26 Março 2010
Os motivos que impulsionam os povos à vingança variam de acordo com as culturas. Pode ser “desde uma palavra ofensiva, a recusa a uma proposta amorosa, até um homicídio. A vingança pode ser exercida por atos de feitiçaria ou pela violência física”. A explicação é do antropólogo Julio Cezar Melatti, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Ele prossegue:
“Nem toda vingança se consuma em canibalismo, e nem todo canibalismo se faz por vingança. O canibalismo também se faz por amor. O exemplo entre nós seria a Eucaristia. Entre os índios seria o consumo de carne e ossos de parentes, falecidos por morte natural e cremados, como se faz entre os ianomâmis e se fazia entre os índios panos do sudoeste da Amazônia”.
Melatti destaca que os índios marubos, assim como outros “falantes de línguas da família pano, cremavam os seus mortos e pulverizavam os ossos calcinados, misturando-os a um mingau, que comiam. Não comiam os inimigos”.
Melatti é graduado em Geografia e História pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP, especialista em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Ciência Social pela Universidade de São Paulo – USP - com a tese O sistema social Krahó. Cursou pós-doutorado pela Smithsonian Institution, nos Estados Unidos. Professor emérito do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), é autor de Índios do Brasil (Brasília: Coordenada, 1970), O Messianismo Krahó (São Paulo: Herder, 1972) e Ritos de uma Tribo Timbira (São Paulo: Ática, 1978).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Antropologicamente, nas diferentes culturas, a vingança é um comportamento comum?
Julio Cezar Melatti - Acredito que sim, embora haja diferenças no modo de exercê-la e também na consideração dos atos que a provocam.
IHU On-Line - Por que o ser humano se vinga?
Julio Cezar Melatti - Suponho que a vingança se paute pelos princípios da reciprocidade, que regem a troca de presentes, favores, alianças matrimoniais, trocas comerciais. A vingança pode ser substituída pela indenização, que, na Idade Média, era proporcional à distância genealógica do credor com a vítima, conforme exemplos dados por Radcliffe-Brown na sua clássica Introdução aos “Sistemas Africanos de Parentesco e Casamento”. Naquelas sociedades em que não há procedimentos judiciais isentos de envolvimento com as partes ofensora e ofendida, talvez a vingança seja o único modo de reparação.
IHU On-Line - E nas culturas indígenas, como se apresenta a vingança?
Julio Cezar Melatti - Como disse, os motivos que levam à vingança variam segundo as culturas, e podem ser os mais diversos, desde uma palavra ofensiva, a recusa a uma proposta amorosa, até um homicídio. A vingança pode ser exercida por atos de feitiçaria ou pela violência física.
IHU On-Line - Qual é a relação entre vingança e canibalismo?
Julio Cezar Melatti - Não há necessariamente um vínculo entre uma coisa e outra. Nem toda vingança se consuma em canibalismo, e nem todo canibalismo se faz por vingança. O canibalismo também se faz por amor. O exemplo entre nós seria a Eucaristia. Entre os índios seria o consumo de carne e ossos de parentes, falecidos por morte natural e cremados, como se faz entre os ianomâmis e se fazia entre os índios panos do sudoeste da Amazônia.
IHU On-Line - Como esse binômio se apresenta entre os tupinambás, que praticavam o canibalismo como vingança e quase devoraram o viajante e militar alemão Hans Staden?
Julio Cezar Melatti - Hans Staden jogou com a dúvida dos tupinambás: ele foi aprisionado como artilheiro de uma fortificação portuguesa, e, como português, deveria de morrer. Mas era fisicamente mais parecido com os franceses (e mentia aos tupinambás dizendo ser francês), e, como francês, merecia a hospitalidade. Entre os tupinambás, a criança já nascia com inimigos e crescia com uma alta probabilidade de morrer nas mãos dos inimigos. Era até preferível morrer assim do que morrer em casa e se decompor numa sepultura. O capuchinho Claude d’Abeville, ao sair da colônia francesa do Maranhão no início do século XVII, levou alguns índios, uns tupinambás, outros não, para a França, onde quase todos adoeceram e morreram. Um deles era Caripira, na verdade um prisioneiro dos tupinambás, mas muito valente e que lutava ao lado deles. Caripira agonizante tinha uns sonhos em que era atacado por uma aves negras, para os quais o missionário dava uma interpretação conforme a cosmologia cristã, algo como o medo do demônio. Mas, tratando-se de aves negras, não seriam elas urubus, e não estaria Caripira prevendo que, morrendo na França, estava destinado a se decompor, e não teria a honrada morte no pátio de uma aldeia inimiga?
IHU On-Line - E no caso dos marubos e craôs, sobre os quais o senhor desenvolveu pesquisas, há indícios de canibalismo por vingança? Poderia comentar a respeito?
Julio Cezar Melatti - Os marubos, tal como os outros índios falantes de línguas da família pano, cremavam os seus mortos e pulverizavam os ossos calcinados, misturando-os a um mingau, que comiam. Não comiam os inimigos. Os craôs não praticam qualquer tipo de antropofagia. Há um interessante artigo de Eduardo Viveiros e Castro e Manuela Carneiro da Cunha em que comparam a vingança tupinambá, implacável, contínua e eterna, com a vingança craô, que, uma vez exercida, termina. Os craôs, como os demais timbiras, também têm ritos que favorecem o aplacamento de antigas divergências, como a aclamação de chefes honorários, nas relações entre aldeias, e a escolha da criança mascote (witi), nas relações dentro da aldeia.
IHU On-Line - Que outras sociedades indígenas praticavam o canibalismo como forma de vingar algum ato cometido?
Julio Cezar Melatti - Além das já referidas, tenho a lembrar a dos pacaás novos (wári), de Rondônia, que comiam não só seus parentes, deixando inclusive seus corpos se decomporem um pouco, para não sentirem prazer ao fazê-lo, mas também comiam os inimigos com toda a satisfação. Aparecida Vilaça tem dois livros sobre os wári, e, num deles, analisa o procedimento antropofágico dos mesmos.
IHU On-Line - Como se dão os mecanismos da memória e do perdão entre os indígenas?
Julio Cezar Melatti - Eu diria que, em muitos casos, a vingança não se efetiva por falta de um grupo de apoio ao vingador, como numerosos parentes. Com o tempo, a intenção de vingança se arrefece e a realização de certos ritos, como os citados, conduz os sentimentos em outra direção. Mas não há esquecimento. No final do ano passado, participei de uma banca de tese de doutorado, de Elena Welper, que tinha por tema a figura de João Tuxaua, um líder que, após o clímax do período da borracha, reuniu grupos panos dizimados e dispersos por caucheiros e seringueiros nos afluentes do rio Javari, organizando os marubos. Ele os instruía pregando a solidariedade, a boa vontade e a abolição da violência.
IHU On-Line - Falando das sociedades contemporâneas brancas, acredita que está havendo uma exacerbação da vingança, e do mal, inclusive? Caso sim, a que isso se deve?
Julio Cezar Melatti - Quando li o livro Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, fiquei surpreso com a frequência dos homicídios entre os sertanejos pobres (nem senhores, nem escravos), que viviam à margem do sistema escravocrata então em vigor. Talvez não haja exacerbação hoje em dia.
IHU On-Line - Que aproximações e diferenças poderiam ser apontadas entre o tipo de vingança cometida pelos índios e aquele cometido pelo homem branco?
Julio Cezar Melatti - Há diferenças culturais, mas suponho que elas não têm base no fato de ser branco ou de ser índio. A final de contas, o que é ser branco? Toda a humanidade não é indígena? Talvez se possam distinguir grupos humanos em que a vingança seja institucionalizada, e até cobrada, e outros em que, embora se exerça por iniciativa individual, não é aprovada pelos valores morais e nem pelo sistema legal.
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A vingança nas culturas indígenas. Entrevista especial com Julio Cezar Melatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU