15 Abril 2016
“Pensar a política ambiental e qualquer outro aspecto da vida cidadã exige um repensar profundo do Brasil, entender como é que chegamos à situação que hoje vivemos no país. Portanto, tempo de ‘resetar’, de repensar. Repensar tudo”, afirma o pesquisador.
Imagem: pixabay.com |
Desfiliado do PT ainda no início dos anos 90 “por conta de ações contrárias ao meio ambiente por parte da administração petista de São Bernardo do Campo”, Waldman afirma que o partido “logrou a conquista do pleito eleitoral em São Bernardo com base num autêntico ‘mantra’: a Gestão Democrática e Popular” e fazendo uma “crítica feroz da Lei de Proteção aos Mananciais”, a qual esteve embasada na “defesa dos interesses dos trabalhadores”, criticando o que seria um “‘caráter draconiano da legislação’, impedindo o acesso dos humildes à moradia”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele explica que a situação de pobreza de amplos setores da população da região do ABC e “a ausência de uma política habitacional vitaminou o processo de devastação dos mananciais”, porque essas áreas “passaram a ser reivindicadas para ocupação informal, gerando enorme destruição ambiental, cujos protagonistas mais conhecidos são os loteadores clandestinos”.
Ele explica: “Grupos ou imobiliárias compram as terras na área de mananciais por preços baixos — até porque a atividade é clandestina — e, desrespeitando a legislação, posteriormente as dividem em lotes menores que os propostos pela Lei. Auferem lucros gigantescos, produzindo safra inumerável de milionários. Retenha-se que, como norma, os loteadores não esclarecem aos interessados sobre os obstáculos jurídicos dos terrenos, situados em áreas cuja ocupação deveria acatar normatização específica”.
Waldman ressalta que a problemática abordada em seu livro não é “exclusiva do PT”, porque outros partidos “também estão envolvidos com loteadores clandestinos e esquemas de corrupção nas prefeituras”. O erro do PT, contudo, “que se prontificava como diferente de tudo que existia no mundo da política”, foi ter “mergulhado de cabeça na inconsistência, na geleia de má consciência que é a gestão do Estado”.
Maurício Waldman é graduado em Sociologia, com mestrado em Antropologia e doutorado em Geografia pela Universidade de São Paulo - USP, onde defendeu a tese sobre abastecimento de água na Grande São Paulo. Atuou como Coordenador de Meio Ambiente em São Bernardo do Campo-SP e Chefe da Coleta Seletiva de Lixo na capital paulista.
Nos anos 1990, trabalhou no Centro Ecumênico de Documentação e Informação - CEDI, atuou em movimentos em defesa da Represa Billings no Grande ABC Paulista e participou em diversas entidades ecológicas, dentre as quais a Comissão de Fiscalização do Reator Nuclear do Projeto Aramar e no Comitê de Apoio aos Povos da Floresta de São Paulo.
Waldman foi membro da Coordenação da Campanha Viva a Billings Viva, no início dos anos 90, em defesa dos mananciais da região do ABC na Região Metropolitana de São Paulo e representou o Comitê de Apoio aos Povos da Floresta no Encontro paralelo da ECO-92.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De onde surgiu seu interesse de escrever A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: A Destruição da Represa Billings e das Águas Doces no Berço do Partido dos Trabalhadores?
Capa do livro
Imagem cedida pelo entrevistado
Maurício Waldman – De um texto que surgiu a partir da minha militância ambiental e partidária. Fui militante e membro do PT até 1992, quando rompi com o partido. Naquele ano, por conta de ações contrárias ao meio ambiente por parte da administração petista de São Bernardo do Campo, contra as quais me posicionei, entrei em conflito aberto com a direção local do partido e com os loteadores clandestinos. Ameaçado de morte em várias ocasiões, fui inclusive alvejado na rodovia Anchieta por pistoleiros, ao que tudo indica, a mando de loteadores vinculados ao esquema de ocupação ilegal dos mananciais, muito ativo na região de São Bernardo do Campo e no Grande ABC. Estes fatos ocorreram 24 anos atrás e estão, de um modo ou de outro, consignados no livro.
A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: A Destruição da Represa Billings e das Águas Doces no Berço do Partido dos Trabalhadores é um livro de autoria de um cidadão que somou a militância ambientalista a uma ativa participação no PT. Assim, conhecendo o partido por dentro e tendo acompanhado o cotidiano político do PT, senti-me instigado a avaliar não apenas como a administração petista de São Bernardo do Campo agiu na questão da Represa Billings, dos mananciais e do meio ambiente em geral, como também de que modo este recorte se inseria na malha mais ampla da política e da realidade brasileira. Desta forma, vejo A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: A Destruição da Represa Billings e das Águas Doces no Berço do Partido dos Trabalhadores como obra fundamentada numa experiência real de ativismo político, algo muito diferente de oratórias abstratas e de textos de gabinete.
Embora retrate uma experiência de militância partidária e ambientalista, gostaria de sublinhar que o texto foi primeiramente redigido em 1994 como parte de minha produção acadêmica durante meu mestrado na Universidade de São Paulo - USP. Na ocasião, atendendo a sugestão da Professora Ana Maria Marques Camargo Marangoni, do Departamento de Geografia da USP, elaborei uma análise da relação entre a administração e os vereadores do PT de São Bernardo com grupos mancomunados com o loteamento clandestino e a devastação dos mananciais da Represa Billings, que, como se sabe, é o maior reservatório de água potabilizável da Grande São Paulo. Ao mesmo tempo, este material tinha a preocupação em identificar contradições e vínculos com medidas ilegais adotadas pela administração do PT em São Bernardo do Campo. Deste modo, trata-se de uma pesquisa incorporando fundamentação metodológica, pesquisa documental, bibliografia científica e juridicidade editorial. É um livro demarcado por uma trajetória militante e ao mesmo tempo modelado por proposições e diretrizes acadêmicas. Como, aliás, entendo que uma obra tratando de temáticas como esta tem que ser.
IHU On-Line - Como era sua relação com o PT?
Maurício Waldman - Gostaria de frisar que militava tanto no movimento ambientalista quanto no PT. Colaborei com Chico Mendes, participei da Eco-92, de encontros ambientalistas e de tudo a que tinha direito. Nesta época participei em várias publicações e escrevi muitos textos e artigos, quase sempre na área ambiental. Quando era membro do PT, desempenhei muitas funções na vida partidária e no ativismo político. Isto, desde meados dos anos 1980. Dentre outras participações, fui responsável, por exemplo, pelo coletivo de Ambientalistas do PT em São Paulo, membro da Coordenação Nacional de Ecologistas do PT e Administrador Geral do Diretório Regional do PT do Estado de São Paulo. Também elaborei, juntamente com Luiz Eduardo Cheida (atualmente deputado estadual pelo PMDB do Paraná), o Capítulo de Meio Ambiente da primeira campanha presidencial do Lula em 1989. Tudo isso justificou convite para formar a Coordenadoria do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo no biênio 1991-1992, cidade que, aliás, é o berço icônico do PT.
“O que tem acontecido com os mananciais do Grande ABC, sistematicamente agredidos e dizimados pela incúria do poder público, é uma das mais dantescas agressões ao meio ambiente da história urbana do país” |
IHU On-Line – Quais são as principais interfaces de seu livro?
Maurício Waldman - Na realidade o livro trabalha com várias interfaces, a começar pela da água doce, um assunto mais atual do que nunca. Se pudéssemos condensar toda água doce do globo num litro de água, deste volume, tão só uma gota do líquido seria aquela que escoa através dos cursos d’água da Terra. É desta proporção que a sobrevivência humana depende para seguir adiante. Mesmo assim, este recurso precioso tem sido intensamente dilapidado, principalmente no meio urbano. E no referente às áreas metropolitanas, como na Grande São Paulo e no ABC Paulista, são justamente as regiões de mananciais que têm sido impactadas de modo gritante.
Tecnicamente, manancial corresponde a um conceito que designa áreas destinadas à produção de água, que cobrem em torno da metade da Região Metropolitana de São Paulo. No Grande ABC, agrupamento regional formado por sete cidades, a parcela de território incluída na área dos mananciais varia de um município para outro. Por exemplo, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires estão totalmente inseridos na área de preservação. São Bernardo do Campo possui 70% de seu território em área de proteção aos mananciais. Santo André, quase 60%, ao passo que Mauá e Diadema, aproximadamente 19%. Quanto a São Caetano, o município situa-se inteiramente fora desta área. Entenda-se que devido ao caráter crucial do abastecimento público de água potável, os mananciais foram merecedores de legislação específica, visando proteger os recursos hídricos e garantir que as torneiras continuem a oferecer o líquido para a população.
Trata-se de uma legislação bastante complexa, estabelecendo diferentes critérios de restrições quanto ao uso do solo e cuidados com a água. A lei leva em consideração pressupostos como características climáticas, meteorológicas, pedológicas e botânicas da região dos mananciais e é claro, no caso do ABC, a maior ou menor proximidade com a Represa Billings. Visando o equilíbrio hidrodinâmico do reservatório, a legislação procura conter a blindagem do solo, decorrente da impermeabilização por edificações e pelo asfaltamento. Por esta razão, prevê a preservação da cobertura vegetal e uma urbanização que não encarcere o solo. Daí que propõe pavimentação das ruas com paralelepípedos, permitindo a infiltração das águas pluviais para recarga dos lençóis subterrâneos. Por sinal, é importante esclarecer que a Lei de Proteção aos Mananciais surge numa época em que as mobilizações ambientalistas eram virtualmente nulas. Apenas posteriormente a Represa Billings foi incorporada ao que pode ser denominado como imaginário da natureza. E mais, trata-se de uma lei escrita durante a ditadura militar, enfrentando o rígido tecnicismo que tipificava o regime de exceção.
Mais do que uma lei genérica de preservação da natureza, a legislação dos mananciais é uma normatização com foco na ocupação territorial. Neste sentido, embora os impactos na Billings e na região dos mananciais sejam notoriamente ambientais, o cerne deste debate está assentado nas políticas públicas de ocupação do solo, nos programas de urbanização, de oferta de moradia, e de um modo muito claro, em garantir o fornecimento de água, insumo vital e essencial. Neste último quesito, recordaria que a atual crise hídrica, atingindo em cheio a metrópole paulista, reatualiza radicalmente a questão do gerenciamento ótimo dos reservatórios de água doce da mancha urbana, em particular o da Billings, que configura um patrimônio hidrológico e ambiental reconhecidamente estratégico.
IHU On-Line - Qual é a importância do Sistema Billings? Por que ele é estratégico?
Maurício Waldman - A Billings é uma obra que se impõe por si mesma. O eixo deste sistema é um vasto reservatório de 127 km de extensão e 560 km² de superfície, com margens no Sul da capital e em cinco das sete cidades do Grande ABC. Localizada nos bordos do planalto, à vista da baixada santista e do Atlântico, a Billings armazena o magnífico montante de um bilhão e duzentos milhões de m³ de água potabilizável, um acervo que não tem como ser desprezado na ótica dos interesses hídricos metropolitanos. Neste cenário, o que tem acontecido com os mananciais do Grande ABC, sistematicamente agredidos e dizimados pela incúria do poder público, é uma das mais dantescas agressões ao meio ambiente da história urbana do país, uma verdadeira tragédia, que tem na omissão das autoridades uma das causas centrais, senão a principal.
IHU On-Line - Em seu livro o senhor trata da destruição da Represa Billings. Em que consiste tal destruição e quando ela começou?
Maurício Waldman - Historicamente, é importante recordar que a Represa Billings surge em decorrência das demandas crescentes de água e energia por parte da metrópole paulista. No começo do século passado a cidade de São Paulo se ressentia de crescente carência de energia, ocorrendo quebras do fornecimento e apagões. Foi assim que em 1925, Firmiano Pinto, prefeito em exercício da capital, endossou, praticamente em caráter emergencial, um projeto encomendado pelo governo do Estado à empresa canadense The São Paulo Tramway, Light and Power, ou simplesmente Light, tal como passou a ser conhecida pela imprensa e na voz do povo. O projeto da Light levava em consideração a ausência de quedas d'água significativas, necessárias à construção de hidrelétricas, nos espaços próximos da capital.
Então, a ideia de represar as águas na Serra de Cubatão, gerando energia serra abaixo, na Usina Henry Borden, surgiu como grande trunfo para a solução do problema, cuidadosamente escondido nas mangas de um mágico. Vale lembrar que a autorização governamental para a construção da Represa Billings, assinada pelo Presidente Arthur Bernardes em março de 1925, esclarecia de modo cabal que o uso energético das águas da região não poderia prejudicar o abastecimento da população. Até porque já se antevia que, em futuro próximo, problemas para captar água potável, atendendo a demanda da capital, se exacerbariam. Mas exatamente este ponto é que se tornaria um dos pivôs da destruição dos mananciais.
IHU On-Line - Por quê?
Maurício Waldman - Porque a água do reservatório, que tanto poderia gerar energia elétrica como abastecer a população — utilizações ao menos em tese não excludentes —, tornou-se alvo de uma disputa na qual os interesses relativos à matriz energética e ao abastecimento público de água potável entraram em contradição. Neste conflito, o primado energético soube impor-se e explorar, em seu proveito, uma ideologia do progresso e de resto, combinar as mazelas do desmesurado crescimento urbano da metrópole paulista às suas próprias expectativas. Isto explica o descaso com a preservação dos mananciais. Quando se fala em políticas de usos múltiplos das águas na Região Metropolitana de São Paulo, é preciso levar em conta que os usos da Bacia do Tietê sempre foram direcionados pelo interesse energético predominando sobre os demais, um privilégio que constitui, também, a principal causa da deterioração das águas da região metropolitana.
“Áreas ocupadas irregularmente são frequentemente erodidas pelas chuvas, muito intensas no alto da Serra, onde se situam os mananciais” |
IHU On-Line – Por que o interesse energético predomina sobre os demais e de que modo tal predominância prejudicou os mananciais?
Maurício Waldman - É preciso atentar que para o lobby energético, a qualidade e potabilidade das águas não era um tópico relevante. Desde que houvesse líquido para colocar em movimento as turbinas da Usina Henry Borden, tanto fazia que a água fosse boa para beber ou não. Como certa vez argutamente ponderou o engenheiro e sanitarista Samuel Murgel Branco, infelizmente falecido, a companhia Light, virtual detentora do monopólio energético, não se interessava pela questão do abastecimento, e muito menos, pela despoluição do Tietê e da Billings, uma vez que esgotos, ao passarem por turbinas, geravam eletricidade do mesmo jeito. Desta forma, a Usina Henry Borden — e desculpe a utilização do termo, de largo trânsito entre os especialistas — tornou-se a primeira usina “merdelétrica” do Planeta. Porém este arrazoado, sem dúvida alguma fundamental para o questionamento da destruição dos mananciais, é, no entanto, apenas um num conjunto de fatores.
Gestão dos mananciais
Num plano geral, existe uma ordem de motivações muito concretas que está na raiz da política realmente aplicada na gestão dos mananciais, que aparentando estar mais preocupada em gerar esgotos do que água potável para a população, verdadeiramente constitui o que denomino no meu livro como uma “não-política” de águas doces. Com efeito, a legislação de proteção aos mananciais permite, como disse, a ocupação por assentamentos humanos, pois basicamente o que se tem é uma legislação que busca ofertar em alguma racionalidade ao processo de territorialização do espaço geográfico da Grande São Paulo.
Retenha-se que a lei admite praticamente todos os usos regulares de solo urbano: residencial, industrial, comércio varejista, produção hortifrutigranjeira, atividades institucionais, esportes, lazer, reflorestamento e até mesmo a extração vegetal. Regula também a intensidade e proporção dos lotes para uso residencial, até porque a região dos mananciais não apresenta condições naturais para plena implantação de projetos habitacionais. Tanto assim que áreas ocupadas irregularmente são frequentemente erodidas pelas chuvas, muito intensas no alto da Serra, onde se situam os mananciais. Todas as áreas ocupadas de modo indevido apresentam ravinamentos profundos, que periodicamente engolem casas inteiras e seus habitantes, uma calamidade sempre retratada nos jornais do Grande ABC.
"Todas as áreas ocupadas de modo indevido apresentam ravinamentos profundos, que periodicamente engolem casas inteiras e seus habitantes, uma calamidade sempre retratada nos jornais do Grande ABC". Foto cedida pelo entrevistado
IHU On-Line - Como acontece a ocupação desta região?
Maurício Waldman - Em nível macro, a situação de pobreza de largos setores da população e a ausência de uma política habitacional vitaminou o processo de devastação dos mananciais. As áreas de mananciais passaram a ser reivindicadas para ocupação informal, gerando enorme destruição ambiental, cujos protagonistas mais conhecidos são os loteadores clandestinos. Grupos ou imobiliárias compram as terras na área de mananciais por preços baixos — até porque a atividade é clandestina — e, desrespeitando a legislação, posteriormente as dividem em lotes menores que os propostos pela Lei. Auferem lucros gigantescos, produzindo safra inumerável de milionários. Retenha-se que, como norma, os loteadores não esclarecem aos interessados sobre os obstáculos jurídicos dos terrenos, situados em áreas cuja ocupação deveria acatar normatização específica.
IHU On-Line – E como a população reage a isso ou soluciona esses problemas?
Maurício Waldman - Quanto à infraestrutura urbana, em tese proibida por ferir a legislação, a questão é “solucionada” mediante acordos políticos. Uma vez efetivada não só a venda como a ocupação dos lotes, os loteadores e testas-de-ferro saem em campo em “defesa dos trabalhadores”, auxiliando na formação de comissões e de associações de bairro com a finalidade de reivindicar junto ao poder público toda sorte de infraestrutura e serviços, cujo custo é alto em face da deterioração ambiental e pelas condições geofísicas da região dos mananciais. É neste ponto que as administrações municipais fazem sua parte no serviço sujo, comprometendo ainda mais a preservação das águas e do meio ambiente. E infelizmente, este roteiro foi também rigorosamente acatado pelo PT de São Bernardo.
IHU On-Line - Como avalia a gestão ambiental do PT em São Bernardo do Campo? Quais os pontos positivos e negativos a destacar?
Maurício Waldman - Começando a responder pela última pergunta, simplesmente não há algo positivo a registrar. Quanto à outra questão, deveríamos começar pelo histórico que o partido apresentava claramente já nos anos 1990.
É importante acentuar que o PT logrou a conquista do pleito eleitoral em São Bernardo do Campo com base num autêntico “mantra”: a Gestão Democrática e Popular. Esta plataforma política propunha a adoção de medidas reformistas, reunindo diversos setores sociais para, com base num assim considerado acúmulo de forças, trabalhar uma perspectiva futura — e não imediata — de construção de uma sociedade socialista, entendida, no caso, como socialista democrática. Porém, a discussão pertinente ao tipo de socialismo que realmente nortearia a conduta do partido no poder nunca ficou totalmente esclarecida, advertência que incluiria a nebulosa formulação de um socialismo democrático.
Oscilando entre um modelo social-democrata e construção de uma plataforma política substantivada num acúmulo de forças do “campo popular”, em boa parte esta noção constituía uma solução de compromisso entre setores mais à esquerda do PT e as alas reformistas e conservadoras. Na prática, era uma dentre muitas contradições internas que no seio do PT passaram a se cristalizar desde meados nos anos 1980. Apesar de acirrados debates internos, tais pendências jamais foram efetivamente enfrentadas pelo partido, que seguiu adiante na luta pelo poder político sem conseguir — ou pretender — solucioná-las. E, certamente, tudo isso também se refletia na questão ambiental.
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“O Estado brasileiro é basicamente, como dizia o geógrafo Milton Santos, uma máquina de fabulações, um império da mistificação” |
IHU On-Line - Como este conflito se reproduziu na questão ambiental?
Maurício Waldman - Faz-se necessário lembrar, em nome de uma explanação mais precisa, da presença de variáveis externas a São Bernardo do Campo de relevante influência nos conflitos que irromperam na administração. Dentre estas, a de que o Partido dos Trabalhadores jamais definiu, em toda a sua complexidade, o perfil da questão ambiental na ótica dos interesses populares. A questão ambiental, assim como todas classicamente carimbadas como “alternativas”, sempre causou embaraço interno no partido. Reconhecidamente, a inserção do debate ambiental no discurso partidário sempre foi reticente, enfrentando toda sorte de resistências e quando muito, incorporadas pontualmente nos programas do PT. Entre os motivos, podemos arrolar a primazia dos temas originários do chamado mundo do trabalho, em razão da influência, especialmente num primeiro momento da existência do partido, das acepções marxistas ortodoxas. Posteriormente, esta pendência se cristalizou nos embates com uma crescente maré tecnicista, que praticamente fagocitou a discussão política. Pior ainda, este quadro se agravou com a questão do loteamento clandestino.
Portanto, um aspecto medular foi o ingresso de loteadores clandestinos no PT e a continuidade da carreira partidária de vereadores vinculados a estes esquemas na agremiação. Simultaneamente, estes atores coexistiam no PT com militantes do movimento ecológico, uma situação paradoxal, durante anos seguidos mantida sob tensão potencial, mas só ganhando visibilidade no momento em que o partido foi alçado à administração do município. Dadas estas contradições, não admira que, no frigir da campanha eleitoral, aparte a Plataforma Democrática e Popular defender “um Plano Diretor baseado no crescimento harmônico e ecologicamente equilibrado do município” e apoiar retoricamente “a organização dos Conselhos Populares”, o discurso programático tenha se pautado por promessas de efetivação de infraestrutura urbana para áreas de manancial loteadas pela especulação imobiliária, ocasionando atritos generalizados com o movimento ecológico.
Nestas crispações, a administração destacou-se como crítica feroz da Lei de Proteção aos Mananciais. Sempre argumentando na linha da “defesa dos interesses dos trabalhadores”, criticava-se o que seria um “caráter draconiano da legislação”, impedindo o acesso dos humildes à moradia. O que se segue a isto é o que meu livro explicita: o rompimento do movimento ambientalista com a administração, fato este carregado de turbulência política.
IHU On-Line - Como o senhor observa estes episódios à luz do que hoje acontece com a questão ambiental e a questão política?
Maurício Waldman - Entendo, é claro, que o livro descreve uma problemática que não é de modo algum exclusiva do PT. Além do PT outros partidos também estão envolvidos com loteadores clandestinos e esquemas de corrupção nas prefeituras. Portanto, o problema não é exatamente este. A questão é que o PT se prontificava como diferente de tudo o que existia no mundo da política. Era incorruptível, ideologicamente avançado e politicamente democrático. Insuperavelmente sério, justo e decente. Porém, nada disto aconteceu no berço do PT. E já na primeira administração. Entendo que muito do que se observa hoje reflete num grau ampliado tudo o que A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: A Destruição da Represa Billings e das Águas Doces no Berço do Partido dos Trabalhadores descreve. Daí que existe uma questão importante a se colocar: a de que o caráter matricial da questão ambiental não admite que seja tratada como uma “não-questão”, o que põe em xeque a forma como o Estado brasileiro está estruturado.
O Estado brasileiro é basicamente, como dizia o geógrafo Milton Santos, uma máquina de fabulações, um império da mistificação. Seguramente o que acabou acontecendo com o PT tem a ver com o fato de este partido ter mergulhado de cabeça na inconsistência, na geleia de má consciência que é a gestão do Estado, o que terminou, na minha visão, por liquidar o PT como ator questionador, propositivo e agente de mudanças. Portanto, pensar a política ambiental e qualquer outro aspecto da vida cidadã exige um repensar profundo do Brasil, entender como é que chegamos à situação que hoje vivemos no país. Portanto, tempo de “resetar”, de repensar. Repensar tudo. Essa é a principal mensagem do meu livro: a necessidade de repensar a política, e nesta moldura, repropor a política ambiental. É isso.
Por Patricia Fachin
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O meio ambiente como uma não-questão e a gestão ambiental no ABC paulista. Entrevista especial com Maurício Waldman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU