10 Abril 2023
"Com a agravante de legitimarmos essa perene dúvida da falsidade como antídoto à propaganda, enquanto é sintoma de algo muito mais profundo, uma recusa que é disparada toda vez que os decibéis de horror se tornam insustentáveis e, para não desperdiçar esforços com a compaixão, marcamos a resposta da negação. No fundo, ela também é uma forma de ressurreição, não divina, mas tristemente esperta, pela qual obrigamos a morte e a dor a renascer na forma domesticada e inofensiva de algo fake, deplorável, mas reconfortante. Viva, é tudo falso, viva, é tudo um roteiro", escreve Stefano Massini, escritor e dramaturgo italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 08-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Longuinho, nos ensinam, foi o centurião que perfurou o lado de Cristo. Fez isso para ter certeza de que estava realmente morto, e que não fosse necessária a costumeira liturgia espalhafatosa de quebrar os membros inferiores do condenado, que era o jeito rápido dos carrascos para encurtar os tempos e não passar do horário de trabalho. Em suma, aquela lança foi o eletrocardiograma que selou o fim do dead man walking do Calvário, e até aqui dizemos que estamos no âmbito das notícias.
À margem, porém, está também o grande tema da verdade, multiforme e questionável, corrupta e moldada, pela qual já há dois mil anos, até nos Evangelhos, se percebia a perigosa linha que separa os fatos da versão dos fatos e, portanto, era necessário um Longuinho que não como discípulo, mas da turma contrária, colocasse para a memória futura aquele selo autóptico que é “Ele era verdadeiramente o filho de Deus!". Vamos nos deter justamente neste advérbio, "verdadeiramente".
P.T. Barnum, fundador do show-business, argumentava que nenhuma mina é mais produtiva do que capacidade geradora de mitos das massas, pronta como nunca para se unir no acreditar, ainda mais do que no agir (e ele demonstrou isso, exibindo triunfalmente em seu circo a suposta babá de George Washington, que teria 160 anos). Você estava certo, Barnum, nós humanos aceitamos qualquer coisa, se no pacto de solidariedade com o rebanho for estabelecido que aquela verdade seja uma cerca, um refúgio, um perímetro.
E, portanto, eis aqui para vocês a contradição paradoxal do nosso centurião, que por um lado no Gólgota certificou a Verdade, mas depois de um instante se tornou o símbolo perfeito de sua alteração. Não apenas o nome Longuinho é falso, mas toda a sua rocambolesca história é um romance de dar inveja a Emilio Salgari: narra-se que era um soldado cego, cujos olhos - reviravolta – se curaram instantaneamente assim que foi atingido no rosto por aquele famoso respingo de sangue e água, após o que se converteu e espalhou as boas novas, mas – reviravolta -, foi preso pelos romanos, que arrancaram os dentes e cortaram sua língua, depois o decapitaram exatamente enquanto o prefeito carrasco - reviravolta - também perdia a visão, mas São Longuinho - reviravolta - milagrosamente a restituiu para ele por intercessão.
Esta é a lenda que a devoção popular inventou de fio a pavio, em torno daquele que no Calvário testemunhou a Verdade para que não a inventassem de fio a pavio. Mas não nos surpreende em nada, afundados como estamos no pântano russo-ucraniano das mentiras contrapostas e dos blefes contínuos, a ponto de já ter tornado esta guerra (aliás, Operação Especial) um tedioso Carnaval em que você não confia mais em nada nem em ninguém.
É a síndrome de Bucha, em nome da qual o advérbio "verdadeiramente" de Longuinho acabou por se mudar para "verossimilmente", para evitar dúvidas e no aguardo de uma verificação que nunca acontecerá.
Como aconteceu um ano atrás com aqueles cadáveres executados e jogados nas ruas, assim se Jesus Cristo tivesse morrido em 2023, leríamos online que era tudo falso. Primeira hipótese, a Inteligência Artificial.
Inclusive o Midjourney já nos mostrou Trump em macacão de preso como se fosse verdadeiro, então não seria nada demais recriar um corpo na cruz, até mesmo um amador pode fazer isso com o aplicativo certo.
A segunda hipótese é a encenação, filha do pouso na lua. A Cruz? Mas, por favor, dá para ver a olho nu que era poliestireno. O Gólgota? Corre na net que era só um cenário. O sangue? Suco de tomate. A coroa de espinhos? Silicone. E quanto àquele centurião que diz “ele era verdadeiramente o filho de Deus”, estou disposto a apostar que era um ator, assim como era atriz, mas sim, é claro, aquela mulher grávida fugindo do hospital bombardeado pelos russos. Em um ano de guerra militar e midiática já aprendemos a lição, e nada mais nos causa sobressaltos, a catástrofe se contraiu em sua teatralização, e o drama tornou-se dramatização, olhamos para Bakhmut e Mariupol com o sorriso leigo com que se assiste aos números de mágicos, superconvencidos de que se nos esforçarmos, sem dúvida descobriremos o truque, porque Putin é uma caricatura de Gogol e aquele Zelensky já nasceu cabotino. Sim.
Com a agravante de legitimarmos essa perene dúvida da falsidade como antídoto à propaganda, enquanto é sintoma de algo muito mais profundo, uma recusa que é disparada toda vez que os decibéis de horror se tornam insustentáveis e, para não desperdiçar esforços com a compaixão, marcamos a resposta da negação. No fundo, ela também é uma forma de ressurreição, não divina, mas tristemente esperta, pela qual obrigamos a morte e a dor a renascer na forma domesticada e inofensiva de algo fake, deplorável, mas reconfortante. Viva, é tudo falso, viva, é tudo um roteiro.
Aquele Longuinho foi escolhido num processo de seleção de atores.
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O centurião. A lança no lado não bastaria contra as fake news. Artigo de Stefano Massini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU