29 Janeiro 2024
Expansão da energia eólica e solar no Nordeste promove desmatamento e gera conflitos entre empresas e comunidades.
A reportagem é de Kevin Damasio, publicada por ((o))eco, 25-01-2024.
A Caatinga é o foco da expansão das energias renováveis no Brasil, que acontece em ritmo acelerado desde 2011 e alçou o país ao posto de sexto maior produtor de energia eólica e oitavo em solar. Com ventos fortes e alta irradiação, o único bioma totalmente brasileiro tem puxado esse crescimento das matrizes eólica e fotovoltaica, com 35,35 dos 38,71 gigawatts (GW) de potência instalada no Brasil – quase um quinto da capacidade energética nacional em 2023, conforme a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Esse potencial deve quintuplicar em um futuro próximo. Nos estados da Caatinga, já são 873 parques eólicos em operação e mais 620 em construção, que somam uma potência de 51 GW. O cenário é promissor também para a energia solar, que pode chegar a 130,82 GW de capacidade com as 3.140 centrais fotovoltaicas em operação e as 2.787 em obras. Quase metade dos empreendimentos concentra-se na Bahia e no Rio Grande do Norte.
Esse potencial presente e futuro contribui para os esforços de redução de emissões no contexto da emergência climática. Por outro lado, setores da sociedade civil e da ciência têm chamado a atenção para ajustes necessários nesta rota de expansão, de modo a garantir que haja uma transição energética justa e inclusiva.
Normalmente, os empreendimentos procuram os ventos das serras da Caatinga, que são refúgios da biodiversidade, ou desmatam extensas áreas de vegetação nativa para dar lugar às fazendas solares. Do ponto de vista social, comunidades locais demandam mais transparência e participação nas relações com as empresas e os tomadores de decisão, além de contratos mais equilibrados.
“Está tendo um grande boom desses investimentos, principalmente no Nordeste. Mas temos que ver como isso tem sido pensado”, pondera Fabiana Couto, articuladora política da iniciativa Plano Nordeste Potência. “Precisa ser feito com mais planejamento, com reconhecimento às comunidades tradicionais, com respeito à presença das populações nos territórios.”
A expansão das renováveis no Nordeste começou pelas eólicas. Em 2004, o ProInfa, um programa de fontes alternativas que abrangeu eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas, contribuiu para estruturar as bases do setor em termos de licenciamento ambiental e nacionalização da cadeia produtiva. Mas principalmente jogou luz ao potencial dos ventos brasileiros.
“Do litoral até o semiárido, o Nordeste tem um potencial eólico sensacional. É onde tem um vento veloz, com poucas variações e praticamente unidirecional”, observa Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) e vice-presidente do Conselho Global de Energia Eólica (GWEC). “O vento unidirecional faz com que a turbina não tenha que ficar virando tanto para buscar o vento. Isso faz com que ela produza mais.”
Os ventos no Nordeste são fortes, de 8 a 12 metros por segundo, e constantes ao longo do dia, o que, na avaliação de Gannoum, os tornam “os melhores do mundo”. “É até melhor no interior do que no litoral, porque sofre a influência do oceano Atlântico – os ventos alísios entram exatamente naquela região da Bahia, do Piauí e do Rio Grande do Norte.”
Os leilões anuais de contratação de energia eólica começaram em 2009 e logo os investimentos ganharam força, com uma média de crescimento anual de 1,74 GW de 2011 a 2019.
Segundo dados da ANEEL, em média 87 novas usinas eólicas foram instaladas no Brasil por ano, de 2014 a 2023 – nos dez anos anteriores, a média anual foi de 10.
“Em 2017, a energia eólica se tornou a fonte de energia mais barata do país – mais do que as hidrelétricas”, diz Gannoum. Na visão da presidente da ABEEólica, a expansão da indústria foi movida pela competitividade da matriz, pelos leilões e pela Política de Conteúdo Local, na qual o BNDES exige, para apoio financeiro, que em torno de 80% da turbina seja fabricada no Brasil.
Em 2023, as eólicas injetaram 13,12% da energia do Sistema Interligado Nacional (SIN) e impulsionaram metade da expansão de 10,3 GW da matriz energética brasileira. “A energia eólica tende a continuar nessa trajetória de crescimentos sendo a fonte de grande porte que mais cresce no país”, ela considera, tendo em vista as metas de neutralidade das emissões de carbono até 2050.
Em dezembro de 2023, o Brasil e mais 117 países se comprometeram a triplicar a capacidade instalada de energias renováveis, na COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes. Os investimentos já se traduziram no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com R$ 75,7 bilhões para 343 empreendimentos em transição e segurança energética. Entre eles, estão 120 usinas eólicas e 196 parques solares, concentrados principalmente no Nordeste – e na Caatinga.
“A energia renovável é, na minha visão, a indústria sem água que pode ser instalada no semiárido”, considera Sérgio Xavier, coordenador do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), do Governo Federal. “Nós já temos um déficit hídrico que no futuro vai se agravar com as mudanças climáticas, com elevação de temperatura, redução de chuva.”
Em 2011, Xavier era secretário de Meio Ambiente de Pernambuco quando as eólicas começaram a chegar com força no Nordeste, seguida pela solar. “Estava todo mundo apressado para ter licença rápida, dizendo que a energia renovável é muito importante. Mas a gente dizia que tinha que ser feito com rigor, olhando a dimensão social e ambiental”, ele recorda.
No âmbito do licenciamento, a secretaria realizou um mapeamento do estado. Considerou que a expansão poderia ocorrer em áreas em processo de desertificação, degradadas ou que precisavam de recomposição florestal. Já áreas de importância biológica exigiram um licenciamento “muito rigoroso”, a exemplo das serras visadas pelos empreendimentos, mas com “espécies que nem foram estudadas”.
Diante deste novo ciclo de crescimento do setor, Xavier considera que os estados ainda carecem de um zoneamento, para aliar a produção energética e a conservação. “O Nordeste precisa definir quais são aquelas áreas em que é muito bem-vindo chegar projeto eólico e solar e, no licenciamento, criar um conjunto de condições com uma visão integral, que inclua as comunidades locais no processo e agregue na regeneração da Caatinga”, avalia.
O FBMC está em processo de reestruturação. Em fevereiro, os trabalhos terão início com 24 câmaras técnicas temáticas. No grupo de transição energética, o objetivo é reunir representantes dos governos, empresas, academia e sociedade civil, e formular propostas para o Governo Federal, os governos e fóruns estaduais e outros atores do setor, como a ANEEL e a Empresa de Pesquisa Energética.
“A prioridade maior é fortalecer a relação com as comunidades. Criar canais, processos e modelos em que sejam efetivamente ouvidas e sejam beneficiadas”, ressalta Xavier. “Hoje, grande parte dos empreendimentos geram uma série de problemas de injustiça social, contratos desequilibrados que não respeitam as pessoas mais frágeis, e não estão melhorando os indicadores sociais. O desenvolvimento precisa ser positivo na economia, na rentabilidade das empresas e na evolução social, redução da pobreza, proteção e, sobretudo, regeneração ambiental.”
O Plano Nordeste Potência, iniciativa de organizações da sociedade civil, foi lançado em julho de 2022 e apresenta propostas para que as energias renováveis cheguem “de uma forma justa e inclusiva”, diz Fabiana Couto. Para esse avanço se dar de maneira adequada, o plano estabelece cinco eixos de ação: gestão pública direta, capacitação de mão de obra, participação social, geração distribuída de energia renovável e ações na bacia do rio São Francisco.
Para Couto, os parques eólicos e solares são primordiais para o projeto de desenvolvimento verde da região. O plano avalia que os empreendimentos já outorgados e em construção representam dois milhões de empregos.
Uma das propostas principais é o desenvolvimento participativo de um zoneamento econômico ecológico social (ZEES), para que os estados definam “áreas mais aproveitáveis” do ponto de vista energético e “cartografias sociais para identificar onde estão esses territórios e quem está neles”, para “implementar empreendimentos em locais com menores impactos socioambientais”. “É um ponto base para conseguir avançar de uma forma mais justa para as populações. A maioria dos estados ainda não tem. Alguns estão mais avançados, como o Ceará e o Rio Grande do Norte”, observa Couto.
A participação social, por sua vez, abrange a inclusão da população nas discussões em fóruns permanentes, “para democratizar a informação sobre o que são os projetos solares e eólicos e as linhas de transmissão, e assim garantir direitos de identidade e permanência dessas populações sobre o território.”
Em 31 de janeiro, comunidades locais atingidas no Nordeste vão lançar o documento “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável”. Após dois anos de discussões sobre os impactos enfrentados, elas chegaram a mais de cem recomendações para os setores público e privado tornarem esta uma transição energética justa e inclusiva, com efetiva redução de impactos dos parques ao meio ambiente e às populações locais. O lançamento acontecerá em uma audiência virtual, com representantes das comunidades e órgãos como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União.
O Plano Nordeste Potência apoiou no desenvolvimento e vai atuar na apresentação aos órgãos tomadores de decisão. Segundo Couto, os pontos centrais do documento são os contratos de arrendamento de terra entre empresas e populações locais, o licenciamento ambiental e as outorgas. “Muita coisa tem sido discutida em termos de consulta livre, prévia e informada, prevista na Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169; violação de direitos da terra, respeito aos modos de vida tradicionais. A consulta a essas comunidades, principalmente indígenas e tradicionais, tem sido renegada”, destaca Couto.
“Com todos os incentivos que estão sendo dados para energia solar, eólica e, agora, hidrogênio verde, é extremamente necessário ter os marcos regulatórios, para regulamentar toda essa expansão nesse sentido. Projetos de lei em andamento das eólicas, do hidrogênio verde, que são muito positivos e fazem com que o Nordeste avance nessas questões e seja protagonista”, continua Couto.
Elbia Gannoum, presidente da ABEEólica, considera que “o Brasil já tem um aparato legal muito firme na indústria de energia”. Os estados são os responsáveis por estabelecer a legislação para projetos eólicos, mas precisam seguir as diretrizes federais.
No licenciamento ambiental, os órgãos estaduais devem adotar duas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) para empreendimentos elétricos: a 279, simplificada, no caso de impacto ambiental de pequeno porte, e a 462, publicada em 2014, específica para eólicas e que estabelece condições em que a empresa precisa apresentar o estudo e relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) – entre elas, para parques em locais que geram impactos socioambientais ou em áreas com presença da espécies ameaçadas de extinção e endemismo.
Para Gannoum, o que precisa é de uma evolução do aparato regulatório, “falando de social e ambiental”. “Na medida em que a sociedade e a indústria evoluem, é importante ajustar. É muito importante que a legislação global – não só do Brasil – traga um aparato social mais forte, que consiga incluir na pauta o conceito de transição energética justa”, diz. “O que nós estamos discutindo hoje é justamente modernizar toda a legislação”.
Em abril de 2023, o Ministério Público Federal da Bahia suspendeu a licença da empresa francesa Voltalia para as obras no Complexo Eólico de Canudos, na região do Raso da Catarina. A decisão foi motivada por manifestação de associações das comunidades locais, que denunciavam “considerável supressão da vegetação nativa” e “implicação sobre a fauna local, principalmente na criação de animais”, bem como porque “a área afetada faz parte da rota da arara-azul-de-lear”, uma espécie endêmica da Caatinga. O MPF-BA entendeu que o licenciamento “não poderia ter sido considerado empreendimento eólico de baixo impacto ambiental”. Contudo, em julho a Justiça da Bahia autorizou a retomada das obras – que já se encontravam em fase final – e a Voltalia apresentou o EIA/RIMA em novembro, com programas de conservação.
“Pelas especificações iniciais, o projeto realmente não precisava de EIA/RIMA”, acredita Gannoum. “O processo ambiental tem aprendizado. Mesmo que não tenha pedido um licenciamento fundamentado no EIA/RIMA, a Voltali fez estudos no mesmo nível e conseguiu desenrolar o processo ali no final.”
Para Rárisson Sampaio, membro da LACLIMA, associação de advogados de mudanças climáticas na América Latina, o caso do Raso da Catarina é um exemplo de que “o licenciamento no Brasil tende a favorecer mais as empresas, no desentrave desses empreendimentos”. “Na maioria dos casos não é uma decisão terminativa”, diz o advogado, que estudou as relações entre empresas e comunidades no mestrado em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Com esses processos simplificados, o que vemos hoje é um distanciamento de análises dos impactos sociais, porque em muitos casos ou esses estudos são inexistentes pelo empreendimento, ou são muito superficiais e não consideram efetivamente como essas comunidades serão impactadas.”
Para implantar parques eólicos ou solares, as empresas muitas vezes recorrem ao arrendamento de terras de pequenos proprietários. A concessão do direito de uso é feita por contratos privados, uma relação que foi investigada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com o Nordeste Potência. No relatório, Sampaio analisou 50 contratos feitos de 2008 a 2018 entre empresas eólicas e comunidades. “O que nós materializamos é essa assimetria, um desequilíbrio contratual muito grande, em que a população assina um documento sob uma promessa de renda, mas na prática acaba sendo diferente do que é prometido”, ele aponta.
O aspecto econômico lhe chamou a atenção. Para a instalação dos empreendimentos, negocia-se o pagamento por hectare, ou por energia produzida na propriedade, porém a valores “ínfimos, irrisórios”. “No pior caso que presenciamos, esses contratos reverteram cerca de R$ 1, R$ 2 por hectare, para pequenas propriedades de até 100 hectares. é um valor mensal de R$ 100 pelo uso da terra.”
Sampaio também destaca cláusulas que estabelecem multas altas por quebras contratuais apenas em caso de desistência dos proprietários. “Se, por alguma razão, a família se arrepende e desiste do contrato, é fixada uma multa milionária diretamente, como alguns contratos colocam, ou associam ao valor do empreendimento, que é milionário”, avalia. “Na prática, tem uma captação da terra por meio desses contratos, que vão manter a propriedade com a população, mas o domínio com a empresa.”
Para Sampaio, contratos mais justos para parques eólicos e solares começam por um diálogo de maneira coletiva, e não individual. Em agosto de 2023, o estado da Paraíba determinou a realização de consulta livre, prévia e informada para a concessão de licenças de instalação de empreendimentos de energia renovável em territórios quilombolas, indígenas, comunidades tradicionais e assentamentos de reforma agrária.
“É inadmissível ter um estado que gera energia renovável, limpa, em grande quantidade e ainda tenha um contingente da população em situação de vulnerabilidade social e pobreza energética, algo que vemos muito na região”, considera o advogado.
Em 2023, a ABEEólica desenvolveu um diagnóstico dos problemas enfrentados pelas comunidades e está implementando um plano de ação. Uma das medidas é a elaboração de um guia de boas práticas, que será lançado até fevereiro, junto a uma certificação. Para Gannoum, houve uma evolução nas relações contratuais, mas o tema é uma das prioridades do manual destinado às empresas.
A proximidade dos aerogeradores das casas é outro eixo, ainda que sejam “poucos que têm esse tipo de situação”, sendo a maioria “parques mais antigos”, segundo a presidente.
“Muitas empresas já aplicaram melhorias. No caso de Caetés, em Pernambuco, era o problema mais gritante, de parques a 100 metros. As empresas que compraram recentemente os parques fizeram um programa e solucionaram esses problemas das famílias”, diz Gannoum. “Hoje, a legislação está trabalhando com 400 metros de distância, e não é só esse critério. O aprendizado nos mostrou que o ruído se modifica dependendo da região, da circunstância do local, se tem serra ou não, o tipo de vegetação.”
O MapBiomas detectou que os empreendimentos de energia renovável já são o segundo maior vetor de desmatamento da Caatinga. Desde 2020, a plataforma emitiu 121 alertas de desmatamento que compreenderam uma área de 8 mil hectares, atrás apenas da agropecuária – o equivalente a sete campos de futebol por dia. Ceará (1,76 mil ha), Pernambuco (1,6 mil ha) e Rio Grande do Norte (1,55 mil ha) lideram o ranking. Nos últimos dois anos ocorreu 88% dessa supressão vegetal.
Segundo Washington Rocha, coordenador do MapBiomas Caatinga, a alta expressiva do desmatamento está relacionada ao aumento dos investimentos para a ampliação dessa infraestrutura. Nos últimos quatro anos, foram instalados no Brasil 14.403 novas usinas fotovoltaicas e 349 parques eólicos. “Só no Ceará, até julho de 2023, havia 31 novos memorandos de entendimento entre empresas, alcançando a cifra de 30 bilhões de dólares investidos somente no estado”, observa Rocha.
“Os empreendimentos de energias renováveis têm uma questão de seletividade na sua locação. A geração de parques eólicos onshore, no interior, se dá em áreas elevadas, os topos de serra, onde tem maior velocidade dos ventos”, explica Rocha. “É crítico porque se instala em áreas com maior preservação de vegetação nativa da Caatinga. Muitos desses topos são refúgios ecológicos de espécies, com muita mata fechada, e importantes para a recarga hídrica das nascentes e dos rios.”
Para os parques solares, por sua vez, o desmatamento ocorre em maior escala. O SAD Caatinga ainda não caracteriza o tipo de empreendimento renovável (eólico ou solar) – essa adaptação dos algoritmos é uma das metas do MapBiomas para 2024, diz Rocha. No entanto, ((o))eco identificou pelas imagens de satélite que os dez maiores desmatamentos desde 2020 deram lugar a parques fotovoltaicos.
“As usinas fotovoltaicas podiam ter um melhor critério de alocação. Existe uma vastidão de áreas que poderiam ser utilizadas para essa geração, entre elas pastagens degradadas”, observa Rocha. “Essa energia demanda áreas maiores, então isso se torna crítico se precisar desmatar.”
Os municípios de São José do Belmonte (PE), Brasileira (PI) e Santa Luzia (PB) lideraram o ranking com, respectivamente, 1.513,3 ha, 998,2 ha e 887,3 ha de vegetação suprimida. O MapBiomas ainda detectou desmatamento de 998 ha na Área de Proteção Ambiental (APA) Serra da Ibiapaba (PI); 190 ha na APA do Boqueirão da Onça (BA), 131 ha na APA da Chapada do Araripe (PI) e 25,7 ha na APA da Lagoa de Itaparica (BA).
Para Rocha, a instalação dos empreendimentos deve estar atenta às áreas susceptíveis à desertificação no semiárido, mapeadas pelo Ministério do Meio Ambiente, para que os parques não se sobreponham a esses locais. “Hoje, temos seis núcleos principais de desertificação já reconhecidos há algumas décadas. Temos monitorado esses núcleos e em alguns deles, como o de Cabrobó, em Pernambuco, notamos uma expansão. Desmatar uma área que já apresenta fragilidades naturais e históricas pode levar a um desencadeamento do processo de desertificação.”
No Norte da Bahia, o Boqueirão da Onça representa o elo de um dos maiores contínuos de vegetação nativa da Caatinga. Esta área de 900 mil hectares se conecta, ao norte, com a Serra da Capivara e a Serra das Confusões, no Piauí, e, ao sul, com o Parque Estadual Morro do Chapéu e a Chapada Diamantina, no estado baiano. Desde 2018, o Boqueirão da Onça é protegido por um parque nacional (347 mil hectares) e uma área de proteção ambiental (505 mil hectares). Mas a fragmentação e mudanças do uso do solo têm ameaçado essa conectividade.
“Esses corredores ecológicos são importantes para diversas espécies da fauna, para ajudar nos fluxos gênicos”, observa Carolina Esteves, bióloga e co-fundadora do Programa Amigos da Onça, do Instituto Pró-Carnívoros. “Os grandes felinos necessitam de grandes áreas para buscar recursos, como água, alimento, abrigo, e manter sua área de vida.”
Esteves, especialista em ecologia e conservação de mamíferos de médio e grande porte, trabalha na região do Boqueirão da Onça desde 2012. O lugar é o habitat de parte das últimas populações de onças da Caatinga – estima-se que, no bioma, ainda vivam 250 onças-pintadas e 2.500 onças-pardas.
No Programa Amigos da Onça, os estudos aprofundaram o conhecimento científico sobre os grandes felinos da Caatinga, por meio do monitoramento por telemetria, exames e coleta de material biológico na captura para a instalação dos rádio-colares e armadilhas fotográficas.
Esteves destaca algumas particularidades físicas e comportamentais nas onças da Caatinga: são menores, devido à termorregulação exigida pelo clima semiárido; os pelos das patas são mais grossos, para se adaptar ao solo mais quente; as vibrissas, os bigodes que ajudam na percepção sensorial dos felinos no ambiente, são mais duros. Além disso, os dados de monitoramento mostraram que as onças percorrem uma área de vida de mais de 10 mil hectares – superior ao deslocamento nos demais biomas.
Quando o programa começou, os principais problemas da conservação consistiam em conflitos entre a população do entorno e as onças. Mas logo chegaram os empreendimentos renováveis. “Hoje, são quatro complexos eólicos, com duas mil torres, dois em expansão e seis para serem instalados”, conta a bióloga.
Em 2022, os três alertas de desmatamento do MapBiomas dentro da APA envolveram o Complexo Fotovoltaico Apia, parque de 3 mil hectares que se instalou sem a ciência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em maio passado, o Ministério Público Estadual da Bahia determinou que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) adote medidas de proteção às UCs no Boqueirão da Onça, informe o ICMBio sobre o processo de licenciamento ambiental e adote a Resolução nº 428 do Conama.
O programa Amigos da Onça ainda não conseguiu entender todos os efeitos diretos e indiretos das usinas sobre a fauna. “A chegada desses empreendimentos é bem mais rápida do que as pesquisas e os estudos sobre o impacto na fauna conseguem elucidar”, nota Esteves. Mas há alguns sinais.
Em 2017, no período de instalação de um dos parques, a equipe monitorava a onça-parda Vitória. “Durante dez meses, em nenhum momento ela cruzou a linha que forma os aerogeradores – em torno de 90 na época”, lembra Esteves. “Ela rodeava o parque, precisava se movimentar numa área muito maior para ir atrás dos seus recursos. Isso traz um gasto energético muito grande para o animal, em um ambiente semiárido, com altas temperaturas do ar e do solo e baixos índices de chuva.”
Na instalação, a abertura de estrada para locais antes inacessíveis, junto ao aumento do tráfego de veículos e pessoas, coincidiu com relatos mais frequentes de moradores das comunidades do entorno da APA sobre o avistamento de onças.
“Os empreendimentos eólicos ocorrem no topo das serras, porque os ventos são melhores, mas estão na área de vida das onças, por serem áreas mais protegidas”, explica Esteves. “Consequentemente, temos notado que as onças tendem a descer a serra, se aproximar das comunidades, predar rebanhos dos criadores que, em contrapartida, muitas vezes perseguem e abatem aquele indivíduo – a caça por retaliação.”
No Rio Grande do Norte, pesquisadores do projeto Caatinga Potiguar tentam evitar que o último trecho da Serra do Feiticeiro seja ocupado por mais um parque eólico, de 30 aerogeradores. Esta região de 53 mil hectares está situada em Lajes, município que concentra 30 usinas que, segundo o biólogo Paulo Henrique Marinho, modificaram a paisagem da região. Ele estudava a fauna das serras potiguares enquanto presenciava a chegada dos primeiros complexos eólicos na região. “A construção do conhecimento científico sobre as espécies é quase tão recente quanto a chegada das eólicas”, conta.
As serras na Caatinga reúnem uma combinação de fatores que as torna refúgios de biodiversidade. A formação acidentada dificulta a ocupação humana nas encostas. A umidade encontra os morros e descarrega em chuvas orográficas, o que torna o clima mais ameno. A vegetação tem maior porte e as nascentes e rios mantêm-se perenes ao longo do ano. “No ambiente semiárido, especialmente no contexto de desertificação, essas serras são como um oásis, refúgios importantes para a fauna especialmente no período de seca, porque ainda vai ter disponibilidade de recursos, plantas ainda com folhas e frutos, e água, por causa da concentração de umidade”, explica Marinho.
As descobertas sobre a biodiversidade da Serra do Feiticeiro demandaram estudos complementares ao EIA/RIMA e ajustes no Complexo Eólico Ventos de São Ricardo, que obteve licença de instalação em 2022. No Caatinga Potiguar, do qual Marinho é membro, os pesquisadores identificaram que o local era relevante para quatro espécies de morcegos, inclusive endêmicas. Cavernas e formações rochosas servem de abrigo para esses mamíferos alados, enquanto os facheiros – grandes cactáceas – fornecem o néctar de que se alimentam, observa o ecólogo. Os facheiros, por sua vez, dependem dos morcegos para a polinização e reprodução.
Nas expedições pelo Rio Grande do Norte, os pesquisadores identificaram ainda uma onça-parda na cidade de Luís Gomes, na divisa com a Paraíba. Por quase uma década, foi o único registro da espécie no estado. Até que, no início de 2023, a consultoria Maron Ambiental, que conduz os estudos do parque da Ventos de São Ricardo, registrou uma onça-parda na Serra do Feiticeiro.
Em novembro de 2023, o Ministério Público do Rio Grande do Norte recomendou ao Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema) “o imediato cancelamento da licença de instalação de titularidade da Ventos de São Ricardo Energias Renováveis S.A”, bem como a criação de uma unidade de conservação de proteção integral na Serra do Feiticeiro e serras adjacentes, por se tratar de uma área prioritária para conservação da biodiversidade da Caatinga, conforme o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
O MP-RN considerou que o empreendimento colocaria em risco espécies ameaçadas, como a onça-parda e o pintassilgo-do-nordeste – reportadas no monitoramento da empresa –, além de dois morcegos endêmicos identificados pelo Caatinga Potiguar (Xeronycteris vieiriai e Lonchophylla inexpectata). Segundo o documento, o parque eólico resultaria no desmatamento de 97,9 hectares da Serra do Feiticeiro.
“A gente não é contra as eólicas, mas é contra como tem sido feito. A energia renovável é uma aliada na transição energética, só que tem que falar cada vez mais em transição energética justa, ambiental e socialmente. E não é o que tem acontecido. O avanço das eólicas não chega junto com o aumento da criação das unidades de conservação na Caatinga como um todo”, reflete o ecólogo, que defende “investimento na produção de conhecimento científico para subsidiar a transição energética, como editais para fomentar estudos sobre impactos sobre a fauna da Caatinga”.
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Caatinga vive o dilema da transição energética justa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU