06 Setembro 2023
"A partir de agora, Jesus está dentro e fora do tempo. Está no curso mundano dos acontecimentos, do sofrimento, da alegria, da morte. Mas também está fora deste tempo, imerso na eternidade, num 'além' cósmico. Aquele que viu, passará a vida e aceitará o fim, ciente de um tempo além do tempo. Como transmitir tal consciência, como fazê-la tocar e ver, a quem não pôde ver nem tocar?".
O artigo é de Giulio Busi, publicada por Il Sole 24 Ore, 03-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quem é Jesus realmente? Sabemos o que ele se tornou após sua morte, em 2 mil anos de fé cristã. Mas como o consideram os contemporâneos? O que pensam quando o ouvem falar e quando o veem agir? É ele mesmo quem pergunta insistentemente aos seus seguidores: “Quem dizem os homens que eu sou?” (Marcos 8,27).
Jesus vem de uma pequena aldeia rural da Galileia. Não há dúvida de que ele conhece bem a Torá, mesmo que tudo sugira que seja um autodidata. Expressa-se com simplicidade e dirige-se às pessoas do povo. Sua força não é a erudição. Não foi para estudar que abandonou casa, trabalho, família. Ele saiu e escolheu a vida de mestre itinerante, alguns dizem de andarilho, para responder a um chamado. O que o leva às margens do Lago Tiberíades, ao Vale do Jordão, às ruas de Jerusalém?
No começo é a água. Jesus aproxima-se ao rio, entra na correnteza, espera que ela envolva o seu corpo. Depois se sacode e sai. E é aí que ele a vê. Uma pomba pequena e leve. Desce, do alto, de uma distância infinita, do ponto mais distante. O céu já se abriu uma vez, durante o exílio da Babilônia. Ao longo do canal Quebar, o profeta Ezequiel viu descer uma carruagem misteriosa, um resplendor de corpos, relâmpagos, sons (Ez 1,1). Agora Jesus olha para aquela criatura, mansa, mas não menos enigmática. Não importa a forma que o espírito tenha escolhido, o que importa é que ele venha, pouse, paire até roçá-lo. “Tu és meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mc 1,11). Os outros também ouviram? E se eles não viram a pomba, o que poderiam compreender? Ele, sim, entendeu. Ele gravou as palavras em seu coração. Não está no exílio como Ezequiel, que se tornou profeta para aliviar o seu povo da dor do abandono e do cativeiro. O espírito está aí para o aproximar, ele tem certeza disso. Mas aproximá-lo de quê?
Na vida de todo místico, e nisso não pensamos que Jesus seja uma exceção, existe uma porta que separa o “antes” e o “depois”. Em suma, há uma experiência biográfica inicial, que marca a tomada de consciência dos próprios poderes espirituais. Tal mudança pode se concretizar na forma de uma visão, de uma percepção auditiva, de um trauma ou de uma emoção transbordante. O vaso da alma se enche, transborda, espalha sua energia por todo o corpo, permeia a mente até que ela se transforme. A aparição do espírito na forma de pomba e o ressoar da voz celestial são ao mesmo tempo familiares e estranhos. Familiares porque lembram as experiências dos profetas bíblicos, que Jesus e os seus contemporâneos conheciam intimamente. Mas também causam estranhamento. Quando o céu se abriu para ele, Ezequiel foi dominado por uma cena arcana, cheia de detalhes, um engenho cósmico sobre o qual, nos milênios seguintes, o esoterismo judaico se concentrou. Os quatro seres vivos, que na aparência pareciam ter uma figura humana, cada um com quatro rostos e quatro asas, descritos por Ezequiel, são muito diferentes da pomba solitária que paira sobre Jesus: complexidade por um lado, simplicidade desarmante pelo outro.
Jesus “vê” a pomba e “sente”, graças a ela, a força divina, tão leve, mas tenaz. É uma presença oculta, interior, quase impalpável que o rodeia. Para que a pomba pudesse chegar até ele, os céus se abriram. Segundo a concepção antiga, a abóbada celeste separa o nosso mundo visível daquele invisível de Deus. Só um prodígio pode entreabrir, em casos excepcionais, a cortina celestial, espessa e opaca. Aqueles que têm o privilégio de ver além, debruçam-se sobre uma dimensão fora e acima do tempo. Assim aconteceu com o profeta Ezequiel e assim acontece agora com Jesus. A experiência visual e auditiva do Jordão marca uma virada decisiva.
A partir de agora, Jesus está dentro e fora do tempo. Está no curso mundano dos acontecimentos, do sofrimento, da alegria, da morte. Mas também está fora deste tempo, imerso na eternidade, num “além” cósmico. Aquele que viu, passará a vida e aceitará o fim, ciente de um tempo além do tempo. Como transmitir tal consciência, como fazê-la tocar e ver, a quem não pôde ver nem tocar?
No magistério de Jesus, o tempo tem uma função fundamental. Nas suas palavras e nos seus atos, o tempo se move, se transforma. Há um presente contínuo, ao qual ele se refere constantemente, ao qual chama os discípulos. É o presente do espírito, que vem, aliás, que já veio, como a pomba já desceu sobre o Jordão. E há um tempo de incompletude e de morte, de expectativa e de decepção, que deve ser superado, derrotado. Levar todos para além do véu do visível, fazê-los passar pelo portal celestial, eis a sua missão, o anúncio que recebeu ao mergulhar no rio do espírito. Existem duas forças que aqui se chocam. Há a fé no Deus que se fez homem e que o quer imaculado, onisciente, desde sempre e para sempre. E há os Evangelhos, que nos falam de experiências felizes e de momentos de raiva, de certezas e de dúvidas. Todo místico experimenta em primeira mão o vórtice do espírito. Como relâmpagos que iluminam por um instante e depois desaparecem, retornam como enxames, escurecem, silenciam, assim a consciência do divino é intermitente, inconstante, benéfica e avassaladora.
Vocês procuram um protagonista sereno e impassível nos Evangelhos? Vocês encontrarão um homem que treme, sente raiva, fica feliz com os amigos e furioso com os adversários. Mas vocês o encontrarão depois do Jordão. Depois do céu que se abre para ele e faz descer, no tempo, a pomba que vem do além-tempo.
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A humanidade de Jesus emerge das águas do Jordão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU