Por: Patricia Fachin | 13 Junho 2017
Entre as principais consequências políticas do anúncio de deserção dos EUA do Acordo de Paris, destacam-se a “reaproximação entre as principais nações europeias, que antes de Trump se inclinavam a fazer uma espécie de ‘jogo duplo’, dado o imenso poder de sedução que era exercido por Washington”, e uma “renovação da ponte já existente entre a União Europeia e a China”, pontua José Eli da Veiga na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. O aspecto negativo, contudo, é que “vários países também poderão se sentir mais livres a descumprir suas próprias metas estimulados pela maior potência mundial”.
Ao comentar as justificativas apresentadas pelo presidente Trump, Eli da Veiga frisa que “não faz o mínimo sentido discutir o que poderia ser algum ‘tipo de meta condizente para os EUA’”, e lembra que “o mais irônico é que o Acordo de Paris foi o primeiro, após 21 Conferências das Partes - COPs, que não resultou em qualquer ‘imposição’”. Na avaliação dele, “a performance no jardim rosa da Casa Branca foi ao mesmo tempo uma deserção política, uma grande bravata retórica e um tremendo ‘erro’, no sentido jurídico”.
Eli da Veiga | Foto: Unicamp
José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo – IEE-USP. Por trinta anos (1983-2012) lecionou no Departamento de Economia da FEA-USP, tendo chegado ao nível de Titular em 1996. Tem 25 livros publicados, entre os quais Para entender o desenvolvimento sustentável (2015) e A desgovernança mundial da sustentabilidade (2013), ambos pela Editora 34.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a posição do governo dos EUA em sair do Acordo de Paris e o argumento do presidente Trump de que “esse acordo é menos sobre o clima e mais sobre outros países ganharem vantagens sobre os Estados Unidos”? O que motivou, na sua avaliação, a saída dos EUA do Acordo?
José Eli da Veiga - São três perguntas, que prefiro responder na ordem inversa: a) o que motivou o anúncio dessa decisão, b) como avaliar os argumentos usados por Trump e c) como avaliar a posição do governo americano. Mas já destacando que a performance no jardim rosa da Casa Branca foi ao mesmo tempo uma deserção política, uma grande bravata retórica e um tremendo “erro”, no sentido jurídico.
Decisões como essa dificilmente têm um único motivo. E, neste caso, dois parecem ter preponderado: Primeiro, “sair do Acordo de Paris” foi um dos importantes compromissos assumidos na campanha eleitoral, como resultado de uma perfeita combinação entre a convicção “negacionista” sobre o clima e a visão (bem mais antiga) do próprio Trump sobre o papel de “trouxa” que os Estados Unidos estariam desempenhando no cenário da geopolítica global. Segundo, haver, tanto na campanha, quanto agora no governo, uma ala que é radicalmente contrária ao multilateralismo em geral, e em especial às muitas instâncias de governança global que foram sendo construídas nas últimas décadas.
O mais interessante nos argumentos usados por Trump foi ele ter tomado extremo cuidado para sequer mencionar a existência do aquecimento global. Evitou, portanto, reiterar sua crença negacionista, para se concentrar numa retórica que coloca os Estados Unidos como vítima de uma espécie de complô que teria sido organizado por outras potências, e que, no caso do regime climático, estaria sendo liderado por uma aliança tácita entre União Europeia, China e Índia.
Mais difícil é avaliar a posição do governo americano em “sair do Acordo de Paris”, como se tem dito. Principalmente porque não há como “sair” desse Acordo antes de 2020. O texto desse tratado foi cuidadosamente redigido de forma a evitar que o Senado americano o contestasse ainda no governo Obama. Por isso, não há como dele “sair”, por mais que isso esteja sendo repetido pelos interessados. A alternativa — que não prevaleceu nos longos e duros embates de abril e maio com a ala governamental contrária à posição que acabou por ser anunciada na quinta-feira 1º de junho — teria sido sair da Convenção do Clima, adotada na Rio-92 e, simultaneamente, de todas as suas decisões decorrentes. Além de não ser preciso esperar, seria uma decisão que respeitaria o direito internacional. O advogado francês Yann Aguila, que participou ativamente da redação do Acordo de Paris, diz que a responsabilidade jurídica do governo americano poderá ser colocada em questão na Corte Internacional de Justiça - CJI. E o jornalista americano Mark Hertsgaard, especialista em meio ambiente no semanário The Nation, chega a acusar Trump de “crime contra a humanidade”.
IHU On-Line - O presidente Trump também disse que as imposições postas aos EUA são maiores do que as de outros países, como a China, por exemplo. Como o senhor avalia essa declaração? Nesse sentido, como os países membros da COP se posicionam em relação à China e suas metas de redução das emissões de gás carbônico?
José Eli da Veiga - O mais irônico é que o Acordo de Paris foi o primeiro, após 21 Conferências das Partes - COPs, que não resultou em qualquer “imposição”. Depois de terem insistido por 23 anos numa abordagem de tipo “orquestrada”, os principais negociadores dos sucedâneos da convenção climática acabaram por se dar conta de que seria necessário transitar para uma abordagem mais “experimentalista”. Por isso tanta ênfase foi dada à orientação de que as metas nacionais de redução das emissões de gases de efeito estufa devessem constituir compromissos voluntários.
A meta dos EUA — de redução de pouco mais de um quarto em vinte anos (2005-2025) — não foi nada mais que a oferta que o governo Obama fez às demais 193 nações que no final de 2015 negociaram o Acordo de Paris. O mesmo ocorreu, claro, com a China e a Índia, que durante muito tempo não quiseram sequer ter metas. Além disso, dizer que a China não está se esforçando o quanto deveria só pode ser uma politicagem que, além de satisfazer a maior parte dos que votaram em Trump, também agrada, claro, aos lobbies que compõem a grande ala isolacionista do governo federal.
IHU On-Line - O presidente Trump sugeriu refazer as negociações do Acordo de Paris de modo que elas fossem “justas” aos americanos. Que tipo de meta seria condizente para os EUA?
José Eli da Veiga - Primeiro é preciso que fique bem claro que está absolutamente fora de cogitação essa tirada demagógica de “renegociar” o Acordo de Paris. A própria Rússia — que ainda nem o ratificou — está reticente em apoiar algum tipo de reabertura de negociações, o que seria, de resto, não apenas ilegítimo, mas inteiramente ilegal. E em segundo lugar, não faz o mínimo sentido discutir o que poderia ser algum “tipo de meta condizente para os EUA”. De um lado, porque o governo federal pretende dar rédeas soltas às velhas energias fósseis, sem qualquer tipo de restrição. De outro, porque muitos entes subnacionais (estados e municípios) já declararam, junto com amplas coalizões empresariais, que vão continuar a fazer de conta que não houve qualquer tipo de deserção do Acordo de Paris.
IHU On-Line - O anúncio do presidente Trump foi, em geral, recebido com muitas críticas. Como o senhor avalia a repercussão e, de modo geral, as críticas feitas à decisão?
José Eli da Veiga - As repercussões não poderiam ter sido mais positivas para um processo de descarbonização que vá até além do que prevê o Acordo de Paris de 2015. Devem ser destacadas ao menos uma meia dúzia:
Primeiro, a atitude do novo presidente da França, que teve uma reação praticamente imediata, inédita em sua forma, e de altíssimo alcance político. Pois, além de criar um dos melhores slogans para os movimentos da sociedade civil — “É o planeta que precisa voltar a ser grande!” —, convidou todos os que são a favor da descarbonização para se mudarem para a França. Na hora pareceu uma frase de efeito, mas o “Eliseu”, equivalente na França à Casa Branca, lançou no dia 8 de junho a plataforma Makeourplanetgreatagain.fr voltada a atrair pesquisadores, empreendedores, militantes de ONGs e mesmo estudantes que queiram se instalar na França para lá desenvolver projetos sobre o clima. (O risco é que haja tanta gente interessada que Macron precise pedir socorro à União Europeia).
Em segundo lugar, a deserção dos EUA também reforçou a reaproximação entre as principais nações europeias, que antes de Trump se inclinavam a fazer uma espécie de “jogo duplo”, dado o imenso poder de sedução que era exercido por Washington.
Em terceiro, ainda ajudou na renovação da ponte já existente entre a União Europeia e a China.
Em quarto, gerou iniciativas que antes nem poderiam ser cogitadas, como, por exemplo, o gesto da fundação criada por Michael Bloomberg de doar ao secretariado da Convenção do Clima os 15 milhões de dólares que lhe serão ilegalmente negados pelo governo Trump. E só tende a se ampliar a já imensa coalizão de grandes municípios na qual ele milita: a C40, no momento dirigida pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo.
Em quinto, e na mesma toada, Jerry Brown, o governador da sexta economia do mundo, a Califórnia (que embarcava para Pequim justamente no momento em que Trump anunciava a deserção dos EUA), vai certamente conseguir mais adesões à sua recente iniciativa intitulada “Under 2” (menos de 2 graus), que já conta com o Canadá, o México e a Suécia. Os signatários dessa iniciativa se engajam a reduzir suas emissões de 80% a 95% de agora até 2050.
Por último, mas não menos importante: as repercussões não param por aí, pois é impressionante como noticiário dos dez dias posteriores à deserção esteve repleto de novidades favoráveis ao avanço da descarbonização.
IHU On-Line - Quais são as implicações da saída dos EUA do Acordo de Paris para as negociações climáticas e a COP a ser realizada na Alemanha neste ano?
José Eli da Veiga - Neste momento é impossível fazer qualquer previsão desse tipo, pois não se sabe se os Estados Unidos continuarão no jogo, enviando uma delegação, ou se radicalizarão o erro de desertar com um boicote à COP-23, em Bonn.
IHU On-Line - Quais são os efeitos globais da saída dos EUA do Acordo de Paris?
José Eli da Veiga - Os efeitos parecem ser favoráveis principalmente à maior aproximação entre a União Europeia e alguns países emergentes, principalmente a China. Há uma séria dúvida sobre o que fará a Rússia, que ainda nem ratificou esse Acordo. Por outro lado, vários países também poderão se sentir mais livres a descumprir suas próprias metas estimulados pela maior potência mundial. De qualquer forma, não parece exagerada a avaliação feita ainda à quente em editorial do jornal Le Monde, no dia seguinte à deserção: “Essa regressão infantil já é em si um acontecimento. Talvez uma dessas evoluções que indicam que o século XXI não será ‘americano’ como o foi o XX”.
IHU On-Line - A China tem investido em energias renováveis, mas também ampliou seus investimentos em energia nuclear. Como o país tem se posicionado em relação ao enfrentamento das mudanças climáticas?
José Eli da Veiga - Antes de tudo é preciso deixar bem claro que a energia nuclear praticamente não contribui para a emissão de gases de efeito estufa, podendo ajudar muito no processo de transição de uma matriz dominada pelas fósseis para uma matriz dominada pelas renováveis. Os que se posicionam contra a energia nuclear o fazem por outras razões, não porque ela seria contrária à descarbonização. Fora isso, a China só tem surpreendido muito positivamente em sua determinação de acelerar o processo de transição energética. Quem pensa ou diz o contrário com certeza está muito mal informado.
IHU On-Line - No ano passado o senhor nos concedeu uma entrevista na qual sugeriu que as negociações climáticas fossem realizadas pelo G-20 e não por todos os países membros da COP. Ainda mantém a mesma posição? Como a demanda ou decisão dos EUA poderia ser tratada no G-20?
José Eli da Veiga - Desculpe, mas a pergunta contém um engano imperdoável. O que eu disse na referida entrevista é que um bom acordo do G-20 facilitaria muitíssimo a obtenção de um ótimo tratado no âmbito das negociações multilaterais que obviamente continuarão a ser realizadas dentro do regime das Nações Unidas, regulado pela Convenção Quadro conhecida pela sigla UNFCCC. De certa forma isso até pode ter ocorrido, mesmo que informalmente. O Acordo de Paris com certeza foi ajudado por discussões anteriores no G-20 que contribuíram para que as nações emergentes saíssem daquela postura que jogava a responsabilidade pelo aquecimento exclusivamente nas costas dos países mais ricos, que primeiro se industrializaram. Mais do que isso, o G-20 vem tentando encontrar estímulos financeiros para grandes investimentos em projetos de descarbonização, justamente um dos aspectos mais precários do Acordo de Paris, no qual predominou a linha de fortalecimento de um periclitante fundo verde para financiar projetos de adaptação nos países menos desenvolvidos. Uma coisa não deve excluir a outra, mas é muito mais importante encontrar maneiras de engajar o sistema financeiro privado no processo de descarbonização, coisa que nem de longe entrou no Acordo de Paris. Nem sequer a proibição de subsídios às energias fósseis — uma das bandeiras do FMI — entrou nesse Acordo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
José Eli da Veiga - Sim, mais uma meia dúzia de fatos importantes que merecem a atenção dos leitores:
a) 75% dos eleitores de Trump declaram não ter qualquer tipo de preocupação com a questão climática, enquanto eles são apenas 12% entre os eleitores de Hillary (dados de uma pesquisa de novembro de 2016);
b) os principais grupos de pressão que mais se mobilizaram por essa estranha “saída” do Acordo de Paris foram: The Competitive Enterprise Institute, The Heartland Institute, The Heritage Fondation e o Cato Institute;
c) a ala do governo alinhada a esses grupos é liderada principalmente por uma dobradinha entre o diretor da Agência de Proteção Ambiental, Scott Pruitt, e o já célebre estrategista Steve Bannon, este sempre decisivamente apoiado por vários magnatas, como os irmãos Charles e David Koch ou Robert Mercer e sua filha Rebekah;
d) resolutamente se opuseram à dita “saída” do Acordo de Paris o Secretário de Estado Rex Tillerson, o ministro da energia, Rick Perry, o conselheiro econômico da Casa Branca Gary Cohn, a filha mais velha do presidente, Ivanka, e seu marido, Jared Kushner;
e) a associação das empresas mineradoras de carvão lançou um comunicado logo depois do anúncio da deserção isolacionista manifestando muita preocupação, pois teme perder acesso às inovações tecnológicas de “carvão-limpo” que estão em alta nos mercados internacionais;
f) o setor das energias renováveis nos Estados Unidos já envolve 769 mil empregos, contra no máximo uns 50 mil em minas de carvão.
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Trump, a deserção política, a bravata retórica e um tremendo 'erro' no sentido jurídico. Entrevista especial com José Eli da Veiga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU