelos pobres sai do Evangelho e da Doutrina Social.
A entrevista é de Ivan de Vargas, publicada pela Agência Zenit, 24-02-2015.
O papa Francisco não é comunista, nem peronista mas segue a chamada "Teologia do Povo", cuja influência é evidente, especialmente na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Essa afirmação foi feita em entrevista exclusiva à ZENIT pelo Pe. Juan Carlos Scannone SJ, professor emérito da Faculdade de Filosofia e de Teologia de São Miguel, Argentina, e escritor da Civiltá Cattolica, que teve entre seus alunos Jorge Bergoglio, o atual pontífice.
Eis a entrevista.
Quais são as principais características da "Teologia do Povo"?
A "Teologia do Povo" considera o povo como uma nação: portanto, com uma história comum, um estilo de vida, uma cultura, um projeto compartilhado de bem comum, embora possa haver diferentes interpretações, especialmente de natureza política. Pensemos em um povo que quer ser uma nação: na América Latina se dá uma importância especial para a questão dos pobres, porque os pobres são aqueles que têm mantido este estilo de vida comum e os seus interesses legítimos: a justiça, a paz, o desenvolvimento para todos ... em uma palavra, o bem comum.
Considera que esta teologia tem marcado de alguma forma o pensamento do Papa Francisco?
Sim, eu acho que o tem influenciado. Não é a única fonte, mas é certamente uma das mais importantes raízes teológicas, capaz de explicar o seu pensamento e a sua ação.
É verdade que a "Teologia do Povo" não utiliza as categorias de análise marxista?
A "Teologia do Povo" nunca quis usar a análise marxista para compreender a situação dos pobres na América Latina. Em vez disso, tentou, na história e na cultura latino-americana, categorias de interpretação que não fossem próprias nem de uma sociologia liberal, nem de uma sociologia marxista.
Pode-se entender a "Teologia do Povo", como um desenvolvimento da doutrina social da Igreja?
Não de uma forma direta, mas há uma relação estreita. No entanto, a "Teologia do Povo" é uma outra coisa. Não trata só do aspecto social mas de toda a compreensão do Evangelho, da Revelação. Portanto, compreende cada aspecto teológico, não apenas as implicações sociais.
Hoje, a nível social, há uma ligação íntima com a Doutrina Social da Igreja, com uma acentuação do tema dos pobres. De fato, na América Latina, tudo isto faz parte da nossa tradição, da conferência de Medellin aos dias hoje. No entanto, o Papa, quando na Evangelii Gaudium discute esses quatro princípios que em seguida elenca, afirma que eles são fundamentados nas contribuições da Doutrina Social da Igreja.
A "Teologia do Povo" também foi chamada de “Teologia da cultura”. Em vários dos seus discursos, o Santo Padre falou das culturas dos povos. Tem algo a ver com esta linha de pensamento?
O que o Papa diz é que o Evangelho deve chegar a todos os povos e a todas as culturas. Já o tinha falado Paulo VI: a evangelização da cultura e as culturas do homem.
Cada povo tem seu próprio estilo de vida, a sua cultura, e interpreta de modo diverso, com várias simbologias, o sentido último da vida, que é o que é próprio da cultura. Também na forma de comer, no modo de vestir, mas ainda mais na arte, no pensamento, na religião, reflete a cultura de um povo.
O Papa disse que a Igreja, como Povo de Deus, é multifacetada. Evangeliza todas as culturas e incultura o Evangelho em todas as culturas. Não só na cultura europeia, que já o fez através dos séculos, ou na América Latina, através da evangelização, mas também em todas as culturas da Ásia, da África, etc. Fala de uma harmonia multiforme do Povo de Deus. O que agora se chama de multiculturalismo, que pressupõe a enculturação do Evangelho em uma cultura e o diálogo entre as culturas. Por isso o tema do encontro, quando fala de cultura do encontro, é uma coisa que pode-se aplicar tanto dentro da Igreja como entre os povos e entre as culturas.
Alguns definem o Pontífice que veio do “fim do mundo” como um populista...
O populista pensa no povo como algo uniforme, conduzido por um ditador. Em vez disso, a imagem é de um poliedro, onde não existe uniformidade mas harmonia das diferenças. Como acontece na Santíssima Trindade, que, de certa forma, é a união de vários relacionamentos. E o mesmo acontece na Igreja e deveria acontecer entre os povos.
O Papa Francisco é de Esquerda?
O que significa dizer "de esquerda"? Se queremos dizer que ele fez uma opção pelos pobres, isto é o evangelho, e não a esquerda. A esquerda poderá também perseguir tal opção, mas não é necessário ser de esquerda para optar pelos pobres. E Cristo optou pelos pobres, pelos enfermos, pelos indefesos, pelas vítimas... Assim fez a Igreja ao longo da história. E toda a teologia atual, especialmente na América Latina, depois das Conferências de Medellín e de Puebla, culminadas em Aparecida, onde há uma opção preferencial pelos pobres, pelos excluídos, pelos descartados, pelas vítimas da história, etc. Isto, então, não quer dizer que ele seja de esquerda, mas que é cristão, fiel ao Evangelho.
Ou, talvez, o Papa é peronista?
O peronismo tem sido muito influente na Argentina, e também usava a categoria de “povo”. No âmbito cultural, teve a sua importância e envolveu muitos argentinos. O Papa é, portanto, peronista? Não, porque o Papa nunca se envolveu na política. Certamente não na política argentina. Em vez disso, ele queria o diálogo com todos os partidos e as ideologias. Agora, se por um lado o peronismo privilegiava os trabalhadores e os pobres, por outro lado, tinha uma concepção de "povo-nação" ... Pode acontecer que alguém compartilhe essas posições, sem ser peronista, certo? Não se pode dizer que o Papa é um peronista, mas há elementos no peronismo que são válidos e que são tomados do cristianismo, alguns dos quais são explicitamente inspirados na doutrina social da Igreja. E em tudo isso nós concordamos.
Qual é a mensagem que gostaria de transmitir aos leitores?
Temos de voltar ao Evangelho, converter pastoralmente a Igreja. Aparecida falou de uma conversão pastoral. O Papa atribui uma grande importância ao Documento de Aparecida. E agora, de alguma forma, vê o elemento universal que tem. Uma Igreja que não olha apenas para si mesmo, mas olha para fora, para o sofrimento, para as pessoas que têm necessidade de misericórdia, que não conhecem a Cristo, é uma Igreja missionária. Uma reforma no sentido de uma conversão pastoral. Um abandono das estruturas obsoletas, como também diz o documento de Aparecida, e uma Igreja missionária, isto é, como Cristo, que é a missão da pessoa. E nós levamos a Cristo a todos os âmbitos da realidade e da sociedade, e também a toda a humanidade em geral.
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O Papa Francisco é de Esquerda? Entrevista com Juan Carlos Scannone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU