Por: João Vitor Santos | 26 Novembro 2018
Um dos desafios para a regulação do WhatsApp é a proteção que o aplicativo gera para a troca de mensagens, permitindo o acesso apenas do emissor e de quem recebe. Numa resposta rápida, poderia se afirmar que basta quebrar esta proteção, a chamada criptografia. Mas isso seria um atentado à privacidade e à liberdade de expressão, valores que, na opinião do jurista Ricardo Campos, jamais podem ser atacados. “Creio que o caminho seja desenvolver um design de regulação em que se consiga obter informações do aplicativo sobre as atividades de compartilhamento”, aponta. Ou seja, o gestor do aplicativo teria de informar o fluxo das mensagens, mas não o conteúdo das mesmas. “O gestor do aplicativo sabe muito bem quem está compartilhando mais mensagens, se é humano ou se não é humano. Enquanto isso não se tornar transparente para os órgãos estatais, o WhatsApp vai continuar sendo uma caixa-preta”, acrescenta.
Além disso, Campos lembra, na entrevista concedida por WhatsApp à IHU On-Line, que a própria Constituição vincula a liberdade de expressão e privacidade à vedação ao anonimato. “Você pode se manifestar, desde que não se esconda atrás do anonimato. O grande desafio dos tribunais, se realmente eles se debruçarem sobre isso, seria pensar em como adaptar essa prescrição normativa à nova realidade”, observa.
Para o jurista, tal desafio está intimamente ligado à importância de compreender as transformações que estamos vivendo. Campos destaca que é preciso “compreender que vivemos uma passagem de uma sociedade que até então era centrada em organizações, em que o conhecimento social era produzido por organizações”, como as empresas de comunicação, para uma sociedade que opera em redes e é nesse campo que é gerada e posta em circulação a informação. “O grande desafio seria pensar um novo Direito adequado para uma sociedade em redes. Não podemos manter o mesmo Direito, porque a sociedade mudou”, sintetiza.
Ricardo Campos | Arquivo Pessoal
Ricardo Campos é assistente de docência na cátedra de Direito Público e Teoria do Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main, Alemanha. É mestre em Teoria do Direito pela Goethe Universität, Frankfurt am Main. Cursou graduação em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, na Goethe Universität Frankfurt am Main e na Universität Passau.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A campanha eleitoral de 2018 foi atravessada pelas fake news. Como analisa esse processo? E, passado o pleito, qual o impacto dessas notícias falsas no resultado da eleição?
Ricardo Campos – É difícil dizer se essa nova expressão da esfera pública atravessada pelas fake news foi decisiva. Talvez, no Brasil, pela polarização da campanha e também pelo resultado, que não foi tão apertado, possa ter sido. Para afirmar se realmente foi determinante, só mesmo através de uma pesquisa de campo com mais dados, o que, até agora, ninguém conseguiu desenvolver.
IHU On-Line – Quando se envia uma mensagem através do WhatsApp, o usuário recebe um aviso de que a mensagem está segura, pois é “criptografada de ponta a ponta”. Ou seja, apenas quem enviou e quem recebeu podem acessar o conteúdo da conversa. Do ponto de vista legal, como se dá e quais os limites dessa proteção do conteúdo da conversa?
Ricardo Campos – Temos na Constituição Federal, no artigo V, inciso IV, em que o legislador originário tomou como postura ligar a liberdade de expressão e a manifestação livre do pensamento à vedação do anonimato. Ou seja, você pode se manifestar, segundo esse artigo e esse inciso, desde que não se esconda atrás do anonimato. O grande desafio dos tribunais, se realmente eles se debruçarem sobre isso, seria pensar em como adaptar essa prescrição normativa à nova realidade do WhatsApp, em que há essa criptografia ponta a ponta. Um dos desafios centrais, e isso vai chegar em algum momento, será lidar com esse problema da vedação do anonimato e da criptografia. Mas, até então, não há resposta sobre isso.
IHU On-Line – Depois de inúmeras denúncias de disseminação de notícias falsas, especialmente via WhatsApp, os tribunais eleitorais começaram a agir. Quais os limites dessas ações na contenção de circulação de informações falsas?
Ricardo Campos – O que me pareceu, acompanhando aqui da Alemanha todo esse processo, é que houve uma certa desorientação dos tribunais. Estavam acostumados a lidar com notícias falsas em meios tradicionais de comunicação de massa, como jornais e televisão, e, de repente, eles acabaram sendo sobrecarregados frente a essa nova realidade. Por exemplo, os tribunais podem retirar os conteúdos do Facebook ou de algum site através de medidas judiciais, segundo o Marco Civil[1], mas isso com relação ao WhatsApp é muito difícil. Como se retira conteúdo do WhatsApp se a forma de comunicação dele é através de criptografia de ponta a ponta? O desafio foi muito grande e essa regulação sobre o WhatsApp acabou sendo pouco efetiva pelas ações dos tribunais eleitorais.
IHU On-Line – O WhatsApp foi a principal ferramenta para disseminação de notícias falsas nessas eleições. Quais os desafios para construir dispositivos de regulação, mas sem que firam a privacidade e o direito de liberdade na troca de mensagens?
Ricardo Campos – Esse ponto da privacidade e do direito à liberdade de expressão dentro de um meio de comunicação em que o anonimato é praticamente a regra é algo muito importante. Estar atento ao que diz respeito à regulação não seria atingir a liberdade de expressão dentro do WhatsApp, proibindo a criptografia. Creio que o caminho seja desenvolver um design de regulação em que se consiga obter informações do aplicativo sobre as atividades de compartilhamento.
E, com isso, também seria uma forma de agir sobre a questão dos bots, os robôs, estabelecendo uma certa transparência frente à plataforma do WhatsApp com relação à frequência de atividades. O gestor do aplicativo sabe muito bem quem está compartilhando mais mensagens, se é humano ou se não é humano. Enquanto isso não se tornar transparente para os órgãos estatais, o WhatsApp vai continuar sendo uma caixa-preta.
IHU On-Line – Esse controle e regulação de bots diz respeito apenas à campanha eleitoral ou também já é aplicado em ações do chamado “marketing ativo”?
Ricardo Campos – O marketing ativo também pode ser barrado em outras questões como o abuso de mercado e a concorrência desleal. É o caso, por exemplo, da utilização do WhatsApp, através do anonimato, como forma de compartilhar mensagem para atacar a imagem de uma empresa com a qual se está em concorrência. Teremos que criar vários mecanismos de transparência dentro do aplicativo para inviabilizar esse tipo de concorrência desleal, tocando assim também, nesse ponto, a questão eleitoral.
Uma regulamentação, volto a afirmar, teria que ser desenvolvida não no sentido de restringir a liberdade de expressão, mas de estabelecer mecanismos de transparência perante essas plataformas digitais para que os órgãos públicos, tribunais e outros órgãos de regulação que venham a ser criados tenham, de certa forma, um acesso às atividades que extrapolam o normal dessas plataformas digitais.
IHU On-Line – O quanto o Brasil avançou na regulação das campanhas eleitorais na internet e nas redes sociais e o quanto ainda precisa avançar?
Ricardo Campos – O único país que tem uma regulamentação para o caso concreto das redes sociais é a Alemanha. A Lei entrou em vigor em setembro de 2017 e, no início, houve uma efervescência contra a lei na esfera pública pelos professores e por experts. Aos poucos, porém, com a experiência que o país foi adquirindo com a lei, e aprendendo a lidar com essa nova esfera pública que se articula não mais através de jornais e televisão, mas sim das redes sociais, essa resistência foi diminuindo. Assim, a lei acabou se mostrando, apesar de seu forte embate frente às plataformas digitais, uma boa legislação.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios de hoje no combate a notícias falsas? Que experiências realizadas pelo mundo podem inspirar iniciativas no Brasil?
Ricardo Campos – Sobre as regulamentações no caso da internet no Brasil, eu apresentei no Ministério da Ciência e Tecnologia, no dia 5 de novembro[2], um projeto de regulamentação de redes sociais baseado na lei alemã, só que modificada, para não ir de encontro à liberdade de expressão. Eu e um amigo, professor da Universidade de São Paulo – USP, Juliano Maranhão[3], adaptamos alguns institutos da lei alemã ao caso brasileiro.
Nossa proposta legislativa em discussão no Ministério, com a presença de ministros do Tribunal Superior Eleitoral – TSE e o próprio Gilberto Kassab[4], ministro da Ciência e Tecnologia, além de outros especialistas da área, foi muito bem vista, pois procuramos justamente criar mecanismos de transparência de dever de informação dessas plataformas digitais para facilitar até a decisão judicial posterior, caso algum juiz tenha que intervir, ou mesmo futuras regulamentações.
A lei é pública e está num livro que lancei chamado Fake News e Regulação (Revista dos Tribunais, 2018).
IHU On-Line – O quanto a chamada esfera pública digital tem atualmente imposto suas lógicas à esfera pública não digital?
Ricardo Campos – A pergunta que tem que ser feita é: como devemos proceder frente a essa transformação? É preciso, primeiramente, analisar a que tipo de transformação fomos expostos. E isso demonstra, acima de tudo, por que não temos conseguido observar que tipo de transformação estamos vivendo. Isso acaba gerando uma desorientação quanto às possibilidades de regulação nesse campo, sempre levando em conta a necessidade de não ferir a liberdade de expressão.
Para mim, a principal transformação e a principal análise que melhor consegue observar essa transformação é compreender que vivemos uma passagem de uma sociedade que até então era centrada em organizações, em que o conhecimento social era produzido por organizações. No caso da esfera pública, especificamente, são organizações televisivas, organizações jornalísticas com redação, onde, de alguma forma, existia um certo ethos profissional para fazer uma matéria.
E nessa sociedade das organizações tínhamos um direito de resposta muito mais eficaz. Temos, no Brasil, o caso de Brizola com relação ao Jornal Nacional, que é mais emblemático[5]. Então, se fosse divulgada uma notícia não verdadeira se entrava na Justiça e se tinha, de certa forma, um direito de resposta que era muito forte, porque todos eram levados a assistir ou ler aquele jornal. Agora, com a passagem da sociedade das organizações para as redes, esse direito de resposta fica muito frágil. Como vai se conceder a resposta a um ferimento de personalidade de um candidato nas redes sociais? É muito mais difícil, porque não tem como obrigar todo mundo a ler aquele post ou aquela mensagem.
Então, seria preciso identificar que tipo de transformação vivemos. Tínhamos toda uma regulamentação jurídica centrada nessa sociedade das organizações. Por exemplo, o tempo de televisão em propaganda eleitoral, a formação de coalizão para acessar esse tempo maior de televisão. Agora, o grande desafio seria pensar um novo Direito adequado para uma sociedade em redes. Não podemos manter o mesmo Direito, porque a sociedade mudou. A forma de geração de conhecimento da atual esfera pública não é mais centrada em organizações. Hoje, um perfil do Facebook pode ter muito mais impacto na esfera pública do que um jornalista de carreira de um jornal bem-conceituado.
Como lidar com isso? Esse é o grande desafio. E este foi o ponto central da nossa proposta legislativa: procurar estabelecer um novo direito para uma sociedade que não é mais centrada em organizações, mas sim em redes.
Notas:
[1] Marco Civil da Internet: é uma iniciativa legislativa, surgida no final de 2009, para regular o uso da internet no Brasil, por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres de quem usa a rede, e da determinação de diretrizes para a atuação do Estado. Confira o amplo material veiculado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU sobre o tema: O que está em jogo com o Marco Civil da Internet, artigo de Carmen Carvalho publicado em 14-11-2013; Marco Civil da Internet: “PL coloca o Brasil na vanguarda da regulação da rede”. Entrevista especial com Carlos Affonso Pereira de Souza, publicada em 20-9-2013; Marco Civil da Internet: projeto trai os princípios das consultas públicas. Entrevista especial com Marcelo Branco, publicada em 13-11-2012; e Por um Marco Civil da Internet. Entrevista especial com Marcel Leonardi, publicada em 15-12-2009. (Nota da IHU On-Line).
[2] Detalhes sobre o encontro podem ser obtidos através deste link. (Nota da IHU On-Line).
[3] Juliano Maranhão: professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP (2007). Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt e professor convidado da Universidade de Frankfurt. Possui bacharelado, doutorado e livre-docência em Direito pela USP (1998, 2004 e 2011). Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Teoria do Direito, Lógica Deôntica, Teoria da Argumentação, Inteligência Artificial e Direito Digital. (Nota da IHU On-Line).
[4] Gilberto Kassab: economista, engenheiro civil, empresário, corretor de imóveis e político brasileiro, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações na gestão do presidente Michel Temer. Foi prefeito da cidade de São Paulo por duas vezes entre 2006 e 2012. (Nota da IHU On-Line)
[5] Em 1994, o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, ganhou na Justiça direito de resposta de três minutos no “Jornal Nacional”, da TV Globo, no qual havia sido duramente atacado e chamado de senil. A leitura do texto de Brizola por Cid Moreira no telejornal de maior audiência do país representou um momento singular de garantia dos direitos individuais contra o poder dos meios de comunicação privados e da TV Globo em particular. O vídeo, com o texto de Brizola lido por Cid Moreira, está disponível aqui. (Nota da IHU On-Line).
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A “caixa-preta” do WhatsApp. "Um novo direito para uma sociedade que não é mais centrada em organizações, mas em redes". Entrevista especial com Ricardo Campos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU