26 Janeiro 2015
Encontramos Claude Lanzmann no hotel, no fim da sua turnê entre aviões, entrevistas e encontros romanos. Ele chegou da França para apresentar na Itália o livro L'ultimo degli ingiusti [O último dos injustos], tirado do seu filme homônimo lançado em 2013.
A reportagem é de Tobia Zevi, publicada no sítio HuffingtonPost.it, 21-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Mestre está cansado, bebe um copo de uísque, não consegue mais responder sempre às mesmas perguntas, e o repórter deve ter cuidado para não pisar em falso. Ele não se distrai nunca na aurora dos seus 90 anos. Se errar uma pergunta, você está ferrado. Lembro-me das palavras de um velho ditado: as perguntas se dividem em duas categorias, as que não têm resposta, e as que não merecem resposta.
Estamos falando de um monumento vivo, o artista que consagrou a sua vida à memória do extermínio dos judeus, primeiro com o fundamental Shoah (duração de 10 horas e alguns minutos) e depois com O último dos injustos, o filme que reúne o testemunho de Benjamin Murmelstein, rabino e intelectual vienense, conhecido mundialmente como o último decano do gueto de Theresienstadt.
A entrevista de Lanzmann com Murmelstein ocorreu em 1975, sobre o telhado de um hotel em Roma, cidade onde este viveu por 40 anos depois da guerra.
Eis a entrevista.
Por que Roma? Como foi a sua vida depois de Theresienstadt?
Ele escolheu esta cidade porque era o único lugar que lhe era permitido, ou talvez o único lugar em que tinha o prazer de residir. Depois da guerra, ele foi processado, depois absolvido, em Praga, e tentou se mudar para Israel, mas as autoridades negaram-lhe a permissão de estadia. Ele se considerava um judeu no exílio, e não é fácil viver como exilado.
Como ele se virava?
Em Roma, ele passou a vida em uma miséria constante e total. Para ele, a esposa e o seu filho Wolf, foi terrivelmente dura: ele trabalhava no comércio de lâmpadas, era representante, especialmente na Sardenha.
Manteve relações com a comunidade judaica?
Não a de Roma, com a qual se ignoravam. Mas, no momento do julgamento de Eichmann, tentou ter relações com Israel: havia publicado um livro sobre a sua história e queria ser interrogado. Responderam-lhe que o seu testemunho era válido como verificação, não como prova autônoma. Eles queriam saber só o que lhes era cômodo. Naquela época, ele também escreveu uma série de artigos polêmicos contra Hannah Arendt, com quem não estava de acordo: nem sobre a "banalidade" de Eichmann nem, obviamente, om o julgamento em relação aos líderes judeus dos guetos.
O senhor criticou duramente a comunidade judaica de Roma por ter recusado a Murmelstein a inscrição e, depois, a sepultura no cemitério. Como se explica essa exclusão?
Com o conformismo formidável, não só dos romanos, mas em geral.
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Lanzmann assume uma posição clara para defender o seu entrevistado. Uma opinião radical e excêntrica, se considerarmos, por exemplo, a declaração de Gershom Scholem: o decano da Theresienstadt merecia ser enforcado. O mesmo Scholem que, sobre Eichmann, havia se inclinado contra a pena de morte.
Os sobreviventes do gueto odiavam Murmelstein. Nunca lhe perdoaram pela relação direta com Eichmann e com as SS, os modos bruscos, algumas decisões dramáticas. Em Theresienstadt, morreram mais de 30 mil judeus e quase 90 mil foram deportados para as câmaras de gás ao leste.
Mas Murmelstein sempre defendeu as suas escolhas. Incluindo aquela – realmente extrema – de comprazer a mentira dos nazistas, que tinham escolhido Theresienstadt como "cidade doada aos judeus", uma vitrine para a Cruz Vermelha e para os observadores internacionais. A fim de salvar tantas vidas quanto possível, esse rei dos judeus, símbolo do "poder sem poder", contribuiu para organizar os trabalhos de embelezamento do gueto e até as filmagens em que os reclusos aparecem jogando xadrez, futebol, enquanto comem ricamente. A obscenidade do engano a serviço de extermínio.
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Por que o senhor considera a história do gueto de Theresienstadt emblemática para compreender o Holocausto?
Fundamental. Tão importante que, na República Tcheca, onde os fatos ocorreram, não querem saber disso. Nenhuma apresentação do filme. E pensar que, na época de Shoah, aconteceu comigo em Praga um episódio extraordinário. Vi um homenzinho baixo vir ao meu encontro; era Vaclav Havel, muito antes de se tornar presidente. Ele me informou de um presente seu, "belo e raro": a tradução do meu documentário completada na prisão junto com o seu irmão. Incrível. Mas, aos tchecos, hoje, não importa nada.
Lendo o livro, tem-se a impressão de que o senhor confia completamente nas palavras de Murmelstein quando ele fala sobre si mesmo e descreve as atrocidades do gueto…
Sim. Ele explica magnificamente e não esconde nada. Ele é uma testemunha absolutamente preciosa. O único que viveu e integrou tudo isso, o único decano dos guetos a ter voltado.
Ele lhe parecia feliz por poder contar a sua própria versão dos fatos?
Ele estava satisfeito por poder se explicar e contar aos meios de comunicação. Mas os meios de comunicação eram um passo atrás, e ele não acreditava que pudessem compreender a sua história. Talvez hoje as coisas começam a mudar. Leva tempo. Mas as pessoas entenderão e mudarão de ideia. É significativo que tenham me permitido fazer esse filme.
Primo Levi cunhou a feliz expressão de "zona cinzenta". Segundo o senhor, o último dos injustos é um exemplo extremo disso?
A "zona cinzenta" foi uma invenção de Levi. Murmelstein encontrava-se precisamente na zona preta. Foi completamente imerso no mal durante todo, absolutamente todo o tempo.
Por que o documentário sobre Murmelstein precisou de uma gestação tão longa, de 1975 a 2013?
Na época, não existia um produtor tão louco a ponto de permitir alguém como eu ficar em Roma uma semana inteira, filmando de manhã, de tarde e de noite, entrevistando um personagem controverso como Murmelstein. Sempre filmando, filmando, filmando. Ia contra todas as regras do cinema.
Por que o senhor embarcou nessa aventura tantos anos depois do lançamento de Shoah?
Eu estava louco de raiva, tinha um sentimento de revolta. Parecia-me que eles tinham se servido de mim, usando os trechos que eu tinha filmado e depois dado, sem me pedirem nada. Senti-me roubado.
O senhor está feliz por ter publicado esse livro e, antes, por ter filmado O último dos injustos?
Se há uma coisa da qual eu posso estar orgulhoso na minha vida é por ter feito esse filme. Ressarcir um homem que tinha sofrido tanto... Isso faria de mim quase um cristão (risos). Pode ser que, no alto, nos apartamentos do céu, Murmelstein viu o filme e ficou contente com ele. Embora pessoalmente eu não o tenha feito por ele. Mas pela verdade.
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Benjamin Murmelstein não negou que agiu também pelo prazer gerado pelo poder. Murmelstein não se matou como Adam Czerniakow, presidente do Conselho Judaico de Varsóvia, que não quis participar da deportação do seu povo. Ele escolheu ficar, colaborando com os carnífices.
Salvou muitas pessoas, convencido de que colaborar, sobreviver, às vezes arriscando, era o único modo de derrotar os nazistas. É difícil determinar se ele tinha razão. Mas é difícil discordar quando ele afirma: "Um decano dos judeus pode ser condenado. Mais, deve ser condenado. Mas não pode ser julgado, porque ninguém pode se pôr no seu lugar".
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Murmelstein e Lanzmann, memórias do Holocausto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU