"O novo Prefeito tem a tarefa de 'promover o conhecimento teológico', algo que não se identifica antes de tudo com atos de condenação. O novo Prefeito e um novo estilo podem valorizar a preciosa obra que uma parte da teologia, muitas vezes independentemente das vontades (e às vezes chantagens) vindas de Roma, soube elaborar por pelo menos 40 anos".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em seu blog Come Se Non, 02-07-2023.
Uma carta que acompanha a nomeação de um novo Prefeito já é um fato singular. Se então na carta o Bispo de Roma expressa juízos muito claros sobre os limites de uma gestão "censória" do Dicastério e pede a inauguração de um outro estilo, muitas coisas estão destinadas a mudar. Uma frase da carta foi muito marcante, que vou relatar imediatamente.
“O Dicastério que você presidirá usou métodos imorais em outros tempos. Eram tempos em que perseguiam-se possíveis erros doutrinários, em vez de promover o conhecimento teológico. O que espero de você é certamente algo muito diferente.”
Gostaria de considerar brevemente como esta frase vem de décadas em que a melhor teologia pós-conciliar pediu uma mudança profunda na forma como primeiro o Santo Ofício, e depois a Congregação para a Doutrina da Fé, realizou o tarefa de "guardar a fé".
Por muitos séculos, a partir da era moderna, cada estado teve um corpo de controle de conhecimento. Não só a Igreja tinha um Santo Ofício. Mas com o advento do mundo moderno tardio e com o nascimento de uma sociedade liberal e aberta, tanto o Índice de livros proibidos quanto o corpo tutelar do conhecimento correto desapareceram em todos os estados. Somente a Igreja o preservou até hoje.
Por trás desses corpos governantes está a ideia de que a "liberdade de consciência" é um pecado. Desde o Vaticano II, houve um lento movimento em direção a uma revisão, que atribuiu, ao menos formalmente, ao processo de censura um procedimento pelo menos parcialmente controlável, com garantia de defesa para os investigados. Mas, na verdade, em grande parte eram procedimentos inquisitoriais, em busca de erros e inimigos. Era mais difícil influenciar o modo de “fazer teologia” da Congregação. Bem aqui, como veremos, a mais grave imoralidade se esconde.
De fato, ao longo desta história fica evidente que "imoralidade" significava, em primeiro lugar, a forma como as pessoas eram tratadas. Grandes autores foram investigados, bloqueados, impedidos de publicar e de ensinar. Em péssima forma até o Vaticano II, mas ainda pesada e com argumentos frágeis ou capciosos até 5 dias atrás, com o caso Lintner.
Mas isso é apenas parte da verdade. Talvez o mais grave não diga respeito aos indivíduos, que sofreram injustamente, mas às ideias, na forma como foram tratadas, consideradas, ignoradas ou eliminadas. Uma das atitudes mais "imorais" dos últimos 40 anos da Congregação-Dicasttério são aquelas que tentaram "bloquear" qualquer discussão real. Onde havia um problema, tratava-se de negá-lo e trazer a solução de volta a um nível tão inatacável quanto vazio. Vamos apenas dar alguns exemplos.
Em plena pandemia (2020), uma secção da Congregação para a Doutrina da Fé perdeu tempo a "reformar" o rito de Pio V, confirmando assim indiretamente a coexistência paralela de duas formas rituais do mesmo rito romano, contra todas as evidências teológicas, que a Congregação deveria ter guardado de forma bem diferente.
Por ocasião do 50º aniversário do Concílio Vaticano II, em 2012, uma Nota da Congregação pretendia mudar de assunto e sugerir que um aniversário igualmente importante era o 20º aniversário do Catecismo da Igreja Católica, através do qual também se podia/deveria ler o Concílio!
Ainda antes, uma Nota da Congregação resolvia negativamente a possível extensão ao diácono do caráter ministerial da unção dos enfermos, recorrendo a uma citação da célebre carta do Papa Inocêncio I ao bispo de Gubbio, porém eliminando dela todas as palavras que teriam contrastado com a decisão tomada.
Em suma, tratava-se de "negar todo movimento", no nível litúrgico, sacramental, institucional, chegando até a colocar em jogo a obediência à fé, para preservar as soluções do passado sem possibilidade de mudança, que sempre se apresentava como uma ameaça à fé.
Esse procedimento imoral era considerado um dever, uma tarefa moral, a fim de preservar as soluções do passado sem qualquer possibilidade de mudança, que sempre se apresentou como uma ameaça à fé.
Esta função indevida, assumida pela Congregação sobretudo depois do Concílio Vaticano II, já devia terminar há algum tempo. Porque guardar a fé significa, precisamente, como ensinou o Vaticano II, fazê-la caminhar na história, fazê-la elaborar novas evidências, permitir-lhe integrar novas culturas e exprimir novas sensibilidades.
Uma Congregação que se acostumou a julgar tudo com o manual do CCC talvez tenha acabado com a carta de ontem. Há décadas precisamos de uma instituição que permita o crescimento da fé, no diálogo e não na censura.
Durante séculos contamos com um exercício da razão teológica que se limitava a "condenar os erros" e que encontrava nisso a sua razão de ser: por isso não será fácil adquirir imediatamente um novo estilo. Já no Concílio Vaticano I a ideia era compor uma “soma dos erros modernos”, mas os trabalhos conciliares, ainda em 1870, em parte iniciaram um novo caminho.
Depois veio o Vaticano II, que ampliou e articulou ainda melhor a novidade. A inércia do Santo Ofício foi perpetuar uma identidade católica que só pode ser salva se condenar os erros.
O novo Prefeito tem a tarefa de "promover o conhecimento teológico", algo que não se identifica antes de tudo com atos de condenação. O novo Prefeito e um novo estilo podem valorizar a preciosa obra que uma parte da teologia, muitas vezes independentemente das vontades (e às vezes chantagens) vindas de Roma, soube elaborar por pelo menos 40 anos. Imoral não era apenas a forma como as pessoas eram tratadas, mas também o modo como nos fechamos diante das tantas novas evidências que a vida eclesial descobriu e em parte valorizou. A superação dessas duas imoralidades institucionais (em relação às pessoas e em relação às ideias) constitui um programa de reforma verdadeiramente central para a Igreja Católica.