01 Outubro 2012
Os 40 anos do livro A economia brasileira: crítica à razão dualista de Francisco de Oliveira é comentado pelo economista. "Penso que ele transcende o próprio esquema analítico marxista. Se Marx tivesse lido a Crítica da Razão Dualista teria aprendido a escapar de esquemas binários que aparecem em algumas de suas obras".
Em 1972, Francisco de Oliveira, sociólogo, lançava o livro A economia brasileira: crítica à razão dualista.
Trata-se de um livro fundamental para a análise da atual realidade brasileira, não somente pela questão do método como também das ideias-chave, afirma Reinaldo Gonçalves, economista, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele, “no início do século XXI, o Brasil é a simbiose entre o moderno e o arcaico, é o capitalismo malformado-ornitorrinco marcado por ineficiência sistêmica, que depende cada vez mais do setor primário-exportador e que se sustenta com a hegemonia às avessas”.
O Modelo Liberal Periférico, no Brasil, se caracteriza, segundo o economista, na dimensão econômica, por “fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo”. E continua: “Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória observa-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições e sistema político corrupto e clientelista. É o país do desenvolvimento às avessas”.
Reinaldo Gonçalves (foto) é formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Obteve o título de mestre em Economia, pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ, e de doutor em Letters and Social Sciences pela University of Reading, na Inglaterra. Atualmente leciona na UFRJ. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa a “razão dualista” para Chico de Oliveira? No que consiste sua crítica a esse tipo de razão?
Foto: Fundação Lauro Campos
Reinaldo Gonçalves – A “razão dualista” é o confronto entre o moderno e o arcaico na discussão sobre desenvolvimento no Brasil e em outros países; é o vício metodológico de se reduzir processos, relações e estruturas ao modelo dual-estruturalista, ao esquema binário (zero ou um). A contribuição de Chico de Oliveira é a “crítica da razão dualista” que mostra a simbiose e a organicidade que existe na “unidade de contrários, em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’”. O moderno e o atrasado não são rivais distantes e, sim, irmãos xipófagos.
IHU On-Line – Podemos dizer que há uma nova forma de pensar a economia brasileira, com o livro Crítica à razão dualista, de Chico de Oliveira? Por quê?
Reinaldo Gonçalves – A importância do livro está na combinação rara de teses claras e importantes, criatividade, coragem intelectual (enfrentar autores e posições estabelecidos), rigor analítico e método. Por ser uma rara combinação, poucos foram os trabalhos posteriores que envolveram esta “nova forma de pensar”.
IHU On-Line – De que maneira Chico busca cruzar política, economia e sociedade brasileira e seus conflitos em sua obra Crítica à razão dualista?
Reinaldo Gonçalves – Penso que é na questão do método. E aqui está a grande contribuição de Chico de Oliveira ao longo de quatro décadas. Este método implica crítica ao economicismo, recurso à economia política (interação entre a busca de riqueza e poder), o rigor analítico (cartesiano, mesmo) e o exercício da dialética que joga com a unidade de contrários. O eixo estruturante do método são as conexões entre padrões de dominação, acumulação e distribuição em uma sociedade de classes.
IHU On-Line – Qual o principal objetivo dessa obra de Chico de Oliveira? Podemos dizer que ele busca fundar ou refundar uma leitura marxista da história do Brasil moderno? Por quê? Qual a tese central da obra?
Reinaldo Gonçalves – A tese central é a baseada na crítica do modelo dual-estruturalista cepalino que identifica contrastes e distanciamento entre o moderno e o atrasado. Chico demonstra o equívoco deste modelo. Insisto que a grande contribuição é metodológica: é a articulação rigorosa entre padrões de dominação, acumulação e distribuição. Penso que ele transcende o próprio esquema analítico marxista. Se Marx tivesse lido a Crítica da Razão Dualista teria aprendido a escapar de esquemas binários que aparecem em algumas de suas obras: classes sociais (capitalistas vs trabalhadores), causas de crises econômicas (tendência decrescente da taxa de lucro vs problema de realização), padrões de dominação (propriedade dos meios de produção vs não-propriedade) e atuação do Estado (comitê da classe capitalista-opressores vs oprimidos). E, naturalmente, Marx teria aprendido muito sobre capitalismo subdesenvolvido.
IHU On-Line – Qual a análise de Chico de Oliveira no que se refere ao desenvolvimento brasileiro?
Reinaldo Gonçalves – Além da tese principal (simbiose entre atrasado e moderno), nos seis capítulos do livro há outras teses e argumentos importantes. Por exemplo, ele destaca a relação entre padrão de dominação e padrão de acumulação, ou seja, a quem serve o capitalismo brasileiro. Ele trata ainda da tese sobre o “socialismo dos tolos” de esquerda e de direita que associam a maior intervenção estatal com a autonomia do Estado em relação a classes e grupos sociais. Chico destaca ainda os fundamentos da Economia Política Internacional em que os conflitos entre grupos e classes sociais têm predominância em relação às rivalidades interestatais. Chico identifica também traços de ascensão do capital financeiro na disputa pelo excedente econômico no início dos anos 1970. Estes são temas de grande atualidade.
IHU On-Line – De que maneira Chico avalia o moderno capitalismo brasileiro?
Reinaldo Gonçalves – O subdesenvolvimento brasileiro era e é uma “produção” do capitalismo. O “subdesenvolvimento é uma formação capitalista e não simplesmente histórica”. Como mostrou Chico de Oliveira, se, por um lado, é verdade que fatores endógenos sejam determinantes dos padrões de dominação, acumulação e distribuição (como ocorreu na Era desenvolvimentista, 1930-79), também é verdadeiro que o capitalismo brasileiro é subdesenvolvido, subordinado. Não é por outra razão que neste capitalismo o capital estrangeiro tem papel protagônico. O desenvolvimento brasileiro é caudatário. Por exemplo, nos últimos anos a desindustrialização e a reprimarização da economia brasileira refletem exatamente esta situação.
IHU On-Line – De que forma Chico define “O Ornitorrinco”? Em que sentido este conceito ajuda a qualificar a espécie de capitalismo que se gerou no Brasil?
Reinaldo Gonçalves – O capitalismo subdesenvolvido da Era desenvolvimentista gerou, em fase posterior do seu ciclo de vida, um capitalismo “malformado, a meio caminho”. É o que Luiz Filgueiras chama de Modelo Liberal Periférico. Este modelo caracteriza-se por: “liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro. O modelo é liberal porque é estruturado a partir da liberalização das relações econômicas internacionais nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetário-financeira; da implementação de reformas no âmbito do Estado (em especial na área da previdência social) e da privatização de empresas estatais, que implicam a reconfiguração da intervenção estatal na economia e na sociedade; e de um processo de desregulação do mercado de trabalho, que reforça a exploração da força de trabalho. O modelo é periférico porque é uma forma específica de realização da doutrina neoliberal e da sua política econômica em um país que ocupa posição subalterna no sistema econômico internacional, ou seja, um país que não tem influência na arena internacional, ao mesmo tempo em que se caracteriza por significativa vulnerabilidade externa estrutural nas suas relações econômicas internacionais. E, por fim, o modelo tem o capital financeiro e a lógica financeira como dominantes em sua dinâmica macroeconômica”.
Com o Modelo Liberal Periférico, os países geram o capitalismo malformado-ornitorrinco que tem os vícios e defeitos do capitalismo liberal e os defeitos e vícios das estruturas econômicas, sociais, políticas e institucionais da periferia. O capitalismo brasileiro – ornitorrinco – gera o Brasil invertebrado!
IHU On-Line – No que consiste a nova classe social brasileira, para Chico?
Reinaldo Gonçalves – Outra importante contribuição de Chico de Oliveira é a ideia de hegemonia às avessas, que é fundamental para se compreender o Brasil invertebrado. Nos últimos anos, “parece que os dominados dominam, pois fornecem a ‘direção moral’ e, fisicamente até, estão à testa de organizações do Estado, direta ou indiretamente, e das grandes empresas estatais. Parece que eles são os próprios capitalistas, pois os grandes fundos de pensão das estatais são o coração do novo sistema financeiro brasileiro, e financiam pesadamente a dívida interna pública. Parece que os dominados comandam a política, pois dispõem de poderosas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado”. Nos governos Lula e Dilma, “enquanto as classes dominadas tomam a ‘direção moral’ da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada”.
IHU On-Line – Em que medida as críticas de Chico de Oliveira ao desenvolvimentismo nos anos 1930-72 podem ser estendidas ao novo desenvolvimentismo no século XXI?
Reinaldo Gonçalves – Chico alertou sobre o desvio criado pelo pensamento desenvolvimentista: “a teoria do subdesenvolvimento sentou as bases do ‘desenvolvimentismo ’ que desviou a atenção teórica e a ação política do problema da luta de classes, justamente no período em que, com a transformação da economia de base agrária para industrial-urbana, as condições objetivas daquela se agravaram”. Nos últimos anos, o novo desenvolvimentismo está fazendo a mesma manobra desviacionista ao focar nos problemas macroeconômicos de curto prazo e negligenciar questões importantes para o desenvolvimento: mudanças na estrutura de propriedade; estrutura tributária e distribuição de riqueza; vulnerabilidade externa estrutural nas esferas comercial, produtiva e tecnológica; influência de setores dominantes (agronegócio, mineração e bancos); e viés no deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário. O novo desenvolvimentismo desconhece o conteúdo de classes e os interesses dos setores dominantes (bancos, agronegócio, empreiteiras e mineradoras) que configuram os padrões de dominação, acumulação e distribuição no Brasil no século XXI.
IHU On-Line – As contribuições de Chico de Oliveira são importantes para a análise da atual realidade brasileira?
Reinaldo Gonçalves – Elas são fundamentais, não somente pela questão do método como das ideias-chave. No início do século XXI, o Brasil é a simbiose entre o moderno e o arcaico, é o capitalismo malformado-ornitorrinco marcado por ineficiência sistêmica, que depende cada vez mais do setor primário-exportador e que se sustenta com a hegemonia às avessas. O Modelo Liberal Periférico no Brasil se caracteriza, na dimensão econômica, por: fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória observa-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições e sistema político corrupto e clientelista. É o país do desenvolvimento às avessas.
Ficha de leitura.
OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Cebrap/Vozes, 1972. Nova edição: São Paulo: Editora Boitempo, 2003
Nota da IHU On-Line: A imagem que ilustra, acima, a entrevista pode ser encontrada aqui: http://19duilio47.blogspot.com.br/2012/06/chico-de-oliveira-e-o-ornitorrinco.html
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“O capitalismo brasileiro – ornitorrinco – gera o Brasil invertebrado!” Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU