02 Março 2024
Ultradireita dá demonstração de força, mas talvez já conte perder sua principal referência. Falas de Malafaia e Michelle sugerem aposta no pleito de outubro, com discurso apoiado em hipocrisia moral e fundamentalismo religioso.
O artigo é de Glauco Faria, publicado por Outras Palavras, 26-02-2024.
Glauco Faria é jornalista, ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Coautor do livro Bernie Sanders: a revolução política além do voto.
A manifestação da Avenida Paulista, realizada neste domingo (25), atendeu a algumas das necessidades mais urgentes de Bolsonaro em um cenário no qual a sua condenação e posterior prisão passam a ser dadas como favas contadas. Primeiro, como o próprio ex-presidente disse em seu discurso, retratou, em “uma imagem para o Brasil e para o mundo”, que a extrema direita ainda tem poder de mobilização, embora tenha sido um ato nitidamente inferior a outros realizados pela base bolsonarista. Há três razões para o declínio: o cenário adverso do ponto de vista político, a ausência dos grandes financiadores, hoje temerosos em relação ao que pode vir das investigações da Polícia Federal sobre a irrigação de recursos para sustentar o golpismo, e o de não estarem mais à frente do Executivo federal.
Se antes eram eventos pulverizados em várias cidades, ontem foi São Paulo o centro imagético que provaria a resistência da extrema direita brasileira. Mais do que o número de presentes em si, calculados em aproximados 185 mil, segundo grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), é importante observar o sentido e as mensagens veiculadas durante o ato, que apontam para o que será do bolsonarismo, caso se veja sem a figura que dá nome ao movimento.
O primeiro sentido político é bem evidente: buscar anistia e insistir na tese de que não houve tentativa de golpe, a despeito de toda a apuração feita até agora pelas autoridades policiais. Bolsonaro se referiu mais de uma vez às pessoas que participaram dos acampamentos e do 8 de Janeiro como “pobres coitados”. “O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar maneira de vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados. É, por parte do parlamento brasileiro, uma anistia para os pobres coitados que estão presos em Brasília”, disse.
Há projetos no Congresso Nacional, como o do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), para anistiar pessoas envolvidas no 8 de Janeiro, mas, além da pouca viabilidade política de apreciação e aprovação nas duas casas legislativas, juristas apontam que qualquer iniciativa de anistia para crimes contra o Estado democrático de direito é inconstitucional. Mesmo assim, Bolsonaro tenta fazer o que sempre fez (com relativo sucesso, dada a adoção por parte da mídia comercial do jornalismo declaratório e pela busca de audiência): pautar a agenda política e se fazer de vítima de perseguição.
O mais longo discurso na manifestação foi o do pastor Silas Malafaia, responsável pelo aluguel dos trios elétricos e principal organizador do ato. A sua fala foi a mais efetiva em costurar uma versão que amalgamou fake news, recortes descontextualizados de fatos e declarações de terceiros e informações distorcidas para contar uma história sobre uma suposta “engenharia do mal” articulada para perseguir Bolsonaro.
Em seu revisionismo de um passado recente, retratou o ex-presidente como alguém que havia fumado o “cachimbo da paz”, após suas declarações de que não respeitaria mais decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, dadas em 7 de setembro de 2021. Na fábula de Malafaia, o então chefe do Executivo ficou “em silêncio absoluto” após a derrota nas eleições de 2022, foi aos EUA no final de seu mandato e “não falou de ninguém”, como se fosse um resoluto respeitador do pleito eleitoral, e não alguém que não só tramava um golpe, mas que também havia feito um discurso dúbio no fim do seu mandato, dizendo, entre outras coisas, que “as Forças Armadas deviam lealdade ao povo”.
Se Bolsonaro não podia atacar o STF, coube a Malafaia fazê-lo, com sua ficção da tal “engenharia do mal” e também ao apontar que Alexandre de Moraes teria “sangue nas mãos” em função da morte de um dos presos pelos ataques golpistas de 8 de Janeiro que estava na Penitenciária da Papuda. O pastor afirmou que o ministro “vai dar conta a Deus”. Não é a primeira vez que ele diz isso. Para passar a imagem de um Bolsonaro sereno, foi o pastor que encarnou a virulência que forja inimigos e amarra o discurso permeado de ódio que tem o poder de mobilizar.
Ainda que seja um líder de igreja, não foi de Malafaia o discurso com maior teor religioso, e sim o da ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro. Ela discursou por quase 16 minutos, em uma fala que misturou pregação, oração, citações bíblicas e política.
Deus teve o nome mencionado 32 vezes por ela, com referências, também na casa das dezenas, ao termo “Senhor”, que esteve presente em frases como “o Brasil é do Senhor”. “Meu marido foi escolhido e declarou que era Deus acima de todos. Se é difícil com Deus, é impossível sem Ele”, disse ainda, sempre em tom choroso, fazendo da trajetória do cônjuge uma espécie de jornada do herói.
O momento mais emblemático, no entanto, talvez tenha sido o trecho em que condenou quem havia dito que “não poderiam misturar política com religião, e o mal ocupou o espaço”. Em seguida, clamou: “chegou o momento da libertação”. Ali, Michelle não só fez uma espécie de autorização para si a respeito da junção entre religião e política, posicionando-se como alguém que encarna esse ideário, mas também legitimou tal união como uma forma de combater o que chama de “mal”. Ela também agradeceu ao pastor Malafaia pela “mobilização”.
Michelle tomou a palavra por um tempo quase duas vezes e meia maior do que o discurso do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que em seu discurso divulgou conquistas do governo anterior que não eram dele, como o Pix. “Quem eu era, não era ninguém. E o presidente apostou em pessoas como eu e tantos outros que surgiram que tiveram posição de destaque porque ele acreditou”, disse, reforçando seu vínculo com o ex-chefe. Mas mostrou dificuldades em realizar uma comunicação mais direta com o público, falando do “desafio da representatividade que só vai ser vencido com liberdade” ou do “desafio da segurança jurídica para que a gente tenha previsibilidade”. Nada que anime qualquer tipo de plateia.
No evento, a diferença entre Michelle e Tarcísio era nítida: enquanto uma figura tinha o poder de atrair e agitar a base do ex-presidente, encarnada no fervor religioso que se torna ainda mais protagonista, o outro era o aceno à elite econômica e àqueles que não se importam com pendores autoritários ou mesmo com o frágil arranjo democrático brasileiro, sempre dispostos a abraçar o extremismo se lhes for conveniente.
O ato serviu para mostrar quais são os caminhos de um bolsonarismo que não terá Bolsonaro, já que hoje ele está inelegível e tem um caminho tortuoso em termos judiciais por conta de uma tentativa de golpe de Estado. O braço religioso da base extremista se fortaleceu e é hoje a avalista da sobrevivência desse segmento.
A Justiça, ao enquadrar militares de alta patente, enfraqueceu o ímpeto das Forças Armadas que, em uma espécie de política de redução de danos, buscam isolar os golpistas mais notórios para preservar sua imagem e seu poder de influência. Contam, para isso, com parte da mídia comercial e com aliados importantes nos Três Poderes. Isso, no entanto, acarreta perda de espaço no bolsonarismo, tanto do ponto vista das figuras que seriam protagonistas como na organicidade que sustenta o extremismo.
E esse vácuo já está sendo ocupado por Malafaia e outras lideranças do meio. Não à toa, Bolsonaro disse em seu discurso que era preciso ter atenção para votar nos “vereadores”, que em sua fala vieram antes mesmo dos prefeitos. Grupos evangélicos neopentecostais mobilizaram-se para as eleições dos conselheiros tutelares, em 2023, também para fomentar candidaturas às Câmaras de vereadores em 2024, projetando voos legislativos mais altos daqui a dois anos. O projeto de expansão da base de fiéis se relaciona com o aumento da participação política em nível institucional e o ato de domingo evidenciou que será o bolsonarismo a mola propulsora desse objetivo.
A anistia e a falta de uma justiça efetiva de transição democrática deram ao Brasil um governo de militares eleito pela via direta. Agora, as isenções tributárias, a falta de controle sobre movimentações financeiras de denominações religiosas, as vistas grossas diante de seu controle sobre veículos de comunicação, além da imunidade de lideranças que podem falar absolutamente qualquer coisa em seus púlpitos (o que inclui propaganda política irregular e destilação de toda sorte de preconceitos) podem legar ao país mais um elemento destinado a corroer seu tecido institucional.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Eleições e religião: a nova aposta do bolsonarismo. Artigo de Glauco Faria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU