12 Janeiro 2015
"É preciso deixar que a liberdade ofenda a fé dos seguidores do islamismo degradando a imagem do seu Profeta, a liberdade de expressão se sobressai sobre todas as outras considerações?", pergunta Edgar Morin, em artigo publicado no jornal Le Monde, 09-01-2015. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.
Segundo ele, estar "entre aqueles que se opõem à profanação dos locais e dos objetos sagrados", "não modera em nada o meu horror e o meu desgosto pelo atentado contra Charlie Hebdo".
Eis o artigo.
O massacre assinala a erupção no seio da sociedade francesa da guerra do Oriente Médio, onde a nação ocidental fez aprendizes de feiticeiro. A fórmula de François Hollande é certa: “A França foi golpeada no coração”. Foi golpeada no coração da sua natureza laica e de sua ideia de liberdade, exatamente no atentado contra o periódico semanal típico pela irreverência, do desprezo que atinge o sagrado em todas as suas formas, especialmente religiosas.
Mas a irreverência de Charlie Hebdo se situa a nível de riso e de humor, o que dá ao atentado um caráter monstruosamente imbecil. A emoção não deve paralisar a razão, como a razão não deve atenuar a emoção. Existiram problemas no momento da publicação das caricaturas. É preciso deixar que a liberdade ofenda a fé dos seguidores do islamismo degradando a imagem do seu Profeta, a liberdade de expressão se sobressai sobre todas as outras considerações? Naquele tempo, manifestar o meu sentimento de contradição intransponível, tanto mais que estou entre aqueles que se opõem à profanação dos locais e dos objetos sagrados. Mas naturalmente isso não modera em nada o meu horror e o meu desgosto pelo atentado contra Charlie Hebdo.
Isso dito, o meu horror e o meu desgosto não podem me impedir de contextualizar o atentado imundo. Significa a erupção, no coração da França, da guerra do Oriente Médio, guerra civil e guerra internacional, onde a França interveio no rastro dos Estados Unidos.
O crescimento de Daech é certamente uma consequência das radicalizações e dos deterioramentos da guerra no Iraque de na Síria, mas as intervenções militares americanas no Iraque e no Afeganistão contribuíram para a decomposição de nações compostas etnicamente e religiosamente, como a Síria e o Iraque.
Os Estados Unidos foram aprendizes de feiticeiro e a coalisão heteróclita e sem força verdadeira que guiam é a mesma voltada ao insucesso, visto que não reúne todos os países interessados, visto também que fixa como objetivo de paz a impossível restauração da unidade entre o Iraque e a Síria, enquanto a verdadeira conclusão pacífica (atualmente irrealizável) seria uma grande confederação dos povos, das etnias, das religiões do Oriente Médio, sob a garantia das Nações Unidas, como antídoto ao Califado.
Coincidência, a França está presente com a sua aviação, com os franceses muçulmanos que partiram para a Jihad, com os franceses muçulmanos que voltaram para a Jihad, e agora fica claro que o Oriente Médio está no interior da França com atividade assassina que iniciou com o atentado contra Charlie Hebdo, como o conflito entre Israel e Palestina já está presente na França.
Do restante, existe uma coincidência, entre o outro fortuito, entre o islamismo integralista assassino que se manifestou recentemente e as obras islamofóbicas, não somente na França, mas também na Alemanha e na Suécia. O medo se agrava. Triunfa o pensamento redutivo. Não somente os assassinos fanáticos acreditam combater as cruzadas e os seus aliados hebreus (que as cruzadas massacravam), mas os islamofóbicos reduzem o árabe à sua suposta crença, o islamismo, reduzem o islâmico ao islamista, o islamista ao integralista, o integralista ao terrorista.
O anti-islamismo se transforma sempre mais radicalmente e obsessivamente e tende a estigmatizar toda uma população, ainda mais importante numericamente que a população hebraica que foi estigmatizada pelo antissemitismo antes da segunda guerra e sob Vichy.
O medo se agrava entre os franceses de origem cristã, entre aqueles de origem árabe, entre aqueles de origem hebraica. Eles se sentem ameaçados pelos outros e está em andamento um processo de decomposição, que talvez poderá ser paralisado no grande encontro previsto para sábado 10 de janeiro, porque a resposta à decomposição é a união de todos, com a participação de todas as etnias, de todas as religiões e de todas as componentes políticas.
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A França golpeada no coração da sua natureza laica e da sua liberdade. Artigo de Edgar Morin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU