30 Janeiro 2008
O poeta Armando Freitas Filho, nascido no Rio de Janeiro, teve seu livro comercial mais recente, Raro mar (São Paulo: Companhia das Letras), publicado em 2006. Em 2007, porém, ele lançou duas plaquetes, com poemas em edições artesanais, um intitulado “Para um papel” (também publicado na seção Invenção da revista IHU On-Line nº 240) e o outro, "Tercetos na máquina" (publicado pela Espectro Editorial, um selo independente).
“Quando faço essas edições limitadas, fora do circuito comercial, é para experimentar o prazer de publicar um conjunto pequeno de poemas, coisa impossível em uma editora de porte. Dá uma sensação de liberdade. Se puder, nessas edições, contar com as iluminações de um artista plástico ou de um designer, tanto melhor”, afirma Armando, que já lançou a sua obra composta entre 1963 e 2003 no volume Máquina de escrever (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003).
Armando foi amigo pessoal de alguns dos maiores poetas da tradição moderna brasileira, a exemplo de Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, sobre os quais fala na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele comenta também sobre o trabalho da poeta Ana Cristina Cesar, de cuja obra é organizador, sobre o trabalho com artistas plásticos e sobre os poetas que compuseram o movimento marginal, nos anos 1970, no Rio de Janeiro, cidade, aliás, que é uma das imagens preferidas sua poesia, ainda com todos os problemas que enfrenta. Em relação aos poetas marginais, ressalta as diferenças, mas destaca: “vivíamos nas mesmas praias, participávamos de debates públicos etc. Isso leva a uma semelhança de identidade comportamental, e, no meu caso, a uma contaminação mínima, irrelevante, na minha poética. Mas uma coisa eles me ensinaram muito bem: que o poeta pode escrever sem a gravata-borboleta de um formalismo reducionista, que o poeta sua, enfim”. A poesia de Armando “sua”, sem dúvida, com uma temática contundente e imagens trabalhadas com rara elaboração.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em 2003, o senhor publicou a sua obra completa até então, Máquina de escrever. Quais foram as principais mudanças (de conteúdo, estruturais), que percebeu na maneira de construir os poemas de Dual até seu livro mais recente, Raro mar?
Armando Freitas Filho - O meu livro de estréia foi Palavra, em 1963. Dual foi o meu segundo, em 1966. Creio que as principais mudanças, de conteúdo e estruturais, são parecidas com as de um corpo que cresce: força e altura. Ganha músculos, enfim. Pelo menos, é o que se quer, é o que eu vejo e espero que não seja uma ilusão minha, e que os outros vejam também. A luta, então, é torcer para que esses músculos, adquiridos a custo, não sejam ilusórios, não sejam simples gordura.
IHU On-Line - Num texto de Artes e ofícios da poesia, o senhor indica como seus referenciais Drummond, Cabral, Bandeira e Gullar. O que o senhor acredita ter selecionado dos quatro poetas para agregar à sua voz?
Armando Freitas Filho - Neste texto, que chamo de "Três mosqueteiros", Manuel Bandeira (1) é o primeiro mosqueteiro. Gullar é o quarto, o mais jovem, o D`Artagnan. Sumarizando, creio que Bandeira me ensinou o termo exato, a dicção econômica, com ênfase medida. Carlos Drummond (2) me mostrou como é a vida dos sentidos, pessoais e públicos; estou com Hélio Pellegrino (3), que dizia: "não me entenderia direito como ser humano sem a sua poesia". João Cabral (4) veio com a perfeição da fatura, a possibilidade de escrever poemas sem altos e baixos, evidentes. Gullar (5) foi a prova, importante para mim e para minha geração, que é possível, depois desses três mosqueteiros esplêndidos, que uma nova espada, de qualidade, pode ser inventada, forjada, com o que sobrou do aço das três anteriores, juntando a ela o suor da própria esgrima, digamos assim. Tive o privilégio de contar com a leitura e avaliação do meu primeiro livro feita por Manuel Bandeira. Seu estímulo foi fundamental, para dizer o mínimo, para que eu o publicasse. Conversei com ele em sua casa. Com Drummond os encontros foram casuais e epistolares, com exceção do primeiro, na antiga Livraria São José. Com João Cabral foram todos marcados, na sua casa, na Praia do Flamengo. De todos eles foi o mais íntimo meu; intimidade, bem entendida, que se pode ter com um homem 20 anos mais velho, e que passou grande parte da vida fora do Brasil. Com Gullar foram algumas vezes. Já fizemos até uma mesa juntos, na qual debatemos nossa poesia no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil).
IHU On-Line - O senhor vem produzindo plaquetes, como as que lançou recentemente, "Tercetos na máquina" e "Para este papel". Qual é a ligação que faz entre livro e obra de arte? Livro é uma obra de arte? E mais: qual é a influência das artes plásticas em seu trabalho poético?
Armando Freitas Filho - Qualquer livro bom é um suporte de uma obra de arte. Quando faço essas edições limitadas, fora do circuito comercial, é para experimentar o prazer de publicar um conjunto pequeno de poemas, coisa impossível em uma editora de porte. Dá uma sensação de liberdade. Se puder, nessas edições, contar com as iluminações de um artista plástico ou de um designer, tanto melhor. Meu convívio estreito com pintores da minha geração: Rubens Gerchman (6), Roberto Magalhães (7), etc. me tornaram muito permeável às suas invenções: me fizeram levantar a cabeça da mesa e do papel e me ensinaram a abrir melhor os olhos.
IHU On-Line - Ainda se vê fazendo parte de uma geração (o senhor é lembrado, algumas vezes, como um poeta marginal), a de poetas como Cacaso, Ana Cristina Cesar, Chacal, ou isso é apenas uma maneira de tentar rotular seu trabalho? Poderia analisar também o legado da obra de Ana Cristina Cesar, de cuja obra o senhor é o principal organizador?
Armando Freitas Filho - Nunca fui um poeta marginal. Minha poesia nada tem de parecido com a poesia de Cacaso (8) (depois de A palavra cerzida, principalmente). Muito menos com a de Chacal (9). O que posso ter com eles é uma camaradagem pessoal. Afinal, vivíamos nas mesmas praias, participávamos de debates públicos etc. Isso leva a uma semelhança de identidade comportamental, e, no meu caso, a uma contaminação mínima, irrelevante, na minha poética. Mas uma coisa eles me ensinaram muito bem: que o poeta pode escrever sem a gravata-borboleta de um formalismo reducionista, que o poeta sua, enfim. Ana Cristina Cesar (10) também não era uma poeta marginal. A maior prova disso é a sua obra “oblíqua e dissimulada”, que é diferente da revelação polaróide, instantânea, chapada, dos poemas marginais. Minha ligação com ela foi intensa: pessoal e literária. Seu legado é permanente, está muito além do curto tempo em que ela viveu: Ana C. é um dos poetas mais vivos e atuantes que possuímos. Ana C. é para sempre.
IHU On-Line - O seu trabalho, sobretudo Raro mar, vem apresentando poemas com uma aguda observação sobre o cotidiano e a realidade do Rio de Janeiro, contrapondo-se às belezas do Rio de Janeiro que víamos em Vinicius de Moraes, embora ele tenha vivido em outra época. O poeta deve tomar uma posição social ainda no mundo atual?
Armando Freitas Filho - Se tiver esse impulso, sim. Mas não custa lembrar que o Vinicius (11) das “belezas do Rio” está mais nas canções do que na sua poesia escrita. "Operário em construção", por exemplo, é um magnífico poema engajado na luta social. Orfeu do carnaval, no teatro e no cinema, seguem a mesma trilha, assim como o outro musical, Pobre menina rica, e mesmo em algumas canções, com Carlos Lyra (12) e Baden Powell (13), essa preocupação engajada, aparece. Vinicius é um poeta e um ser humano enorme, multifacetado.
IHU On-Line - O senhor, nos anos 1960, teve poemas proibidos pela ditadura militar. A arte continua sendo uma ameaça ao establishment, guardadas as diferenças com aquela época?
Armando Freitas Filho - Tive que autocensurar-me, sim. A editora que ia publicar meu livro (o poeta se refere a Marca registrada, de 1970) se recusou a fazê-lo. Tive que procurar outra, com o livro já expurgado dos poemas “mais perigosos”. Acho que a boa arte sempre traz para o establishment uma insegurança, um vírus qualquer, já que ela se escreve, sempre, por natureza intrínseca, a contrapelo, nas entrelinhas do discurso estabelecido.
IHU On-Line - O filósofo Giorgio Agamben (14) fala sobre o estado de exceção na sociedade moderna e o senhor lida em seus versos de Raro mar, sobretudo, com fatos remetendo à violência. Como o senhor enxerga um estado que parece ignorar as leis? É possível, por meio da poesia, oferecer uma luz, uma saída para o ser humano, ou isso é uma utopia?
Armando Freitas Filho - O estado contemporâneo é parodoxal, pois só se realiza plenamente quando ignora as leis feitas para controlá-lo. Esta desobediência faz parte do processo interno do seu desenvolvimento, onde construção e destruição como que perderam o espaço entre elas e acontecem, muitas vezes, concomitantemente, ou num período de tempo muito curto, que a história não consegue abarcar e nomear, de maneira satisfatória. A barbárie, que ocorre em maior ou menor grau, com mais ou menos freqüência, dependendo do estágio da civilização de cada sociedade, é uma espécie de respiradouro, aberto à força, por onde as tensões acumuladas e não resolvidas, suficientemente, alcançam suas vias de escape, até a próxima explosão. O poema moderno é uma composição complexa, um instrumento de ponta da linguagem, que pode, juntamente com outros procedimentos, trazer não só luz e saída, mas utopia constante, que funcionaria como uma espécie de motor ou moto-contínuo de resistência e esperança.
IHU On-Line - Alguns de seus poemas possuem um viés metalingüístico, o que para alguns críticos indicam um traço formalista. Acredita que há uma separação entre experiência individual, empirismo, e a linguagem?
Armando Freitas Filho - Em primeiro lugar, não temo a palavra ou a qualificação de formalista em si. Se o formalismo vier de uma fonte de boa cepa e se for bem administrado, tudo bem. Espero que o meu formalismo “malhado” tenha uma taxa aceitável desses atributos. Não acredito que haja uma separação explícita nos elementos que cita. Acredito, isso sim, que formam uma espécie de trança, um cabo de força da expressão. Tanto em prosa quanto em poesia só há, no fundo, um personagem: a linguagem imantada por suas voltagens internas e externas.
IHU On-Line - Pode nos falar um pouco sobre seus projetos atuais ou futuros?
Armando Freitas Filho - Esse ano deve sair minha primeira antologia no Brasil (já tenho uma em Portugal) organizada e prefaciada por Heloisa Buarque de Hollanda (15). Em 2009, o meu novo livro, Lar, vai ser publicado. Trata-se de uma coletânea importante para mim, pois introduzo na minha poesia uma cota de narratividade a que ela não está acostumada. Escrevo esse livro há mais de quatro anos e, até onde um autor pode enxergar na sua quase cegueira, o resultado me parece forte, razoável. Vamos ver o que os outros acham. Para finalizar, esse relato, o cineasta Walter Carvalho (16) faz um documentário sobre mim, sobre minha poesia; ele pretende aprontá-lo para 2009.
Notas
(1) Manuel Bandeira foi um poeta modernista, autor de livros como Libertinagem.
(2) Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos principais poetas da literatura brasileira devido à repercussão e alcance de suas obras. Nasceu em Minas Gerais e formou-se em em farmácia. Com Emílio Moura e outros companheiros, fundou A Revista para divulgar o modernismo no Brasil. Drummond, como os modernistas, proclama a liberdade das palavras, uma libertação do idioma que autoriza modelação poética à margem das convenções usuais. Segue a libertação proposta por Mário de Andrade; com a instituição do verso livre, acentua-se a libertação do ritmo, mostrando que este não depende de um metro fixo. Sobre o autor, a IHU On-Line dedicou a edição 232, intitulada Carlos Drummond de Andrade: o poeta e escritor que detinha o sentimento do mundo.
(3) Hélio Pellegrino foi um escritor e psicanalista brasileiro.
(4) João Cabral de Melo Neto foi um poeta pernambucano, autor de obras como Morte e vida Severina, Uma faca só lâmina, A educação pela pedra, A escola das facas e Agrestes.
(5) Ferreira Gullar é um poeta, crítico de arte, biógrafo, memorialista e ensaísta brasileiro. É autor de livros como A luta corporal e Dentro da noite veloz.
(6) Rubens Gerchman foi um pintor e escultor brasileiro, influenciado pelo concretismo e neoconcretismo.
(7) Roberto Magalhães foi um dos principais pintor da geração dos anos 1970.
(8) Cacaso foi um poeta marginal, cuja obra completa foi lançada no volume Lero-lero (São Paulo: Cosac & Naify).
(9) Chacal é um poeta carioca, um dos principais autores da linha marginal. Sua obra completa foi lançada recentemente, no volume Belvedere (São Paulo: CosacNaify).
(10) Ana Cristina Cesar foi um poeta brasileira, autora de obras como A teus pés, Inéditos e dispersos e Crítica e tradução, todos lançados pela Ática e pela Fundação Moreira Salles.
(11) Vinicius de Moraes foi um poeta essencialmente lírico. Notabilizou-se pelos seus sonetos, forma poética que se tornou quase associada ao seu nome.
(12) Carlos Lyra é um cantor e letrista brasileiro.
(13) Baden Powell é um músico brasileiro.
(14) Giorgio Agamben nasceu em Roma, em 1942. Formado em Direito, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, é responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin . Foi professor da Universitá Di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política de segurança do governo norte-americano. Atualmente leciona Estética na Facoltà Di Design e Arti della IUAV (Veneza). Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Infância e história, Estâncias, A linguagem e a morte e Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua I (todos lançados pela editora UFMG) e Estado de exceção e Profanações (lançados pela Boitempo). Leia também a edição 81 da Revista IHU On-Line sobre Estado de exceção e vida nua, baseado nas teorias de Agamben.
(15) Heloisa Buarque de Hollanda é uma crítica carioca, autora de, entre outros livros, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/70).
(16) Walter Carvalho é um cineasta e fotógrafo brasileiro, responsável por filmes como Cazuza – O tempo não pára, ao lado de Sandra Werneck. Fez a fotografia de filmes como Carandiru e O céu de Suely.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"O poema moderno pode trazer uma utopia constante". Entrevista especial com Armando Freitas Filho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU