05 Junho 2023
"A luta contra a todos grupos sociais e políticos que se aliam para defender a superioridade humana de uma minoria sobre os tratados como “inferiores” não é meramente uma questão ético-política, mas é uma questão de fé (Status Confessionis) para nós cristãos e uma questão de futuro da humanidade", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Franz Hinkelammert, no seu último livro “Cuando Dios se hace hombre, el ser humano hace la modernidad. Crítica de la razón mítica en la historia occidental" (2. ed., rev. e amp. 2022), diz que “estamos em uma crise da civilização Ocidental, que começa com o levantamento contra a igualdade de todas as pessoas, que é ao mesmo tempo um levantamento contra os direitos humanos. Isto se deriva do pensamento de Nietzsche e logo se converte em realidade, primeiro no fascismo, e hoje em dia no neoliberalismo” (p. 264).
A noção de “crise civilizatória” é muito usada por cientistas sociais, teólogos ou outras áreas de conhecimento ao falar da situação global. Uns apontam que a sua causa vem da pretensão da razão moderna de controlar a natureza, outros da absolutização da lógica do lucro no capitalismo, que foi acelerado no neoliberalismo, e ainda outros, como neoliberais, citam a perda da noção original de liberdade individual como a causa. Para esses últimos, a pretensão moderna de construir conscientemente uma sociedade socialmente mais “justa”, –que pressupõe uma intervenção do Estado (social democrata ou socialista) no mercado com políticas e programas sociais–, seria a principal causa da atual crise civilizatória. Nesse sentido, o neoliberalismo seria uma proposta de “salvação” da humanidade contra todos aqueles que interferem na liberdade do mercado e na lógica do mérito individual. Assim, podemos dizer que, além das lutas políticas e de classes, estamos em uma luta de interpretação sobre as causas e consequências da atual crise civilizatória e o futuro da humanidade.
Na citação mais acima, Hinkelammert diz que a atual crise “começa com o levantamento contra a igualdade de todas as pessoas, que é ao mesmo tempo um levantamento contra os direitos humanos”, levantamento esse que teria iniciado com Nietzsche e tornado uma força política com o fascismo/nazismo e o neoliberalismo. Sabemos que nas sociedades antigas a noção de igualdade de todas pessoas não fazia nenhum sentido. As religiões ensinavam que Deus ou deuses haviam criado diferentes tipos de seres humanos, livres e escravos, castas superiores e inferiores, ou pessoas de “sangue azul” e o comum; assim como as filosofias justificavam a escravidão em nome da natureza. Nesse sentido, o “normal” era a diferença fundamental entre os livres e os escravos, ou entre seres humanos superiores e os inferiores. Hinkelammert, como um dos principais pensadores da teologia da libertação e do pensamento crítico latino-americana, retoma essa questão da origem da atual crise civilizatória lembrando-nos que não foi da tradição greco-romana, mas sim da judaica que aprendemos a rebelião dos “inferiores” em nome da igualdade de todos seres humanos. E que essa tradição ganhou um salto transcendental no anúncio do Reino de Deus feito por Jesus. Um reino em que Deus ama a todos seres humanos, bons ou maus, amigos ou inimigos, pecadores ou “santos”.
Hinkelammert interpreta a afirmação de Paulo, “já não há judeu ou grego, escravo ou livre, homem e mulher”, como uma expressão filosófico-teológica daquilo que Jesus tratou na expressão Reino de Deus: todos os seres humanos são igualmente dignos. É claro que afirmação de Paulo não significa que não há diferenças entre as pessoas, mas sim que as diferenças não podem ser usadas como um pretexto para discriminar outras pessoas. Além disso, essa afirmação “não há judeu ou grego, livre ou escravo, homem e mulher” não é uma expressão descritiva do que existe no mundo, mas sim um “conceito transcendental” que nos permite ver o que ainda está ausente nas nossas vidas e nas sociedades. Isto é, nas práxis de libertação e nas relações intersubjetivas mais justas e humanas podemos ver, pela “fé”, a presença do Reino de Deus no interior da história, sabendo que essa presença é também a manifestação da ausência da plenitude do RD no meio de nós.
Pela dinâmica histórica marcada pelo anúncio da igualdade de todos seres humanos, a sociedade moderna produziu a democracia, os direitos humanos universais baseados na noção de dignidade de humana. Surge então a rebelião dos ressentidos com o surgimento de uma ordem social mais humanista contra os que defendem os direitos humanos, isto é, a rebelião contra os que defendem os direitos civis (dos negros, indígenas, mulheres, LGBTQ+, pessoas com deficiência...), contra os direitos sociais dos pobres e os defensores da democracia político-social-ambiental.
Na rebelião contra os direitos humanos, o primeiro movimento significativo foi o fascismo e depois o neoliberalismo. O que temos de novo é uma aliança entre a extrema-direita (não importa aqui se é fascista ou neo-fascista) e o neoliberalismo, que é socialmente mais sofisticado. Como diz Hinkelammert, “a extrema-direita mobiliza principalmente pessoas sem orientação política, mas que sentem a necessidade de sentir-se como vencedores e superiores, sem saber muito bem por quê ou para quê, e ainda que para isso precisam agredir a outras pessoas”. (Idem, p. 174) Sem a agressividade e demagogia, que a extrema direita lida muito bem especialmente na rede social, o neoliberais não consegue se tornar um movimento de massa. Daí essa aliança.
O cristianismo nasceu de uma tradição religiosa que nasceu da rebelião dos escravos e pobres e descobriu a presença do seu Deus-Javé na sua história. Por um longo processo pedagógico divino, esse povo e tradição aprendeu que todos nós seres humanos são iguais, “não há judeu e grego, livre e escavo, homem e mulher...”, e aprendeu a lutar pelo direito de viver dos pobres e de todos seres humanos tratados como inferiores.
Portanto, a luta contra a todos grupos sociais e políticos que se aliam para defender a superioridade humana de uma minoria sobre os tratados como “inferiores” não é meramente uma questão ético-política, mas é uma questão de fé (Status Confessionis) para nós cristãos e uma questão de futuro da humanidade.
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A rebelião da direita e do neoliberalismo e a questão da fé cristã. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU