20 Junho 2023
“A fome no Brasil tem cor e está na população negra, parda e indígena”, constata a pesquisadora em Saúde Pública Denise Oliveira, coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares da Fiocruz, em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. Denise analisa a fome como problema social que precisa ser abordado a partir de intervenções econômicas, políticas, ambientais, culturais e sociais. Conforme considera, trata-se de um problema que há muito tempo se estrutura no país, pois, “desde sempre” se optou por negligenciar ações que pudessem reduzir desigualdade social. “Por isso, a fome é estrutural”, afirma.
A reportagem é de Daiane Batista, publicada por CEE-Fiocruz, 14-06-2023, e enviada pela autora ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
A pesquisadora, que também coordena o Grupo de Trabalho para a criação do Programa de Formação em Lato e Stricto Sensu em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional para Moçambique e integra a equipe do Observatório de Diplomacia em Saúde do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz (Cris), observa que o histórico da escravidão consolidou, ao longo dos anos, a fome no Brasil e no mundo. “Desde as grandes navegações, entre os séculos XIV e XV, as experiências pautadas pela mão de obra escrava, pela exploração e pelo genocídio de populações tradicionais, sobretudo, nas Américas, é que vão estruturar a fome”, aponta.
Para a pesquisadora, do ponto de vista histórico, é a partir de uma perspectiva do capital e de um modelo neoliberal que “a alimentação tem sido vista como mercadoria, e a fome, como aliada a esse modelo, que, infelizmente, convive sem muita crise com a desigualdade social”.
Nesse sentido, Denise explica que, no Brasil, ao longo dos anos, algumas políticas foram fundamentais para o enfrentamento e a reparação social de nossa herança da escravidão. Ela lembra da Conferência de Durban, realizada em 2000, na África do Sul, que iria pressionar o governo brasileiro da época, sobretudo, em relação as ações de combate ao racismo. No bojo dessas iniciativas, destaca, ainda, foi importante “associar políticas emergenciais com políticas de proteção social”, quando, em 2013, no governo do presidente Luiz Inácio da Silva, “o Brasil sai do mapa da fome e se torna exemplo para o mundo”.
Ao falar da tríade pobreza, desnutrição e desigualdade, Denise destaca a alimentação como direito fundamental, garantido por lei, e critica a lógica de mercadoria associada aos alimentos. “Criou-se uma cultura de que só come quem tem renda e, se for pobre, come mal, em quantidade e em qualidade”. Além disso, diz, a comida de verdade vem sendo substituída por comida processada, “um deserto alimentar, fenômeno extremamente perigoso”, alerta.
A pesquisadora, que atuou de 1996 a 2000 como coordenadora do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde, lembra também a importância dos programas sociais que auxiliem populações vulneráveis, que não sejam somente compensatórios e “atuem na mudança estrutural”. E convoca a refletir sobre o que nos faz naturalizar a pobreza e a fome, como sociedade. “É um ato indigno naturalizar. Isso vem da escravidão, e, ao longo dos anos, se consolidou como racismo institucional, muito pela ausência de políticas públicas”, considera Denise.
Para ela, está claro que essas mazelas são, antes de tudo, de ordem política e econômica, pois “o racismo é a amálgama de toda desigualdade social que vem estruturando os problemas relacionados à fome”, afirma Denise, fazendo referência ao teórico pernambucano Josué de Castro, um dos principais estudiosos da geopolítica da fome.
Conforme destacou a pesquisadora, há uma incidência desigual da fome em regiões onde existem desigualdades sociais relacionadas a cor da pele, etnia, gênero, faixa etária e até aspectos culturais e religiosos. “Aquele que morar ou nascer em determinada condição vai se estruturar de forma perversa”, aponta. “A negligência do estado quando autoriza, naturaliza”.
Denise cita análises que demostram que “conforme a cor vai ficando escura, piores são os índices de mortalidade e de morbidade, e, conforme a cor vai ficando mais clara, os dados mostram que esses índices diminuem. Isso está estruturado? Claro que está”, considera.
A pesquisadora, traz, ainda, um alerta quanto às tecnologias emergentes e seu impacto, do ponto de vista da segurança alimentar e nutricional. De acordo com ela, é preciso cautela ao se tomar, por exemplo, a inteligência artificial como central na resolução dos problemas humanos. “A tecnologia tem que caminhar de forma a não virar outra mercadoria, que é o que tem sido a tônica das sociedades industriais”, pontua.
Denise destacou a importância tecnológica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), que se mostrou fundamental para nossa autonomia nacional, principalmente, durante a crise sanitária do coronavírus. “Claramente necessário”, destacou Denise. “Mostrou, inclusive, a necessidade de a Fiocruz ser autônoma em produção de vacinas e fármacos”.
Recentemente, o relatório Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional 2022, divulgado pelas Nações Unidas apontou que 22,5% das pessoas na América Latina e no Caribe não têm meios suficientes para acessar uma alimentação saudável. Na América do Sul, a população afetada chega a 18,4%. De acordo com a publicação, a falta de acesso econômico ou acessibilidade a uma alimentação saudável observada em toda a região também está associada a diferentes indicadores socioeconômicos e nutricionais. O relatório apresenta, ainda, uma clara relação com variáveis como o nível de renda de um país, a incidência da pobreza e o nível de desigualdade.
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Denise Oliveira: “O racismo é a amálgama de toda estrutura de desigualdade social e dos problemas relacionados à fome” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU