Por: Patricia Fachin | 10 Novembro 2016
A eleição de Donald Trump como o novo presidente dos Estados Unidos “foi a maior surpresa eleitoral” do país “desde a famosa virada de Harry Truman sobre Thomas Dewey, em 1948”, diz Idelber Avelar à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Avelar faz uma primeira análise das eleições norte-americanas e frisa que “o perfil do eleitorado de Trump é muito mais complexo e plural do que algumas análises apressadas têm sugerido”. Segundo ele, “o voto da classe trabalhadora branca foi decisivo, claro. Nesse segmento, Hillary perdeu de lavada, tanto entre homens como entre mulheres. Mas para ter um quadro completo, há que se considerar gênero, classe, raça, faixa etária, nível de instrução, renda familiar e um outro fator que foi decisivo e é pouco mencionado nas análises brasileiras que li: a diferença entre cidade e campo”.
Para Avelar, a vitória de Trump pode ser explicada, entre outros fatores, pelo fato de que o novo presidente “mobiliza um ressentimento racializado e de classe, disso não há dúvidas. A perda de bons empregos através dos tratados de livre comércio, em especial o NAFTA, associado aos nomes de Bill e Hillary Cinton, foi decisiva para que estados tradicionalmente democratas, como Michigan e Wisconsin, tenham votado Republicano desta vez. Também foi decisivo o fator do candidato ‘outsider’”.
Contudo, pontua, “não se pode explicar a vitória somente por ele, sem olhar sua adversária. Hillary Clinton tem uma taxa de reprovação altíssima há décadas, nutrida pela percepção de que ela é uma política carreirista que dirá o que for necessário para se eleger. A quantidade de vezes em que Hillary mudou de posição sobre temas polêmicos ao longo dos anos acabou consolidando essa percepção. Ela era contra o casamento gay, deu declarações pesadíssimas contra ele, e passou a ser a favor às vésperas de sua legalização. Era a favor da perfuração no Ártico e passou a ser contra na época das primárias Democratas, de eleitorado mais progressista. Votou a favor da Guerra do Iraque e passou a ser contra quando a guerra se tornou impopular. E assim sucessivamente. Não há tema polêmico para um Democrata acerca do qual Hillary Clinton não tenha mudado de posição nas últimas duas décadas. É bastante difícil eleger para o Executivo alguém que tenha uma taxa de rejeição de 56%. Apenas 11% dos eleitores caracterizam Hillary Clinton como ‘honesta e confiável’”.
Com a eleição do novo presidente, frisa, “pode-se esperar o giro à direita”, “mas deportação em massa, proibição da entrada de muçulmanos e outras promessas feitas durante os últimos meses me parecem muito mais declarações eleitoreiras e manipuladoras do que compromissos reais de governo”. E dispara: "Presidentes têm muito menos poder de determinar a potência de nossas vidas do que às vezes imaginamos e a esquerda deveria parar de falar de resultado eleitoral com a metáfora do apocalipse".
Idelber Avelar | Foto: Revista Fórum
Idelber Avelar é professor de teoria literária e estudos culturais na Tulane University, em New Orleans, EUA, e doutor em Estudos Espanhóis e Latino-Americanos pela Duke University.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O resultado das eleições de fato foi uma surpresa, como a mídia em geral anuncia?
Idelber Avelar - Sim, foi uma surpresa imensa, pelo menos para todos os chamados especialistas, institutos de pesquisa, veículos de comunicação e todo o público que gira em torno a essas instituições. Há indícios de que a própria campanha de Trump trabalhava com o cenário de derrota nos dias que antecediam a eleição. Os únicos que acabaram tendo algum vislumbre do que aconteceria foram, paradoxalmente, uma parcela dos eleitores comuns de Hillary Clinton, que com frequência confidenciavam o seu medo da derrota, e eleitores comuns de Donald Trump, que reiteradamente demonstravam confiança na vitória. De longe, foi a maior surpresa eleitoral dos EUA desde a famosa virada de Harry Truman sobre Thomas Dewey, em 1948, que rendeu uma emblemática foto de uma manchete incorreta do Chicago Daily Tribune.
IHU On-Line - O que a eleição de Trump demonstra, de outro lado, sobre o partido Democrata e sobre as políticas progressistas nos EUA nos últimos anos? Como no Brasil, nos EUA também há uma crítica ao governo progressista dos últimos anos?
Idelber Avelar - Em um momento em que estão todos estupefatos, ainda recolhendo indícios para uma análise mais detalhada, a analogia com um contexto tão diferente como o brasileiro provavelmente não ajuda muito. Na sua pergunta, eu separaria não só o Brasil dos EUA, como também separaria as políticas do governo Obama da candidatura Democrata nestas eleições, porque é isso o que sugerem os números: Obama é uma figura bastante popular hoje nos EUA. Sua taxa de aprovação é alta para padrões americanos em tempos de “paz”, nada menos que 57%. Ou seja, a performance de Hillary não se explica pelas políticas adotadas nos últimos tempos, ou ela teria tido uma votação bem mais alta. A explicação tem que ser buscada na campanha eleitoral e na atuação dos dois candidatos.
IHU On-Line - Qual foi o peso do eleitorado católico na eleição de Trump?
Idelber Avelar - Tradicionalmente, nos EUA, o eleitorado católico é um termômetro, porque é sempre disputado. Ao contrário dos judeus, que votam maciçamente no Partido Democrata, e dos evangélicos, que em sua maioria votam no Partido Republicano, os católicos são considerados o “swing vote” por excelência. Entre os católicos, Trump derrotou Hillary por 52% a 45%. Em 2008 foi o contrário: Obama derrotou McCain 54% a 45% nesse grupo. Em 2000, em que Al Gore venceu no voto popular contra Bush, o Democrata também ganhou entre os católicos, por 50% a 47%. É difícil que um Democrata vença uma eleição sem ganhar entre os católicos. Foi o que aconteceu em 2004 com John Kerry, que perdeu para Bush por 52% a 47% nesse segmento. Esse caráter pendular, de termômetro, que tem o eleitorado católico se explica pelo fato de que ele está dividido de forma mais ou menos equânime entre progressistas (“liberals”), moderados e conservadores, ao contrário dos evangélicos, em que os conservadores são amplamente majoritários, e dos judeus, em que a grande maioria é progressista. Trump não ganhou a eleição porque teve apoio dos católicos. É o contrário. O voto católico em Trump expressou o grau de penetração que ele conseguiu atingir em vários segmentos sociais. É um termômetro mesmo.
IHU On-Line - Ao longo da sua campanha eleitoral, Trump fez muitas críticas aos imigrantes, às minorias, às mulheres, aos muçulmanos, e alguns têm dito que apesar desses discursos, ele recebeu o voto da “classe trabalhadora branca”, que foi ignorada pelas políticas dos últimos anos. Já é possível traçar um perfil do eleitorado que votou em Trump?
Idelber Avelar - O perfil do eleitorado de Trump é muito mais complexo e plural do que algumas análises apressadas têm sugerido. O voto da classe trabalhadora branca foi decisivo, claro. Nesse segmento, Hillary perdeu de lavada, tanto entre homens como entre mulheres. Mas para ter um quadro completo, há que se considerar gênero, classe, raça, faixa etária, nível de instrução, renda familiar e um outro fator que foi decisivo e é pouco mencionado nas análises brasileiras que li: a diferença entre cidade e campo. Não dá para cruzar todos esses fatores nos limites de uma entrevista, mas assinalemos alguns dados chave.
Tradicionalmente, o Partido Democrata vence entre as mulheres e o Partido Republicano vence entre os homens. Isso aconteceu de novo nesta eleição, mas não em proporção muito diferente das anteriores. Na verdade, a candidatura Democrata perdeu mulheres de 2012 para 2016. Obama derrotou Mitt Romney em 2012 por 56% a 42% entre as mulheres, uma diferença de 14 pontos. Em 2016, Hillary venceu Trump por 54% a 42%, uma diferença menor, de 12 pontos. Entre as mulheres brancas sem diploma, Trump venceu Hillary com uma diferença gigantesca, de 28 pontos.
No eleitorado negro, a candidatura Democrata sempre vence com uma margem enorme, próxima aos 90%, fenômeno que se remonta aos anos 1960, quando Lyndon Johnson e John Kennedy levaram a cabo as políticas de direitos civis. Naquele momento, os Democratas deixaram de ser o partido da escravidão, perderam o Sul e ganharam o eleitorado negro. A proporção se repetiu este ano, com Hillary batendo Trump por 88% a 8% entre os negros. Mas o comparecimento às urnas do eleitorado negro foi bem menor do que nas eleições de 2012 e 2008. A margem se manteve, mas o volume de votos diminuiu, e acabou não compensando a enorme vantagem de Trump entre a classe trabalhadora branca. O mesmo aconteceu entre os chamados “millenials”, os jovens de 18 a 25 anos, que se sentiram fortemente representados por Bernie Sanders nas primárias democratas. Hillary venceu entre eles, como seria de se esperar, mas o seu comparecimento às urnas foi baixo. Claramente, muitos dos jovens que saíram para votar em Sanders nas primárias, e que portanto teriam votado nele nas gerais, se recusaram a sair de casa para votar em Hillary.
A cisão entre campo e cidade é outro fator que deve ser considerado. O comparecimento às urnas nas áreas rurais de Wisconsin, por exemplo, foi 30% maior do que o esperado pela própria campanha de Trump. Hillary não fez uma única viagem ao estado, crente de que ele já estava garantido. Ficou visível que o eleitorado rural de lá reagiu com fúria e compareceu em peso às urnas. No geral, pode-se dizer que Hillary perdeu parte do eleitorado negro que votou em Obama, perdeu parte do eleitorado jovem que votou em Bernie Sanders nas primárias, e não conseguiu ampliar o eleitorado feminino que já vota Democrata em todas as eleições de qualquer forma.
IHU On-Line - Que fatores, na sua avaliação, explicam a eleição dele? E em que contexto político, econômico e social Trump é eleito nos EUA?
Idelber Avelar - Trump mobiliza um ressentimento racializado e de classe, disso não há dúvidas. A perda de bons empregos através dos tratados de livre comércio, em especial o NAFTA, associado aos nomes de Bill e Hillary Cinton, foi decisiva para que estados tradicionalmente democratas, como Michigan e Wisconsin, tenham votado Republicano desta vez. Também foi decisivo o fator do candidato “outsider”. A estrutura política norte-americana é tremendamente impopular: os dois partidos e o próprio Congresso Nacional tem índices baixíssimos de aprovação. Sendo um candidato que jamais ocupou cargo público, Trump pôde manipular essa condição para apresentar-se como porta-voz de uma maioria não ouvida.
O jogo com os meios de comunicação de massas também foi decisivo. Trump pautou a campanha do começo ao fim. A cobertura dedicada a ele por jornais e TVs era bem negativa, mas isso não importou. Durante as primárias Republicanas, a cada dia uma declaração escandalosa de Trump sacudia a pauta de notícias da mídia. O resultado é que os concorrentes simplesmente não conseguiam aparecer. A desfaçatez com que ele dizia absurdos sobre mulheres, mexicanos, muçulmanos e imigrantes acabava produzindo um ciclo de notícias que girava em torno de sua figura. A própria campanha de Hillary Clinton era pautada por ele: Hillary é uma política que sempre recorre a propaganda negativa contra seus adversários, mas neste ano ela foi praticamente a isso. O resultado é que se falava de Trump o tempo todo, e seu eleitorado não parecia se importar muito com o fato de que suas declarações eram, segundo o bom senso da convivência democrática bem comportada, realmente absurdas e inaceitáveis.
Mas não se pode explicar a vitória somente por ele, sem olhar sua adversária. Hillary Clinton tem uma taxa de reprovação altíssima há décadas, nutrida pela percepção de que ela é uma política carreirista que dirá o que for necessário para se eleger. A quantidade de vezes em que Hillary mudou de posição sobre temas polêmicos ao longo dos anos acabou consolidando essa percepção. Ela era contra o casamento gay, deu declarações pesadíssimas contra ele, e passou a ser a favor às vésperas de sua legalização. Era a favor da perfuração no Ártico e passou a ser contra na época das primárias Democratas, de eleitorado mais progressista. Votou a favor da Guerra do Iraque e passou a ser contra quando a guerra se tornou impopular. E assim sucessivamente. Não há tema polêmico para um Democrata acerca do qual Hillary Clinton não tenha mudado de posição nas últimas duas décadas. É bastante difícil eleger para o Executivo alguém que tenha uma taxa de rejeição de 56%. Apenas 11% dos eleitores caracterizam Hillary Clinton como “honesta e confiável”.
A explicação é dupla, então: Trump mexeu em sentimentos bem arraigados entre os brancos norte-americanos, mas jamais teria conseguido produzir esse resultado se o candidato Democrata tivesse sido Bernie Sanders.
IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto da eleição dele nos EUA? O que se pode esperar em termos de políticas econômicas e sociais? E qual tende a ser o impacto sobre os imigrantes ilegais que residem nos EUA?
Idelber Avelar - Estará mentindo ou iludida qualquer pessoa que diga que sabe exatamente o que vai acontecer, mas alguns parâmetros devem ser os já esperados. Como em qualquer governo Republicano, haverá iniciativas de cortes de impostos para ricos, desmantelamento de agências reguladoras e diminuição do papel redistributivo do Estado. É possível que haja um endurecimento da política migratória, mas não acredito que se cumpra a promessa de campanha de deportação em massa. Seria gigantesco o custo político e econômico da deportação de 12 milhões de imigrantes indocumentados (prefiro essa palavra a “ilegais”: sempre vale a pena lembrar que nenhum ser humano é ilegal). Muito dependerá também da capacidade da sociedade civil organizada de resistir, não só às iniciativas de exclusão de imigrantes do corpo da pólis, como também ao abandono das políticas de amparo aos pobres.
IHU On-Line - Depois de todas as declarações polêmicas dadas por Trump, o que se pode esperar politicamente de seu governo?
Idelber Avelar - Pode-se esperar o giro à direita descrito na resposta acima, mas deportação em massa, proibição da entrada de muçulmanos e outras promessas feitas durante os últimos meses me parecem muito mais declarações eleitoreiras e manipuladoras do que compromissos reais de governo. Aliás, poucas horas atrás a promessa de proibição da entrada de muçulmanos no país já havia misteriosamente desaparecido do site de Trump. Não digo isso para minimizar os efeitos da vitória dele, ou os perigos que ela representa, mas para matizar um pouco a sensação apocalíptica que se instaurou em algumas comarcas do pensamento e do ativismo progressistas. Às vezes, o exagero também pode ser paralisante. Se estamos ante o apocalipse e o fim de tudo, bem, já não haverá nada que fazer. Prefiro tentar prestar atenção às nuances, inclusive porque isso é essencial para as lutas. Nesse sentido, uma das áreas em que há que se manter atento é a ambiental. Trata-se de uma das áreas em que você poderia dizer que realmente há uma diferença significativa entre Republicanos e Democratas, apesar das muitas conexões destes últimos com a indústria dos combustíveis fósseis. Nesta quarta-feira, já tivemos uma péssima notícia: Trump nomeou um conhecido negacionista climático para conduzir a transição da EPA, a Agência de Proteção ao Meio Ambiente. Os ambientalistas e todos os que se preocupam com o tema do aquecimento global devem se preparar para quatro anos de lutas contra retrocessos bem reais. Obama não foi nenhuma maravilha nessa área, e Hillary teria sido bem pior que Obama, dados os seus laços com a indústria do petróleo e das armas. Mas com Trump temos um sujeito que tuitou que o aquecimento global era um mentira inventada pelos chineses para atrasar a indústria dos EUA.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Idelber Avelar - Presidentes têm muito menos poder de determinar a potência de nossas vidas do que às vezes imaginamos e a esquerda deveria parar de falar de resultado eleitoral com a metáfora do apocalipse.
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Eleição de Trump expressa o ressentimento racializado e de classe nos EUA. Entrevista especial com Idelber Avelar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU