09 Junho 2013
O retorno do religioso se dá de várias maneiras na aldeia global, e por diversas vezes as religiões adotam uma postura fundamentalista frente aos temores que as democracias lhes suscitam, pontua o teólogo mexicano.
“A fé reconhece a presença de Deus na criação e na história com um dom permanente. Seu sopro vital é o que anima os seres e a consistência do universo como fonte inesgotável de existência, de devir, de ser e de doação amorosa que cria vida. A razão moderna pôs em tela de juízo a presença de Deus sob a suspeita de ser uma pura invenção da liberdade e da razão humanas em estado infantil. Desse pathos cultural da modernidade deram conta os mestres da suspeita, Marx, Freud e Nietzsche”. A reflexão é do teólogo mexicano Carlos Mendoza-Álvarez na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
E acrescenta: “o pathos pós-moderno é resultado desta experiência de traumatismo que significa Auschwitz na Europa, ou a dominação secular da América nestas outras latitudes. Por isso, a única linguagem plausível nestes tempos de desencanto de todos os meta-relatos de poder seria falar de um Deus absconditus, porém não ausente no seio da história, sustentando a liberdade e a razão de quem não se resigna a viver na finitude, na rivalidade e na desesperança”.
Em sua opinião, “os pós-modernos preferem uma experiência polifônica do divino, com o risco de que tal anseio seja instrumentalizado pela religião de mercado que faz da espiritualidade um produto de consumo e desperdício”.
Já o grandioso desafio do cristianismo do século XXI é “unir razão e vida”.
A entrevista foi inspirada pela obra de Mendoza-Álvarez intitulada O Deus escondido da pós-modernidade. Desejo, memória e imaginação escatológica (São Paulo: É Realizações, 2011).
Carlos Mendoza-Álvarez se formou em Filosofia, pela Universidade Autônoma do México, e fez doutorado em Teologia, em Paris e Friburgo (Suíça). Em sua tese de doutorado procurou tecer um diálogo com o pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur, a ética da alteridade de Emmanuel Levinas e a teoria mimética de René Girard. O teólogo participou do Congresso Continental de Teologia, em 08-10-2012, sediado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, quando falou sobre “Modernidade e pós-modernidade”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido Deus está “escondido” na pós-modernidade?
Carlos Mendoza-Álvarez – A fé reconhece a presença de Deus na criação e na história como um dom permanente. Seu sopro vital é o que anima os seres e a consistência do universo como fonte inesgotável de existência, de devir, de ser e de doação amorosa que cria vida. A razão moderna pôs em tela de juízo a presença de Deus sob a suspeita de ser uma pura invenção da liberdade e da razão humanas em estado infantil. Desse pathos cultural da modernidade deram conta os mestres da suspeita, Marx , Freud e Nietzsche.
E o argumento permanente para objetar a presença de Deus tem sido o problema do mal: se Deus existe, por que há mal no mundo? As respostas a esta interrogação têm transitado entre dois polos principais: Deus permite o mal para educar a humanidade, ou bem, Deus é uma invenção da impotência humana ante o mal.
Por isso o mundo moderno tardio é cético ante as narrativas religiosas que falam de um Deus intervencionista e, por um acaso, poderia aceitar uma teologia intencionista, como a chamou Dorothe Sölle faz já meio século. Trata-se de falar de Deus sem o triunfalismo das religiões que endeusam suas mediações sagradas identificando-as sem mais com o divino.
O pathos pós-moderno é resultado desta experiência de traumatismo que significa Auschwitz na Europa, ou a dominação secular da América nestas outras latitudes. Por isso, a única linguagem plausível nestes tempos de desencanto de todos os metarrelatos de poder seria falar de um Deus absconditus, porém não ausente no seio da história, sustentando a liberdade e a razão de quem não se resigna a viver na finitude, na rivalidade e na desesperança.
IHU On-Line – Como é possível falar de Deus no nosso tempo?
Carlos Mendoza-Álvarez – O cristianismo antigo construiu uma linguagem apofática ou negativa para falar de Deus. Não identificou o mistério divino com atributos e propriedades como o ser, o poder ou a vontade, já que estas são projeções do humano. Esta teologia apofática, – que fundou Dionísio Areopagita no século VI da era comum – fala de Deus em sentido negativo, por via indireta, contrastando sua realidade superessencial e superabundante com nossas pobres e sempre insuficientes imagens de Deus.
Assim, por exemplo, Deus é nomeado por contraste: infinito, inefável, imortal e demais expressões que abrem a imaginação ao mistério. Concretamente isso quer dizer que hoje, em tempos pós-modernos, podemos recuperar esta relação mística com o ser divino. Uma experiência que corresponde à necessidade espiritual dos habitantes da aldeia global, que já não se conformam com as mediações das religiões institucionais, pois veem seus limites culturais, ideológicos, políticos e até mesmo simbólicos.
Os pós-modernos preferem uma experiência polifônica do divino, com o risco de que tal anseio seja instrumentalizado pela religião de mercado que faz da espiritualidade um produto de consumo e desperdício.
IHU On-Line – Quais são os desafios dessa narrativa sobre Deus na pós-modernidade frente ao paradoxo do secularismo e do niilismo , por um lado, e do retorno do religioso, por outro?
Carlos Mendoza-Álvarez – Na aldeia global vemos aparecer o retorno do religioso sob novas formas. As religiões tomam com frequência uma fisionomia fundamentalista ante os temores que lhes infundem as democracias deliberativas. Por outra parte, a sociedade de mercado descobriu na religião um produto que reprime benefícios milionários. E, em meio disso, vemos aparecer a busca de um diálogo entre as religiões que pretende favorecer a paz nas zonas de conflito, a plena consciência dos seres humanos com respeito a si mesmos e à natureza ameaçada.
Por outra parte, existe também o risco de que o valioso afã de respeito à diversidade religiosa da humanidade – que é um verdadeiro patrimônio cultural inestimável – se converta numa dissolução das tradições milenares, adquirindo a forma de uma religião light de mercado que produza um indiscriminado consumo de sucata religiosa.
Por isso, me parecem valiosas as experiências de diálogo intermonástico empreendidas em diversas latitudes do planeta: de monges budistas com monges cristãos, por exemplo, em Kerala, na Índia. Ou o projeto da Cidade das Ameixas do monge budista vietnamita TischNatAhn na Califórnia e em Bordéos para abrir um diálogo criativo entre uma corrente budista e o Ocidente Norte-Atlântico.
Também me parece valiosa a iniciativa da ética mundial proposta já faz algumas décadas por Hans Küng, o teólogo suíço, convocando líderes das religiões a trabalharem juntos numa ética comum baseada na sabedoria das tradições espirituais da humanidade.
Na América Latina existem experiências interessantes de diálogo do cristianismo com as religiões dos povos originários que sobrevivem à colonização. Embora seja incerto o caminho, pode ser promissor de saborosos frutos caso se avance no caminho de superar as práticas que não respeitem a dignidade humana.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line no ano passado, o senhor menciona que vê a humanidade como “altamente sensível à esperança”. Como esta esperança se manifesta em relação com o sagrado?
Carlos Mendoza-Álvarez – A esperança de mulheres e homens da aldeia global se expressa no tempo presente como anelo de sobrevivência como espécie, em sua diversidade de culturas e religiões. Hoje somos conscientes mais que noutras épocas, ao menos no discurso, na riqueza bio-espiritual da humanidade.
E as religiões estão dando sinais de rejuvenescimento em seu compromisso pela justiça para com os pobres da terra, em sua capacidade de educar os seus crentes para a compaixão com todas as criaturas, em sua sabedoria para cultivar a interioridade das pessoas e a concórdia entre os povos.
Hoje sabemos que o sagrado pode ser violento ou pacifista. Tal é a alternativa que existe no fundo de todas as religiões da humanidade. O sagrado violento gera inimizade, morte e ressentimento, pois é um reflexo identitário. O santo das religiões é a relação ao mistério divino que não requer vítimas nem verdugos, tampouco deuses intervencionistas e fazedores de milagres. Porém, é contemplação da presença amorosa do divino no mundo que dá um giro à existência e à prática de vida.
IHU On-Line – Em que aspectos o diálogo fé e razão tem avançado em nosso tempo?
Carlos Mendoza-Álvarez – O Papa Francisco colocou, faz pouco, critérios práticos para estabelecer um diálogo compassivo com o mundo a partir do serviço aos pobres. Seu predecessor, o Papa Bento XVI, o havia feito em termos teóricos, sublinhando a necessidade de abrir a razão à transcendência. Penso que não se contradizem. A fé cristã será pertinente, crível e significativa quando seu anúncio de um Deus que é comunhão amorosa for precedido de uma prática de misericórdia, em particular com os mais vulneráveis e excluídos. Nisto radica o tremendo desafio do cristianismo do século XXI: unir razão e vida.
IHU On-Line – Como se imbricam desejo, memória e imaginação escatológica?
Carlos Mendoza-Álvarez – São três potências da experiência de toda pessoa que constituem sua subjetividade. Desde o testemunho dos justos da história – e para os cristãos desde o testemunho de Jesus de Nazaré, o justo por excelência – podemos todos experimentar que somos amados de maneira incondicional por Deus.
Tal memória viva nos capacita para ver a vida com outros olhos. Por exemplo, os da vítima que perdoa e desata assim os nós do ressentimento. Ou também a imaginação que têm os pobres e excluídos para não se deixar apanhar ou derrubar pelas adversidades que põem em xeque suas vidas. Ou o desejo purificado da rivalidade que vivem os que puderam pacificar seu coração e começaram a viver na liberdade do amor universal, embora isso lhes custe a vida. A presença de Deus será o testemunho das religiões – purificadas de seus desejos de onipotência – que poderá ser escutado pelos habitantes das sociedades pós-modernas de hoje.
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A arriscada experiência polifônica do divino. Entrevista especial com Carlos Mendoza-Álvarez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU