17 Novembro 2013
Giovanni La Manna, presidente do Centro Astalli, conta como é o trabalho no local que recebe diariamente milhares de refugiados chegados à Itália
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Giovanni La Manna, jesuíta, presidente do Centro Astalli, comenta o trabalho que realiza junto aos milhares de refugiados que chegam diariamente à sede da organização, em Roma, na Itália. “Garantir que eles [os refugiados] cheguem com segurança em nosso país e obtenham proteção não é somente uma obrigação moral que funda suas raízes no respeito aos direitos fundamentais, mas também é uma obrigação legal para a Itália, que se comprometeu em absolvê-los, ao subscrever a Convenção de Genebra”, considera La Manna. Segundo ele, um dos principais trabalhos do Centro Astalli é fornecer uma primeira resposta às necessidades mais imediatas dos refugiados, entretanto, admite que entre as principais dificuldades estão a burocracia e a ineficiência que os refugiados encontram em seu relacionamento com as instituições europeias. Além disso, as dificuldades financeiras são mais um desafio.
“Nesse sentido, não ajuda a redução de financiamento para o terceiro setor, que se tornou cada vez mais importante, especialmente nesse momento de grave crise econômica. Uma crise que, no entanto, golpeou principalmente as faixas mais pobres da população e, entre estes, os refugiados. Testemunhamos sempre mais, de fato, a ocorrência de casos de pessoas que se apresentam novamente em nossos serviços”, pondera.
Apesar de trabalhar diariamente com os refugiados desde 2004, La Manna conta que a experiência é sempre marcante. “Todos os dias, no encontro com os refugiados em dificuldade, experimentamos os limites de nossa humanidade. Acredito que isso nos coloca, sim, em crise, mas, ao mesmo tempo, mantém-nos vivos, irrequietos e estimula a nossa imaginação e inteligência a procurar novos caminhos para responder a tantas necessidades e dificuldades que vivem as pessoas que acolhemos”, ressalta.
Para ele, a visita do Papa Francisco à Lampedusa foi um gesto muito simbólico e importante para tornar pública a questão dos refugiados. “Uma viagem que significou muito para todos nós, que nos recordou que muitas pessoas perdem a vida no mar porque são deixadas sozinhas pela indiferença de muitos. Todos devemos sentir, em nossa consciência, o peso desses mortos: ajudar-nos-ia a viver com os olhos abertos e a consciência acordada”, complementa.
Giovanni La Manna é padre jesuíta e presidente do Centro Astalli, em Roma, e foi quem convidou o Papa Francisco a conhecer o local de acolhimento de refugiados. O Papa Francisco aceitou o convite e foi até o local no dia 10 de setembro de 2013. O Centro Astralli (chama-se assim pois se localiza na via degli Astalli 14/A, no centro de Roma, junto à Chiesa del Gesù, onde está o túmulo de Santo Inácio de Loyola e do Padre Pedro Arrupe) é um centro para a acolhida e o serviço aos que pedem asilo e refúgio a cargo do JRS - Jesuit Refugee Service - Serviço dos Jesuíta para os Refugiados, criado por Pedro Arrupe, Superior Geral da Companhia de Jesus. O Centro Astalli recebeu, em 2012, mais de 21 mil pessoas, principalmente oriundas dos países do Norte da África e do Oriente Médio. La Manna preside o centro de acolhimento desde 2004.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como dimensiona o problema dos refugiados no contexto global atual? É o principal problema humanitário global?
Giovanni La Manna - Os refugiados e os que requerem asilo são pessoas que fogem da guerra, da violência e de perseguições. Garantir que eles cheguem com segurança em nosso país e obtenham proteção não é somente uma obrigação moral que funda suas raízes no respeito aos direitos fundamentais, mas também é uma obrigação legal para a Itália, que se comprometeu em absolvê-los, ao subscrever a Convenção de Genebra. É seguramente um dos principais problemas humanitários, na medida em que, durante anos, a crônica nos leva a contar o número dos mortos em um Mediterrâneo em contínuo luto.
IHU On-Line - O Centro Astalli é um dos principais pontos de referência em termos de acolhimento aos refugiados em todo o mundo. Como é o trabalho com as centenas de pessoas que procuram ajuda nesse lugar?
Giovanni La Manna - O Centro Astalli é a sede italiana do Jesuit Refugee Services - JRS. O trabalho do Centro Astalli responde à própria missão do JRS: acompanhar, servir e defender os refugiados. Os serviços oferecidos são muito variados e procuram responder a diferentes necessidades. A associação gere serviços de primeiro acolhimento (para aqueles que chegaram recentemente à Itália), serviços de segundo acolhimento (para facilitar o acesso ao mercado de trabalho e acompanhar as pessoas em seu percurso de inserção na sociedade italiana) e atividades culturais em colaboração com a Fundação Centro Astalli. O objetivo que orienta a nossa ação é o de fornecer uma primeira resposta às necessidades mais imediatas daqueles que pedem ajuda, mas é igualmente importante acompanhá-los na concretização de uma verdadeira autonomia que possa permitir-lhes se integrar plenamente na sociedade italiana, e contribuir, cada um a sua maneira, para o crescimento de nosso país.
IHU On-Line - Quantos e quais tipos de profissionais trabalham no acolhimento dos refugiados? Quais serviços são prestados?
Giovanni La Manna - Os principais serviços oferecidos são a cantina, quatro centros de acolhimento, um ambulatório médico e o centro Salute per Migranti Forzati - SAMIFO (sigla em italiano para “Saúde para Migrantes Forçados”), o acompanhamento às pessoas vulneráveis, uma escola de italiano, o centro de escuta e de orientação legal e o centro de orientação para procura de trabalho e habitação.
Nos vários serviços trabalham diversos profissionais: operadores sociojurídicos e advogados para a orientação legal, assistentes sociais para os centros de acolhimento, médicos e farmacêuticos para os serviços relacionados à assistência sanitária, psicólogos e psiquiatras para os serviços de acompanhamento às pessoas vulneráveis e às vítimas de tortura, professores para a escola de italiano. Todo o trabalho que desenvolvemos no Centro Astalli não seria possível, sem a sustentação e a disponibilidade de mais de 400 voluntários que, todos os dias, colocam-se a serviço dos que requerem asilo e dos refugiados que acedem às nossas instalações.
IHU On-Line - Quais são as principais dificuldades enfrentadas no dia a dia do Centro Astalli?
Giovanni La Manna - Uma das principais dificuldades que enfrentamos são certamente a burocracia e a ineficiência que os refugiados encontram em seu relacionamento com as instituições. Pense no tempo de espera para a realização dos procedimentos, para a obtenção ou renovação dos documentos, a dificuldade de receber acolhimento imediato nas estruturas propostas. São obstáculos que deixam as pessoas já vulneráveis em um limbo de espera que torna o percurso de integração e de inclusão social sempre mais longo e difícil, além de tornar mais pesado ulteriormente o trabalho dos funcionários e dos voluntários.
Em segundo lugar, muitas vezes, não se é capaz de fazer frente às necessidades de todas as pessoas que se dirigem aos nossos serviços. Nesse sentido, não ajuda a redução de financiamento para o terceiro setor, que se tornou cada vez mais importante, especialmente nesse momento de grave crise econômica. Uma crise que, no entanto, golpeou principalmente as faixas mais pobres da população e, entre estes, os refugiados.
Testemunhamos sempre mais, de fato, a ocorrência de casos de pessoas que se apresentam novamente em nossos serviços. Refugiados que, por algum tempo, tinham atingido um grau suficiente de autonomia e que, com a crise, perdem o trabalho e são obrigados, por exemplo, a voltar a comer em nossa mesa. É o paradoxo deste difícil momento econômico no qual a pobreza e os pedidos de ajuda aumentam, enquanto os recursos são sempre menores. Em 2012, cerca 21 mil refugiados foram recebidos no Centro Astalli em Roma, cujo tempo de permanência nos nossos centros de acolhimento varia de seis meses a um ano.
IHU On-Line - Quais progressos na legislação da Comunidade Europeia são necessários para garantir aos refugiados melhores condições de sobrevivência? Lampedusa acaba sendo a esperança de sobrevivência para milhares de pessoas, mas chegar até a ilha é, em muitos casos, uma viagem mortal. Há uma maneira de resolver esse problema? Qual?
Giovanni La Manna - Na origem da escolha dos migrantes de empreender as perigosas viagens em direção à Europa, estão delicadas situações geopolíticas relacionadas com conflitos, ditaduras, violações dos mais elementares direitos — pensa-se na Síria, na região do Chifre da África (veja o imagem ao lado), na República Democrática do Congo, etc.
É de tudo isso que fogem, e encontrar a morte nesses percursos não pode mais ser definido como uma “questão de emergência”, mas é o fruto de políticas (nacionais e europeias) de gestão do fenômeno migratório que pensam somente em termos de proteção das fronteiras e de contrapor-se à imigração clandestina.
Políticas que não fazem além de alimentarem as redes criminosas envolvidas no tráfico de seres humanos. Porque, enquanto existirem guerras e perseguições, as pessoas continuarão a fugir, utilizando o único modo que têm: pagar os traficantes, esperando chegarem vivas ao seu destino. Por isso, é necessário que os estados europeus garantam canais humanitários que consintam aos migrantes forçados chegarem em segurança à Europa. Isso significa proporcionar-lhes uma via de acesso que não passe através da custódia das suas vidas a criminosos prontos para lucrar com o desespero.
É urgente que a Europa examine seriamente a possibilidade de investir a Agência Frontex (1) da responsabilidade de acompanhar em segurança os migrantes em fuga. É o único modo eficaz para garantir uma verdadeira proteção. Seria também desejável uma reforma séria do regulamento de Dublin (2) que estabelece a competência dos Estados para o exame dos pedidos de asilo. Esse procedimento tornou-se um verdadeiro percurso de obstáculos para os que procuram proteção: famílias separadas, pessoas deixadas sem meio de sustento, atrasos e rebotes que tornam o direito de asilo inexigível.
IHU On-Line - Quando o Senhor começou a trabalhar junto ao Centro Astallli? E como se sente em fazer esse serviço humanitário?
Giovanni La Manna - Sou presidente do Centro Astalli desde 2004. A interação cotidiana com pessoas de diversas procedências e culturas traz consigo uma carga de riqueza inestimável. Além disso, todos os dias, no encontro com os refugiados em dificuldade, experimentamos os limites de nossa humanidade. Acredito que isso nos coloca, sim, em crise, mas, ao mesmo tempo, mantém-nos vivos, irrequietos e estimula a nossa imaginação e inteligência a procurar novos caminhos para responder a tantas necessidades e dificuldades que vivem as pessoas que acolhemos.
IHU On-Line - Como vê a obra do Papa Francisco a respeito da questão dos refugiados? Como foi a visita dele ao Centro Astalli (Foto ilustra o Papa na entrada do Centro Astalli)? Qual é sua avaliação da primeira viagem de Francisco fora de Roma, para Lampedusa?
Giovanni La Manna - Deus deu à Sua Igreja o Papa Francisco, que imediatamente falou aos nossos corações sobre misericórdia, esperança, coragem, sobre ser pobre para os pobres e de sermos testemunhas. O seu testemunho, a sua palavra confirmam-nos todos no desejo de servir aos últimos, recordando-nos a importância de estarmos disponíveis para o encontro com quantos na sua vida já pagaram um preço altíssimo, tendo de deixar tudo e enfrentar uma fuga que, muitas vezes, os expõem à morte.
A visita do Papa Francisco ao Centro Astalli foi um momento comovente e intenso. O Pontífice chegou à mesa e saudou com carinho e simplicidade as pessoas que, como todos os dias, estavam na fila para uma refeição. Em seguida, entrou para saudar um grupo de refugiados e entreteve-se com ele. Ao término da sua visita à cantina, o Santo Padre recolheu-se na Chiesa del Gesù, lugar fortemente simbólico e significativo, porque ali se acha a tumba do Padre Pedro Arrupe, fundador do JRS, a quem o Papa rendeu homenagem junto a uma família de refugiados egípcios.
A sua oração em Lampedusa (foto) foi um gesto de grande humanidade e proximidade para com os refugiados. Uma viagem que significou muito para todos nós, que nos recordou que muitas pessoas perdem a vida no mar porque são deixadas sozinhas pela indiferença de muitos. Todos devemos sentir, em nossa consciência, o peso desses mortos: ajudar-nos-ia a viver com os olhos abertos e a consciência acordada.
IHU On-Line - Qual é a importância do diálogo inter-religioso e do respeito ao outro no trabalho de acolhimento aos refugiados?
Giovanni La Manna - O diálogo inter-religioso, no âmbito da missão do Centro Astalli, experimenta-se, sobretudo, nos termos daquilo que a igreja define como “diálogo da vida”, em que as pessoas esforçam-se para viver um espírito de abertura e de boa vizinhança. Seguidamente, no nosso trabalho cotidiano, temos o conhecimento do fato de que alguns dos refugiados que chegam ao nosso país experimentaram em sua própria pele a perseguição religiosa no país de origem. Mas o nosso país, por ser pacífico, não está livre dessas situações problemáticas: os muçulmanos que encontramos em nossos serviços, por exemplo, são vítimas frequentes de discriminações, pequenas e grandes, muitas vezes ligadas ao preconceito e à informação deturpada.
A presença em um território de identidades religiosas diferentes traz, definitivamente, à tona aspectos problemáticos de convivência e de regras para enfrentar de forma mais compartilhada possível. Mas há também uma necessidade de afinar a nossa compreensão do fato religioso enquanto tal, de nos alfabetizarmos. Uma vez a aproximação às grandes religiões e culturas, como o islamismo, o budismo, o hinduísmo, era prerrogativa de poucos estudiosos. Hoje não há quarteirão em que esse encontro não possa realizar-se e de fato não se verificam. Na óptica de um “diálogo da vida”, essa é uma verdadeira e adequada oportunidade de enriquecimento recíproco, e não deveria jamais tornar-se ocasião de mal-entendidos e confrontos. Além disso, habituar-se a uma pluralidade de identidades religiosas, começando talvez por aqueles recentemente chegados em nosso país, pode ser um estímulo para dar atenção àqueles que sempre estiveram presentes na história italiana (pense, por exemplo, na comunidade hebraica).
Nota:
1.- Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia - Frontex: é um organismo da União Europeia que visa prestar assistência aos países membros na correta aplicação das normas comunitárias em matéria de controle nas fronteiras externas e de reenvio de imigrantes ilegais para os seus países de origem. A sua sede localiza-se em Varsóvia, na Polonia. (Nota da IHU On-Line).
2.- Regulamento de Dublin: a norma estabelece como princípio que um só Estado-Membro é responsável pela análise de um pedido de asilo. Este princípio tem por objetivo evitar que os requerentes de asilo sejam enviados de um país para outro, bem como evitar o abuso do sistema através da apresentação de vários pedidos de asilo por uma única pessoa. Assim, são definidos critérios objetivos e hierarquizados que permitem determinar, para cada pedido de asilo, o Estado-Membro responsável. (Nota da IHU On-Line).
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Centro Astalli, um refúgio para a vida. Entrevista especial com Giovanni La Manna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU