14 Novembro 2023
Uma crônica pessoal de Gaza em meio aos ataques aéreos israelenses.
O artigo é de Mahmoud Mushtaha, jornalista na cidade de Gaza, publicado por CTXT, 13-11-2023.
“Não temos vida, nem sonhos, nem esperança. Morremos com cada ataque aéreo israelense. Se sobrevivermos a um ataque, é provável que a nossa família, amigos ou entes queridos morram nele.” Meu amigo me enviou esta mensagem no WhatsApp depois de perder contato com ele por dias.
Eu respondi: “Esta dor e sofrimento acabarão em breve”. Até agora ele não recebeu esta mensagem e não a receberá porque Israel o matou. Israel matou meu amigo Abdullah Baghdadi.
A sensação de perder amigos e familiares é insuportável e não consigo descrever.
Não sei por que alguém como Abood, uma pessoa muito pacífica e lutadora, foi morto por Israel. Ele se formou em odontologia há poucos meses. Ainda me lembro de seu largo sorriso na formatura.
Ainda me lembro da mãe dele abraçando-o com força e dizendo: “Meu filho é médico”. Estudar medicina em Gaza não é fácil, pois a família tem que arcar com um grande fardo financeiro, mas os pais de Abdullah só se importavam em ver o filho com jaleco de médico e sentir orgulho dele. Israel acabou com o sonho dos pais de Abood.
Vivemos no meio de um pesadelo com os olhos bem abertos enquanto Israel lança bombas por toda Gaza, destruindo quarteirões inteiros de casas e matando centenas de pessoas em cada ataque. [45% das casas foram destruídas ou danificadas e o número de mortos hoje ascende a pelo menos 11.078, segundo dados da ONU fornecidos pelo Hamas].
Agora estou morando em um apartamento com 39 pessoas. Alguém pode imaginar isso? Alguém pode imaginar como estão nossas vidas agora? Preciso que o mundo saiba que não temos água limpa: estamos bebendo água salgada.
Abdullah Baghdadi, no dia de sua formatura como dentista. (Foto: fornecida pelo autor ao CTXT)
Israel ataca padarias e tanques de água, entre outros bens essenciais, causando o sofrimento de 2,3 milhões de pessoas na Faixa de Gaza. Morreremos de fome e desidratação se não morrermos sob as bombas.
Costumávamos temer que Israel matasse os nossos entes queridos, nos matasse ou destruísse as nossas casas no dia seguinte. Agora estamos preocupados que o dia seguinte chegue e não teremos o que comer. Todas as padarias da Cidade de Gaza estão fechadas. Dependemos de uma refeição por dia.
Morremos em silêncio. Se você estiver ferido, não poderá chamar uma ambulância para socorrê-lo, e se tiver sorte e ainda estiver vivo sob os escombros, não poderá chamar a Defesa Civil, então a morte o aguarda sob os escombros, sufocado e com dores.
Conversei ontem com um amigo e ele me disse que a única coisa que ele espera se Israel bombardear sua casa é que toda a sua família morra. Ele não quer permanecer vivo para não sofrer com a perda de seus entes queridos, e não quer ficar sob os escombros e morrer lentamente. Ele e sua família rezam para morrer juntos de uma vez.
Quando acordo todas as manhãs, digo a mim mesmo que talvez hoje a guerra acabe e os bombardeamentos parem. Porém, esse dia ainda não chegou.
Na Cidade de Gaza, dezenas de milhares de pessoas decidiram não deixar a cidade, recusando-se a suportar uma segunda Nakba. Abandonados pelo mundo, enfrentamos catástrofe, carnificina, sofrimento, sede e fome sob as forças de ocupação israelitas.
No entanto, no meio das diversas formas de morte em Gaza, persistimos nos nossos esforços para viver e sonhar. Sempre tivemos sonhos e continuamos determinados a torná-los realidade.
Escrevi esta história na esperança de poder transmitir algo sobre o sofrimento do meu povo. Talvez eu encontre alguém que leia a história e a compartilhe. Estou acostumada a escrever histórias de outras pessoas, mas nunca imaginei que um dia escreveria a minha própria história.
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Abdullah não receberá minha mensagem. Israel o matou. Artigo de Mahmoud Mushtaha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU