Para compreender as lógicas da Teologia Negra, é preciso compreender as lógicas de opressão e as formas de resistências que se configuram. Por isso, o teólogo Ronilso Pacheco vai conceituá-la como uma forma de resposta da comunidade negra a toda opressão que sofre, inclusive no aspecto religioso. É uma aproximação da vida cotidiana de quem vive essa opressão, seja na periferia ou mesmo nos locais mais centrais que consegue acessar. “A Teologia Negra não se fecha num mundo espiritualizado e abstrato, mas considera aquilo que marca em especial a história material do povo negro”, pontua, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para tanto, apoia-se em dois conceitos básicos: “territorialidade” e “corporalidade”.
Segundo Ronilso, territorialidade “fala da importância do lugar, do território, da terra, do chão, do quilombo, da favela”. E, por sua vez, corporalidade “fala dos corpos e das violências reais a que são submetidos e as potências que possuem. Fala das dores e do sangue derramado nos açoites da escravidão e dos tiros que almejam os corpos da juventude negra no Brasil, maior grupo de vítimas da violência no país”. Por isso, compreende que tal perspectiva tem conexão direta com a realidade das periferias brasileiras. “Teologia Negra na realidade brasileira se deu lenta e permanece lenta, mas as nossas próprias tensões sociais têm aberto para ela um caminho urgente e necessário”, analisa.
Com a experiência de quem vive e observa a realidade da periferia, Ronilso também analisa como a religião assume um papel importante nesse contexto, e analisa especialmente a grande adesão das chamadas religiões neopentecostais a esses locais. “É preciso encarar o fato de que o surgimento de muitas destas igrejas é orgânico da própria comunidade. Elas são independentes e são criadas a partir de relações na própria comunidade”, explica. Assim, chama atenção para como essas igrejas se constituem como a cara da igreja brasileira, negra, mulher, pobre e plural. “A liberdade e a pluralidade pentecostal couberam suficientemente em um ‘ethos de sobrevivência’ na periferia, o que permitiu comunidades acolhedoras, construção de significado e autorreconhecimento”, pontua. E dispara: “Enquanto a intelectualidade e a academia faziam observação antropológica do lugar da religião na vida do povo oprimido, o povo apenas vivia e sobrevivia, criava sua própria expertise e formas de driblar as opressões”. O resultado, para ele, é que “o povo empobrecido, visto com o olhar de fora como ‘carentes’, é a própria igreja, e cria suas próprias formas de sobreviver”.
Ronilso Pacheco (Foto: Arquivo pessoal)
Ronilso Pacheco é teólogo e pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo-RJ, ativista no campo dos direitos humanos e colaborador de diversas organizações, igrejas e movimentos sociais. Formado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, também é mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. É autor de Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão (Novos Diálogos, 2016) e organizador do livro Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018. Recentemente, lançou o livro Teologia Negra (Recriar e Novos Diálogos, 2019).
IHU On-Line – O que é a Teologia Negra? Qual a sua origem e como compreender o contexto em que ela emerge?
Ronilso Pacheco – Eu defino a Teologia Negra como a teologia desenvolvida pelo povo negro. Ela é uma das respostas, no caso é a resposta do povo negro, homens negros e mulheres negras, a toda imposição de uma teologia imposta como única e universal, neste caso, europeia, ocidental, branca, em que o povo africano inclusive foi definido como inferior, subalterno, primitivo e sem alma. Sua origem está situada na década de 1960, com pontos de partida distintos no continente africano, nos Estados Unidos e no Caribe. Está vinculada com as lutas antirracistas e contra a segregação racial, no caso dos Estados Unidos, e os movimentos negros de resistência contra o apartheid no caso da África do Sul, o que repercute em grande parte do continente. Ela emerge no momento em que o legado mais cruel e violento dos séculos de escravização e objetificação do sujeito negro, em especial a partir da modernidade, parece chegar no limite. Também surge como resposta à saturação de políticas racistas que recebem enfrentamentos da população negra ao redor do mundo, no rastro dos grandes movimentos de protesto, luta e resistência contra ditaduras, repressões, controle e moralização das sexualidades.
Gosto sempre de destacar que todas as pesquisas e relatos ao longo da história mostram que não existe levante negro que não venha junto com o amparo da espiritualidade. Basta pensar na importância do vodu na Revolução Haitiana, os negros islamizados na Revolta dos Malês, o catolicismo sincrético de Kimpa Vita e Saimon Kimbangu no Congo, o protestantismo de Samuel Sharpe na Jamaica, os muitos heróis e muitas heroínas da luta abolicionista e libertária nos Estados Unidos. Isto para dizer que a Teologia Negra reconheceu este lugar, que, para o povo negro, tem uma profunda religiosidade conectada e comprometida com a luta anticolonial e antirracista.
IHU On-Line – Quais são os principais autores da Teologia Negra? No que as suas abordagens se distinguem e no que se associam com outras perspectivas teológicas?
Ronilso Pacheco – Provavelmente seu principal nome é o estadunidense James Cone, considerado o pai da Teologia Negra nos Estados Unidos. Sua contribuição é ímpar e uma referência que atravessa o tempo. J. Deotis Roberts também é um nome importante. Ao lado deles eu colocaria três incríveis mulheres compatriotas: Delores Williams, nome fundador da Teologia Negra mulherista, Jacquelyn Grant e Kelly Brown Douglas. Da África, eu destacaria o queniano John Mbiti, o congolês Kä Mana e a teóloga de Botswana, Musa W. Dube. Evidentemente, os sul-africanos se destacam entre nós, então Allan Boesak, Saimon Maimela e o arcebispo Desmond Tutu são nomes imprescindíveis.
E eu incluo entre estes grandes nomes a colombiana, com passagem pelo Brasil, Maricel Mena López. Considero-a imprescindível para pensar a Teologia Negra na América Latina e Caribe, suas relações com as religiões de matriz africana e a perspectiva feminista. Além dela, ainda no Brasil, o estadunidense Peter Nash, que foi professor na Escola Superior de Teologia - EST, em São Leopoldo, é para mim uma referência extremamente significativa. Com certeza, Nash, com suas aulas e a fundação do grupo Identidade, foi fundamental para a disseminação da Teologia Negra no Brasil. E eu incluiria na lista a Silvia Regina de Lima Silva. Sua longa jornada na Teologia Negra e feminista a coloca em um pioneirismo importante no debate para o Brasil e a América Latina e Caribe.
A maior associação dos autores da Teologia Negra com outras contribuições teológicas é com os autores e autoras da Teologia da Libertação , sem dúvida. Como não poderia deixar de ser, teólogas e teólogos da Teologia Negra se distinguem na medida em que sua ênfase está na denúncia e no enfrentamento do racismo, e em especial do racismo antinegro. Sua abordagem está permanentemente apontando para o fato de o Deus libertador, o engajamento dos profetas e a mensagem do evangelho de Jesus estarem falando necessariamente de liberdade, e liberdade que condena a escravidão e os sistemas escravistas.
IHU On-Line – Qual a centralidade da bíblia na Teologia Negra? Que leitura das escrituras é proposta nessa perspectiva teológica?
Ronilso Pacheco – A centralidade da Bíblia é total. Se justifica a partir disso. Mas é bom dar ênfase sobre o conteúdo da teologia, na perspectiva da Teologia Negra, segundo James Cone. Este conteúdo é a libertação. A centralidade da Bíblia é a centralidade nela contida, a saber, as diversas narrativas, os diversos testemunhos, de como Deus interveio como libertador daqueles e daquelas que, em contexto de opressão e violência, foram libertos e libertas. Por extensão, a leitura das Escrituras proposta não é outra senão a liberdade, a anticolonização, a descolonização. Salvação e condenação estão convergentes com esta chave. As Escrituras aqui não são conjunto de regras e normativas a serem apropriadas e usadas para controle, mas um conjunto de histórias de povos e pessoas que clamaram a Deus, como Ele as atendeu e como, e por que, estas histórias foram guardadas e chegaram até nós.
Na centralidade das Escrituras está também a centralidade da África enquanto território e sitz im leben de muitas das narrativas bíblicas. Isto é importante também para não permitir que a centralidade das Escrituras não seja descolada do seu chão, do povo que fala, da cultura que vive, do contexto que pulsa, do sentido que dá a mensagem que é lida. É uma leitura proposta para quebrar a lógica do discurso que por séculos serviu como arcabouço da colonização e da escravidão, da segregação e do apartheid, e que ainda serve em alguma medida de demonização da cultura africana e de superioridade frente à pluralidade da humanidade.
IHU On-Line – Como se dá a inserção da Teologia Negra na realidade brasileira?
Ronilso Pacheco – No meu livro mais recente, defendo a ideia de que ao menos duas das características da Teologia Negra são a “territorialidade” e a “corporalidade”. Com isto, quero dizer que a Teologia Negra não se fecha num mundo espiritualizado e abstrato, mas considera aquilo que marca em especial a história material do povo negro. “Territorialidade” fala da importância do lugar, do território, da terra, do chão, do quilombo, da favela. “Corporalidade” fala dos corpos e das violências reais a que são submetidos e as potências que possuem. Fala das dores e do sangue derramado nos açoites da escravidão e dos tiros que almejam os corpos da juventude negra no Brasil, maior grupo de vítimas da violência no país. Tudo isto para dizer que a inserção da Teologia Negra na realidade brasileira se deu lenta e permanece lenta, mas as nossas próprias tensões sociais têm aberto para ela um caminho urgente e necessário.
A inserção da Teologia Negra no contexto brasileiro foi relativamente tardia (na virada da década de 1980 para 1990), e ainda lenta como realidade teológica que se insere na realidade brasileira. É evidente que isto tem muito ou tudo a ver com um profundo racismo, afetando a abertura para outras construções teológicas que não as europeias e dos clássicos teólogos brancos que conhecemos tão bem. Isto retardou o contato, a produção e a aposta na Teologia Negra como alternativa e necessidade. No entanto, ainda que (ainda bastante) ausente dos seminários, das faculdades de teologia e, principalmente, das igrejas, mas cada vez mais imersa como resposta possível para os dilemas da vida real que acomete grande parte do nosso povo, sua inserção vai gradativamente se ampliando.
IHU On-Line – O professor Silvio Almeida, da USP e Mackenzie, afirma que você tem sido fundamental na resistência dentro das igrejas evangélicas, com uma visão antifundamentalista. Mas como você se vê nesse cenário? Quais os desafios para, de dentro das igrejas, se movimentar contra os radicalismos e fundamentalismos?
Ronilso Pacheco – Os desafios são muitos. Mas, sejam quais forem as estratégias pensadas para lidar com elas, eu não acredito que qualquer coisa possa ser feita de maneira imediata e de curto prazo. Estamos apagando incêndios quase que diariamente. Eu não tenho falado sozinho. No que diz respeito à pauta racial, eu tenho contado com a parceria e dividido esta vocação com muitas irmãs e muitos irmãos. O rechaço de nossas igrejas e muitas de suas lideranças insistem, mas cada vez mais vozes se levantam.
Recentemente, um casal querido, o pastor Marco Davi e a pedagoga Fabíola Oliveira foram desconvidados de um encontro em que falariam sobre os efeitos do racismo na igreja, em uma igreja batista na Barra da Tijuca [na cidade do Rio de Janeiro], para a juventude. O desconvite repercutiu mal, diversas manifestações de repúdio, mas também de apoio à igreja, hostilizando a necessidade de se falar sobre o tema, convidando duas pessoas que conhecidamente são abertas ao diálogo inter-religioso e de respeito às religiões de matriz africana. Então eu não me vejo sozinho. Estou ciente do estranhamento ao tema. Seja por medo, seja por tradição, seja por racismo propriamente.
Mas se há algo a ser feito, ele definitivamente deve ser feito, sim, de dentro das igrejas. Não vamos superar isto indo de seminário em seminário. A grande questão é que uma crítica profunda do fundamentalismo extremista, racista e preconceituoso só pode ser encarada entrando no dia a dia da dinâmica das igrejas. É preciso alcançar os sermões, as escolas dominicais, os seminários e as faculdades de teologias. É preciso denunciar inclusive as formações que têm se dedicado em formar fundamentalistas. Instrumentalizando mentes e corações para odiar, se achar superior e negar o reconhecimento das verdades outras, de outros saberes. A igreja, nosso cristianismo hegemônico, ajudou a formatar o “uni-verso”, uma única versão do mundo, verdadeira e autossuficiente. Não mudaremos isto tão fácil, o que exige perseverança.
IHU On-Line – A partir de Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão , como foi a experiência de aproximar as escrituras com as remoções de famílias no Rio de Janeiro e o protagonismo dos estudantes nas ocupações das escolas?
Ronilso Pacheco – Foi uma experiência extremamente importante para a minha formação. E não apenas minha. Éramos um grupo de irmãos e irmãs, sem um vínculo institucional, e sim mais orgânico com a cidade do Rio de Janeiro em especial, em um momento de muita ebulição popular na cidade em virtude dos grandes eventos. As remoções foram um dos sinais destas violências institucionais que marcaram profundamente o Rio de Janeiro. Quando o livro é publicado, em 2016, ele é na verdade o registro de toda uma história de atuação e engajamento, em que pude ver como as Escrituras possuem pontos de conexão importantes. Aproximar a história do plantador de vinhas Nabot, contida em 1Reis 21, que é assassinado a mando do casal real, para que possam removê-lo de sua terra e ficarem com ela; ou Isaías 5, e ajudar o povo das comunidades ameaçadas de remoção, sabendo que ele não está sozinho, que há uma denúncia do Deus das Escrituras contra aqueles (no caso, a especulação imobiliária e as grandes empresas que visavam o lucro com os grandes eventos no Brasil) que intentavam acumular cada vez mais terra, sendo os únicos donos dela, empurrando os pobres para áreas cada vez mais periféricas, foi extremamente importante.
A ocupação das escolas, no coração dos levantes estudantis desse período, foi extremamente importante, não para aproximar a bíblia deles, mas para aproximar a bíblia, nossas leituras já engessadas, da luta dos estudantes. A ocupação me permitiu problematizar o quanto as instituições serviam criticamente. Foi como pensar “o sábado feito para o homem e não o homem feito para o sábado”, isto é, os alunos reivindicaram escolas de qualidade e dinâmica, críticas e participativas, que os servissem neste sentido. Isto me permitiu pensar o quanto muitas de nossas igrejas também careciam do mesmo. Inclusive, me surpreendi o quanto isto era uma questão, ao publicar um texto que dizia que as igrejas também deveriam ser ocupadas, e ter sofrido todo tipo de retaliação e ameaças, inclusive com textos que alegavam uma incitação à “invasão” de igrejas. Mas isto só mostra como há um desafio, e um debate importante, de uma igreja concebida como “patrimônio”, uma categoria de “propriedade privada”. E isto só mostra o potencial insurgente que as Escrituras possuem.
IHU On-Line – Enquanto igrejas mais tradicionais, como a católica e mesmo a luterana, têm perdido espaço nas periferias do Brasil, as igrejas neopentecostais têm avançado. Como analisa esse fenômeno?
Ronilso Pacheco – Eu uso o “têm avançado” com algum reserva. Porque é evidente que há, de cima para baixo, um plano de expansão e as igrejas neopentecostais em especial, denominações específicas, vão ocupando o maior espaço possível em um território. No entanto, não se pode pensar apenas nesse “plano de expansão”. É preciso encarar o fato de que o surgimento de muitas destas igrejas é orgânico da própria comunidade. Elas são independentes e são criadas a partir de relações na própria comunidade. Aqui, religião, raça e classe se interseccionam.
Você cita “igrejas tradicionais” como a luterana (só para ficar em um exemplo protestante), mas a conexão do povo periférico com o cristianismo periférico, com a liturgia periférica, com a hierarquia luterana é pouco compatível. No dia a dia, quem está lá, quem está no cotidiano da comunidade, quem inclusive integra a própria comunidade são as irmãs e os irmãos pentecostais. “Avançam” muito porque há uma conexão e um reconhecimento de dinâmica de vida e desafios.
Nem toda igrejinha pentecostal ou mesmo neopentecostal tem o plano de expansão e o projeto de poder do Edir Macedo ou do Valdemiro Santiago. Então outras variáveis e outros critérios precisam entrar na avaliação deste fenômeno. É um povo preto, pobre e com muita fé, com uma espiritualidade que está, e precisa estar, presente na conjuntura da vida. Para além dos muitos e tristes casos do racismo religioso, das violações e ofensas às irmãs e irmãos das religiões de matriz africana nos territórios, que podemos tratar em outra conversa, o fato é que este povo é periférico, é preterido da defesa de direitos e dos acessos aos serviços. E, muitas vezes, eles não sucumbem exatamente pela fé que têm e pela comunidade que os acolhe.
Esta é a cara da igreja brasileira hoje, em especial na periferia. Ela é negra, ela é mulher, e ela é pobre. A liberdade e a pluralidade pentecostal couberam suficientemente em um “ethos de sobrevivência” na periferia, o que permitiu comunidades acolhedoras, construção de significado e autorreconhecimento, uma partilha das durezas do dia a dia, uma esperança que não se abala facilmente, uma possibilidade de encontrar sentido ou respostas para um mundo pesadamente sem sentido. Enquanto a intelectualidade e a academia faziam observação antropológica do lugar da religião na vida do povo oprimido, o povo apenas vivia e sobrevivia, criava sua própria expertise e formas de driblar as opressões, de se ajudar mutuamente, de criar “padrões” de vida que perpetuassem a vida e mantivessem alguma dignidade.
É verdade que nossas igrejas, pobres e de maioria negra, não possuem qualquer debate ou abordagem racial, o que inviabiliza muito da percepção de como o racismo opera nas violências que ocorrem contra a periferia e internamente na periferia. Como qualquer outro grupo, aqui também estamos carregados de contradições. Mas também é verdade que não se pode entender isto pensando “como as igrejas se relacionam com as populações carentes”. Aqui, o povo empobrecido, visto com o olhar de fora como “carentes”, é a própria igreja, e cria suas próprias formas de sobreviver.
IHU On-Line – Hoje, não só no Brasil, mas também em países europeus, como a Itália, vemos um avanço na política de uma extrema direita que se associa à religião. Como tem lido esses movimentos? E como imagina que essa associação tem reverberado nas pessoas?
Ronilso Pacheco – Às vezes me pergunto se quem acha que a extrema direita no mundo está se associando hoje à religião e entendendo o papel determinante que a religião, especialmente a igreja, no caso do ocidente, tem, se está comparando isto com um dia em que igreja e conservadorismo, direita e extrema direita não se falavam. Eu entendo que a igreja, a instituição oficial, esse “eurocristianismo”, como dizia Lélia González, sempre esteve ao lado do poder. Assim, chega nas Américas ao lado dos colonizadores, dos escravocratas, unge e abençoa os coronéis, os donos do poder, marcha pela família e pela ditadura militar. Em contrapartida, sempre houve, na igreja, aqueles e aquelas que não se dobraram. Os esforços de libertação, denúncia e confronto sempre foram feitos de forma marginal, enfrentando muitas vezes a própria hierarquia eclesiástica.
Tudo isto para dizer que eu não vejo surpresa, ainda que talvez um aprofundamento de uma relação igreja e direita/extrema direita, que sempre existiu, em maior ou menor grau, às vezes mais violenta, às vezes menos, com mais ou menos vítimas. Neste momento, estamos vendo a produção de mais e mais vítimas. No Brasil, como nos Estados Unidos e Europa, como na América Latina aliás, se intensificam os discursos moralistas e controladores, a reivindicação de um “purismo étnico/nacional” que se diz ameaçado por imigrantes que comprometem a segurança e a oferta de serviços e trabalho para “os nacionais”.
O discurso da lei e da ordem volta a ocupar lugar, acionando as narrativas de “respeito e oração” pelas autoridades, que são “escolhidas por Deus”, ou se chegaram lá foi porque “Deus assim o quis”, e evidentemente a ideia de que quem não infringe a Lei não deve temer a Lei. Estamos em meio a uma rede global de religiões sacrificiais. A misericórdia e o perdão deixaram de ser graça divina acessível a todas e todos e se tornaram “privilégios”, e, logo, não são para todo mundo.
É assim que nós estamos, no contexto brasileiro, por exemplo. Um número cada vez maior de pastores e líderes, megaigrejas, grandes igrejas, padres e bispos importantes navegam na “segurança” de um governo assumidamente de direita (mas, ainda que não assumidamente, de extrema direita), que funciona sob uma profunda lógica fascista na ideologia política, e neoliberal econômica e socialmente, para terem poder, influência, privilégio, e preservarem um passado inventado de um purismo, uma moral, uma ordem, uma civilidade que outrora havia e foi perdida com as experiências progressistas e de esquerda no mundo.
IHU On-Line – Você também organizou o livro Jesus e os Direitos Humanos num momento de avanço de fundamentalismo religioso no Brasil. Que Cristo é esse que se aproxima do conceito do que hoje chamamos de Direitos Humanos? E como compreender a aproximação que se faz desse Cristo para uma defesa fundamentalista, excludente e preconceituosa?
Ronilso Pacheco – A nossa proposta com o livro foi não colocar Jesus como um defensor dos direitos humanos, mas como a sua vida e prática, suas escolhas de relações e respostas, sua pedagogia, sua experiência aponta para o que hoje nós afirmamos ser a defesa dos Direitos Humanos. E ao falar isto, nós não estamos falando da Declaração Universal, da normatização contida ali, estamos falando de fato da dimensão de humanidade, de reconhecimento e respeito da individualidade, subjetividade, liberdade e dignidade de alguém.
É pensar em Jesus no contexto de conversa e acolhida com uma mulher de pertença territorial (Samaria) com a qual judeus, incluindo os próprios discípulos, eram hostis e preconceituosos; é pensar na resposta de Jesus diante do ímpeto dos discípulos em lançar fogo sobre Samaria por conta da recusa de sua passagem ou a repreensão aos discípulos por conta de reprimir alguém que expulsava demônios usando seu nome, sem no entanto fazer parte do “grupo seleto” dos discípulos; é pensar nos milagres de cura de Jesus não como milagres com fim em si mesmo, mas como ato que dá dignidade, potencializa quem é curado e liberta pessoas do estigma e da invisibilidade social, do descaso, ao mesmo tempo que denuncia o acesso aos cuidados e ao tratamento para a cura possível.
Mas, no entanto, voltamos à questão por detrás do perdão e da misericórdia como privilégio e não como graça. Para sustentar seu conservadorismo excludente e seu fundamentalismo extremista, muitos líderes, teólogos, muitas organizações paraeclesiásticas e muitas igrejas invisibilizam a prática de Jesus com este sentido. Vendem a imagem de um Jesus despolitizado, abstrato, apático, sentimentalista e indiferente a contextos sociais, para que suas práticas sejam compreendidas apenas como “boas ações”, e não como mensagem potente de defesa da dignidade e do respeito à diversidade, pluralidade e igualdade. A essa gente não interessa a igualdade. Interessa o poder e o privilégio, sempre.
IHU On-Line – Religião e política não se misturam ou religião e política são partes de um mesmo corpo social? Por quê?
Ronilso Pacheco – Eu sigo com a Teologia Negra. Esta discussão de que religião e política são distintas e devem ser pensadas distintamente é demasiado ocidental, faz parte do pensamento da demarcação do que é a diferença no pensamento grego. A ilusão da racionalidade iluminista. No pensamento africano, esta não é uma questão. A vida é um todo, a religião é a vida, e a política é a vida também, porque coletiva e plural. O debate de que religião e política não se deve misturar é um falso debate. Naturalmente isso já está misturado. É muito mais importante a honestidade de se reconhecer a religião que se escolheu, à qual pertence, e saber que ela não pode interferir em um contexto em que ela não deve ter privilégios ou soberania, porque ela integra uma pluralidade, da qual ela faz parte em pé de igualdade.
O que não se deve misturar é a política e os interesses do meu credo, da minha igreja, da minha paróquia, do meu rebanho selecionado. Se minha religiosidade não contempla a compreensão de coletividade, se eu não sei agir politicamente com a diversidade religiosa como eu gostaria que a minha fosse respeitada e considerada, a mistura da minha religião com a política que exerço ou promovo será trágica e desumana, certamente.
Não vejo condições de eu pensar politicamente sem ser orientado pelo que creio, inclusive para eu reconhecer quando o que estou decidindo não está sendo pensado socialmente, mas sobretudo porque quero que minha confissão de fé prevaleça. Para mim, padres e pastores devem trazer a vida para dentro de seus sermões, devem dizer por que uma proposta é interessante politicamente, devem conhecer as necessidades de sua comunidade e lutar por elas, devem denunciar as violências do estado. É importante para a comunidade que eles façam isso.
Mas se, enquanto evangélico, eu transformo minha gestão num ministério da minha igreja, numa cruzada pela soberania do meu credo nas instituições na qual tenho influência (universidade, escola, hospital etc.), eu sou apenas um desonesto religioso. Se eu vou acertando os meus interesses pessoais, de influência e poder, usando minha comunidade como força de valor para fazer o que quero, inclusive à revelia de minha própria comunidade, é apenas mau-caratismo.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para se compreender o papel da religião no mundo pós-moderno?
Ronilso Pacheco – Acredito que ainda há muito por dizer sobre “mundo pós-moderno”, com sentidos diversos. De qualquer maneira, assimilando a compreensão clássica de “mundo pós-moderno” descrita por Lyotard, eu diria ao menos três desafios:
(a) retirar a religião da perspectiva da “fluidez”, do individualismo espiritualista privado. Traumas da modernidade empurraram uma tentativa de compreensão da religião como algo restrito à individualidade, individualista, abstrato e desprovido de potência para participação e engajamento na esfera pública. Mas a religião também é isto e reconhecer isto é o melhor para evitar que alguns se aproveitem disso para manipulação e domínio;
(b) entender o lugar da religião no imediatismo de um mundo profundamente conectado, que aproxima na mesma luta, e na mesma jornada, a espiritualidade indígena no Norte com os povos originários lutando pela terra e as mulheres pentecostais do Movimento dos Trabalhadores sem Teto - MTST na luta por moradia na cidade; e
(c) ultrapassar os limites do debate sobre a verdade e a pós-verdade. Disputar a verdade, não mais universal, hegemônica e dominadora pertencente a um grupo específico ou a alguém, e nem mais como algo apenas subjetivo, uma hermenêutica solitária e sem alteridade. Disputar a verdade enquanto incidência sobre realidades, e, neste sentido, o que ela contribui para vida e para morte, afirmação-negação, reconhecimento-desprezo.
IHU On-Line – Você é um jovem negro que saiu da periferia, tornou-se teólogo e segue seus estudos nos Estados Unidos. Gostaria que recuperasse brevemente a sua jornada e pontuasse como sua história impacta as suas reflexões.
Ronilso Pacheco – Minha primeira tentativa em um vestibular, sem sucesso, foi na Universidade Federal Fluminense em 1996, vindo de uma escola pública em São Gonçalo. A segunda, o ingresso no curso de História da extinta Universidade Gama Filho, em 1998, que foi interrompido no segundo semestre pela dificuldade da logística São Gonçalo-Piedade e os gastos com remédios para as necessidades de saúde de minha mãe. A terceira, em 2005, numa nova tentativa de retorno a Gama Filho, interrompida por mais uma impossibilidade de continuar pagando.
A PUC-Rio foi fruto de uma insistência. Superados os desafios da distância São Gonçalo-Gávea e a dupla jornada de estudo e trabalho, consegui levar o curso adiante e fazer uma graduação bem-sucedida. Terminei a graduação com um artigo publicado na revista de teologia que é considerada uma das mais importantes do mundo, a “Concilium” (traduzida para cinco idiomas), com apoio da Maria Clara Bingemer, teóloga que foi mais que professora na minha trajetória acadêmica, e um livro publicado, o Ocupar, Resistir, Subverter.
Na PUC-Rio, fiz parte da fundação do Coletivo Nuvem Negra, importante coletivo de estudantes negros na universidade, que se tornou referência para grande parte dos alunos negros e de periferia que ingressavam na PUC. Minha história de estranheza e desconforto com o universo branco e elitizado da PUC se somou, e ajudou, a tantos outros alunos e alunas. Nossas reuniões passaram a ser uma referência de encontro na Universidade e principal apoio dos estudantes e das estudantes que sofriam racismo, preconceito ou alguma situação constrangedora, visivelmente racista, na universidade. O Nuvem Negra foi decisivo no contexto de denúncia da atitude racista de estudantes de Direito da PUC contra estudantes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, durante os jogos universitários em Junho de 2018. Também se destaca a campanha do Nuvem Negra que abordava a falta de professores negros na PUC.
Minha formatura foi em dezembro de 2017, tendo a oportunidade de me destacar no meu campo de estudo e pesquisa, com participações em conferências em Harvard e em Princeton, nos Estados Unidos, e hoje aprovado para o mestrado em Teologia no Union Theological Seminary, que pertence à Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Esta é uma história que parece ainda estar no começo. E eu sei que ela também é um farol para muitas e muitos, irmãs negras e irmãos negros especialmente, para acreditarem que vale ir adiante. Sabemos que não chegaremos sozinhas e sozinhos, mas chegaremos. O racismo, a desigualdade e a precariedade já pararam muitos de nós, vão continuar parando, mas cada vez menos. Acho que foi isso comigo.