12 Fevereiro 2011
“As religiões devem começar pelo respeito e pela hospitalidade”, sugere Luiz Carlos Susin, ao participar da IV edição do Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), em Dacar, Senegal, que acontece de 5 a 11 de fevereiro. Cerca de noventa teólogos e teólogas de diferentes tradições e regiões do mundo participaram do encontro com o desafio de pensar o pluralismo e o diálogo entre as religiões para construir um mundo de paz e fraternidade, além de discutir acerca das questões que afligem o mundo contemporâneo.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, de Dacar, Susin diz que “falou-se muito em plural, em diversidade, em contextos plurais que obrigam a nos mantermos no horizonte do pluralismo com o cuidado de não cair na tentação de reduzir tudo a uma única forma de teologia”. Para ele, uma teologia do pluralismo religioso deve considerar dois elementos básicos: Deus e a experiência religiosa. “Esta unicidade é o fundamento da pluralidade”, assegura.
Na opinião do frei capuchinho, antes do diálogo inter-religioso, as religiões devem buscar o respeito e, por tratarem do sagrado, as elas podem “ensinar o nosso mundo que é absolutamente sagrado respeitar e reconhecer o outro e suas experiências sagradas”. E completa: “Não são padrões teóricos de ética que irão resolver a convivência humana, mas algo mais simples e cotidiano: o respeito por aquilo que cada um considera sagrado”.
Susin lembrou ainda que o lema do Fórum Social Mundial “outro mundo é possível” coincide com os objetivos do FMTL na medida em que “a teologia procura articular as duas pontas: o mundo que sonhamos é um dom divino, mas sua semente precisa terra boa, bem cultivada, o trabalho humano”.
Luiz Carlos Susin é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Estef), em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, dentre as quais citamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais suas primeiras impressões do IV Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FTML)? Quais são as novidades, especialmente teológicas, do FMTL?
Luiz Carlos Susin – Este Fórum de Dacar foi ao mesmo tempo mais integrado ao Fórum Social Mundial e mais concentrado na discussão sobre o futuro da teologia com perspectiva de libertação. Mas aconteceram algumas falhas na programação do Fórum Social Mundial que afetaram a nossa intenção de maior integração, pois o programa com a marcação dos lugares onde deveriam ser desenvolvidas as atividades acabava sendo publicada muito tarde, já no meio do dia.
Mas o próprio Fórum Social Mundial sofreu alguns limites de organização que geraram esse prejuízo em cascata. Quanto à concentração nas discussões sobre o futuro da teologia com perspectiva de libertação, tivemos um nível muito bom de intervenções e de debates, e estamos chegando a encaminhamentos muito interessantes, alguns de caráter mais prático, como o incremento da rede por internet, projetos em comum, outros de caráter mais teológico, como os grandes temas e as linguagens adequadas para enfrentá-los.
Um mundo em movimento, em crise e em migração, com tensões em todo tipo de fronteira, à beira de crises sem precedente, como a crise ambiental e a crise alimentar, pode causar medo, mas também pode provocar a fé e a teologia.
IHU On-Line – Como o Fórum está abordando as diferentes formas de Teologia?
Luiz Carlos Susin – De fato, falou-se muito em plural, em diversidade, em contextos plurais que obrigam a nos mantermos no horizonte do pluralismo com o cuidado de não cair na tentação de reduzir tudo a uma única forma de teologia. Mas isso obriga também a formas de diálogo cada vez mais complexas. Precisamos de uma atitude de hospitalidade em relação à diversidade.
IHU On-Line – Quais têm sido os desafios de pensar o pluralismo e o diálogo religioso em Dacar, capital de um país com 95% da população muçulmana?
Luiz Carlos Susin – Não fomos muito felizes em conseguir pessoas muçulmanas para algumas atividades que tínhamos programado, infelizmente. Aconteceram incidentes de agendas, mas foram demasiadas coincidências. Porém, sabemos que, no Senegal, a convivência entre as grandes confrarias muçulmanas e as minorias cristãs é pacífica, fraterna e cordial.
Senghor, primeiro presidente do Senegal, considerado “pai da pátria”, foi um cristão de grande fervor, que visitava as mesquitas muçulmanas e rezava com todos, profetizando que algum dia cristãos e muçulmanos rezariam juntos. No Fórum, alguns cristãos de países muçulmanos relatavam que estabelecem diálogos fraternos com os muçulmanos, mas estes não retribuem o convite, e se queixavam de que os cristãos se interessam pelos muçulmanos, mas não o contrário. No entanto, isso não se aplica ao Senegal ou à vizinha Guiné, em que há trocas de gentilezas.
IHU On-Line – Quais os desafios para que as religiões consigam atingir o objetivo da paz?
Luiz Carlos Susin – Concordo apenas em parte com a famosa tese de Hans Küng que afirma: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais”. Esses “padrões globais”, no pensamento de Hans Küng, dependem de um vasto conhecimento dos fundamentos, o que é típico de um pensador do iluminismo, como se a realidade devesse obedecer o conhecimento.
Ao contrário de Sócrates e toda a tradição ocidental, o conhecimento pode muito pouco. O respeito e a hospitalidade não dependem do conhecimento, vem antes, são mais justos e levam a um bom conhecimento. Eu insisto nisso: as religiões devem começar pelo respeito e pela hospitalidade.
IHU On-Line – Em que consiste uma teologia do pluralismo religioso?
Luiz Carlos Susin – Destacaria dois elementos básicos de uma boa teologia do pluralismo religioso: primeiro, Deus é, em si mesmo, maior do que todo conhecimento, e por isso vale a afirmação pré-bíblica dos Vedas, literatura sagrada dos hindus: “Deus é sem nome, e por isso se pode dar a ele muitos nomes”. Na Bíblia também não se pode dizer nome ou fazer imagens de Deus, e, no entanto, Deus tem aí muitos adjetivos. Disso decorre a diversidade religiosa, que é uma riqueza e uma pobreza ao mesmo tempo. Segundo, a experiência religiosa é sempre irredutível, é única, tem algo de especial e pleno em si mesma, como o amor. Esta unicidade é o fundamento da pluralidade.
IHU On-Line – O que a teologia do pluralismo religioso pode ensinar ao mundo de hoje?
Luiz Carlos Susin – Talvez devamos primeiro afirmar o contrário: o mundo de hoje, com as ciências, a democracia, os direitos humanos, ensinou a respeitar e reconhecer a diversidade, portanto, a pluralidade. Em biologia se fala da vida saudável quando é vida numa rede de biodiversidade. Pode-se assim, falar também de “hierodiversidade”, a pluralidade do sagrado. E, então, pode-se inverter a contribuição: a religião, por tratar do sagrado, quando é respeitada na sua diversidade e na sua pluralidade de manifestações do que é “sagrado”, pode ensinar ao nosso mundo que é absolutamente sagrado respeitar e reconhecer o outro e suas experiências sagradas.
É uma grande violência e uma irresponsabilidade um jornalista ocidental, para provar seu sagrado direito à liberdade de manifestação, publicar uma figura de Muhamad (Maomé), o que é uma proibição sagrada para os muçulmanos. Tocar assim o sagrado do outro é crime. Foi o que aconteceu com o famoso chute na imagem de N.Sra. Aparecida no Brasil. Uma estilista brasileira colocou figuras de santos na sua linha de produção de cuecas. E se alguém colocasse a foto da mãe dela? Não são padrões teóricos de ética que irão resolver a convivência humana, mas algo mais simples e cotidiano: o respeito por aquilo que cada um considera sagrado.
IHU On-Line – Que aspectos dificultam a solidificação de uma teologia que leve em consideração o pluralismo religioso?
Luiz Carlos Susin – O que mais dificulta é a ideia ou a convicção de “propriedade privada” passada para o âmbito religioso. Ou seja, crer que eu tenho a verdade, toda a verdade. Quando um grupo religioso pensa assim – e por muito tempo pensamos e em grande parte continuamos a pensar assim –, então haverá choque e guerra de religiões, que já provocaram muito sangue e muita morte. Jesus não pensava assim: ele dialogava e aprendia de mulheres, de estrangeiros, e penso que fazia isso com bom humor!
IHU On-Line – Como conjugar a identidade com o pluralismo?
Luiz Carlos Susin – A identidade tem uma história tanto nas vidas das pessoas como na vida da humanidade. Ela começa, primeiro, imitando inteiramente os outros. Aos poucos pretende ser original e se separa dos outros, algo próprio de um adolescente. Pode em seguida tentar uma relação de domínio sobre os outros, ser um senhor. Mas pode ser uma identidade fraterna, hospitaleira, ou seja, aberta aos outros, e pode ser inclusive a identidade de um servidor, que se coloca a serviço aos outros, inclusive com a fidelidade, esta palavra bíblica para falar de identidade: a permanência, mas na forma de relação com outro, seja Deus, seja os outros todos. Esta é a identidade que se abre e promove o pluralismo sem medo e sem conflito. Mas precisa passar pelo despojamento de sua tendência a ser senhor.
IHU On-Line – O Fórum Mundial de Teologia e Libertação já abordou temas distintos. Que direção o fórum deve seguir daqui para frente?
Luiz Carlos Susin – Eu tenho a convicção de que o Fórum não deve ser confundido com congressos temáticos. É um espaço aberto a muitos caminhos que se encontram, que aprofundam relações e conhecimento mútuo, que estimulam novos passos de produção teológica através do intercâmbio, um encontro da diversidade teológica que aponta para diversos caminhos. Portanto, algo mais formal e metodológico do que temas. Só não se pode abrir mão da perspectiva libertadora assim como viemos aprendendo na Teologia da Libertação.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, o teólogo José Maria Vigil foi enfático: “As religiões não dialogam; coexistem simplesmente”. A partir dessa perspectiva, quais os desafios ao pensar e propor uma teologia do pluralismo religioso?
Luiz Carlos Susin – Coexistir pacificamente já é meio caminho andado. O respeito vem antes do diálogo. Mas é claro que só o diálogo pode trazer enriquecimento de vida. E dialogar é, antes de tudo, abrir-se ao testemunho cotidiano, sem necessidade de palco de diálogo, que pode produzir vaidade e ruído. Ou seja, o pluralismo religioso começa em casa.
IHU On-Line – Vigil disse ainda que o grande problema ou obstáculo para as religiões se falarem, dialogarem, se unirem não é externo, mas sim interno. É ideológico, teológico, epistemológico. O senhor concorda?
Luiz Carlos Susin – Está certo, mas creio que há algo anterior a tudo isso, que já afirmei e preciso repetir: mais perto do chão está o coração do que a cabeça, ou seja, é através dos sentimentos que criamos os principais obstáculos e também temos as principais vias de acesso ao diálogo. Respeito, admiração, simpatia, compaixão, etc. vêm antes do coração e facilitam a modificação das ideias.
IHU On-Line – Vigil defende uma Teologia do Pluralismo Religioso (TdPR). O senhor compartilha dessa perspectiva?
Luiz Carlos Susin – Vigil é um grande companheiro no trabalho da teologia, um homem inquieto, que busca com afinco e entusiasmo o melhor caminho. Está aqui em Dacar, e temos falado sobre isso. Aqui ele matizou melhor esta afirmação: há um princípio de libertação em toda boa teologia cristã, que agora deve operar o reconhecimento do pluralismo religioso, a libertação a respeito da crença sedimentada de que só uma religião tem a verdade inteira, já que a verdade inteira só se dará no Reino de Deus. Não há sentido contrapor uma teologia a outra, pois uma precisa da outra, completa a outra. Estou convicto de que é com o princípio de libertação que chegamos a um saudável pluralismo religioso.
IHU On-Line – Em que consistiria, na sua opinião, uma atualização epistemológica por parte das religiões?
Luiz Carlos Susin – Concordo com Vigil – e com Bento XVI – que as religiões são expressões culturais da fé. Portanto, nasceram com os humanos, são marcas de nossa humanidade. Evoluem, tem etapas históricas, ganham novas formas. Estamos hoje em grande mudança, e não sabemos direito para onde vai tal mudança, como acontece em todas as grandes mudanças. Precisamos de confiança e de paciência, mas também podemos trabalhar para ir expressando melhor o que não dá mais em expressões envelhecidas. Creio que as ciências, hoje, são um grande recurso para ensaiar novas formas de compreensão e de expressão da fé, do sagrado. Mas é sempre um trabalho incompleto.
IHU On-Line – Teologicamente, qual é o significado do lema “outro mundo é possível”? Qual é o sentido e a necessidade de pensar um outro mundo possível?
Luiz Carlos Susin – Este lema do Fórum Social Mundial, que emergiu na segunda edição, em 2002, em Porto Alegre, ao ser anunciado nos alto-falantes do anfiteatro Pôr do Sol, tornou-se, para mim, uma paixão à primeira escuta! O locutor insistia: “Não um mundo além, mas aqui! Aqui é possível um mundo diferente”.
Ele estava ao mesmo tempo proclamando uma esperança, um horizonte, uma estrela, e, no entanto, insistia que a luz dessa estrela inatingível poderia brilhar no rosto dos que estão aqui, nesse chão, nessa terra. Contanto que se saia para a paisagem, se tome o caminho e se avance em direção ao horizonte. Ou seja, esse lema coincide com outro que diz a respeito do Reino de Deus: “Já e ainda não”. Eu prefiro inverter a ordem para ser mais justo: “Ainda não em sua plenitude, mas já em seus sinais”. O Fórum Social Mundial insiste na ação dos movimentos sociais para que o outro mundo seja possível. A teologia procura articular as duas pontas: o mundo que sonhamos é um dom divino, mas sua semente precisa terra boa, bem cultivada, o trabalho humano. Deus ajuda quem madruga!
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FTML: O desafio do pluralismo religioso. Entrevista especial com Luiz Carlos Susin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU